Medalha Santo Ivo

2 de junho de 2019

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Presença do advogado na sociedade contemporânea

A milícia da Justiça somos nós que constituímos, como procuradores das partes, substituindo-as nos atos processuais do começo ao fim das demandas, à exceção dos atos raríssimos em que sua presença se torna indispensável. Somos para os juízes o que, na tragédia grega, era o coro, somos o símbolo do povo, em face do soberano, encarnação do poder. Seremos, às vezes, interpretes de interesses, mas nossa missão é a de instrumento da verdade. Por isso, desde as épocas mais remotas, os advogados aprenderam a falar aos potentados como nunca os fracos e desprotegidos ousariam falar-lhes. Nosso patrono Santo Ivo simboliza firmemente esse gesto, tão bem retratado no corte artístico da Medalha lavrada pelo escultor baiano Mario Cravo Júnior.

Vivemos, faz pouco – não faz tanto tempo, ainda – anos incomuns. Naquele longo período de obscurantismo, o Direito sempre saiu triunfante da Casa do Direito, que é a Ordem dos Advogados do Brasil, e do Instituto dos Advogados, que têm por missão pensar o Direito que a nação reclama. Quando o ardor da sociedade insatisfeita atingiu nossas instituições, nunca decepcionamos a nação sofredora, lutando por tudo aquilo que importava à sorte do País. Ganharam amplitude os protestos contra a ditadura e as iniquidades dela decorrentes.

Não estamos, uma vez mais, vivendo horas comuns. Soam, no grande cenário da História, vozes do chamamento para reformas fundamentais. Somos todos contemporâneos do futuro, na perspectiva das metamorfoses sociais e do modelo econômico – este ainda apoiado na falácia do neoliberalismo – na busca de remédios mais justos e equânimes. Todos nós temos compromisso, porque a missão dos juristas, diante dos conflitos indesconhecíveis na ordem social, não poderá ser a atitude contemplativa do interprete de soluções codificadas. Cabe-nos o esforço do diagnóstico e da terapêutica.

A insígnia que celebra Santo Ivo, o protetor dos advogados, resguarda grande atualidade. O Santo legou marcas na História como juiz e advogado contra a desigualdade. Era chamado o “advogado dos pobres”. Enquanto viveu, não houve advogado de tanto renome e homem mais estimado na região. Vinham ter com ele os ignorantes, pobres e servos que os senhores oprimiam e que Ivo defendia. Santo Ivo granjeou a estima de todos pela integridade de vida e pela imparcialidade de seus juízos. Ele próprio ia buscar nos castelos o cavalo, o carneiro roubado dos pobres sob o pretexto de impostos não pagos. Notabilizou-se, principalmente, por dedicar sua erudição à defesa, nos tribunais, de toda a minoria deserdada de fortuna. Os seus emolumentos, quando exerceu funções oficiais de Juiz de Rennes, eram oferecidos aos pobres, para que fossem usados em sua defesa.

Uma voz clamando e sendo ouvida. Cenário que está sendo cassado, em nosso tempo, pouco a pouco.

Era uma das grandes promessas da democracia: a democracia prometia à humanidade que esta poderia fazer sua História, ou, pelo menos, tomar parte nela – e é justamente essa promessa que explode em fragmentos sob os golpes da corrupção, de um lado, e da globalização liberal, de outro, fantasmas que passeiam de mãos dadas pelos interesses financeiros siderais que congregam.

Filosofia da liberdade, por excelência, o liberalismo se comprometia a tornar os seres humanos cada vez mais responsáveis. Mas foi sua própria vitória – já que a globalização é essencialmente liberal – que pouco a pouco os tornou seres desprovidos de qualquer domínio real sobre o andamento da História, quadro de horrores que ainda mais se agravou com a desenfreada corrupção que assola o mundo ocidental.

Uma vez foi a “rebelião das massas” que se considerava ameaçando a ordem social e as tradições civilizadoras da cultura ocidental. Atualmente, a principal ameaça vem daqueles que estão no topo da hierarquia, os maus políticos e os maus empresários. O patrimonialismo mostra sua face, constituída pelas relações espúrias entre Estado e mercado, Estado e interesses, empresários e dirigentes políticos do Estado. Esta marcante mudança nos acontecimentos confunde nossas expectativas quanto ao curso da História.

Arrogantes, dominadoras, as elites olham as massas com desprezo e apreensão. O mercado em que atuam tem hoje alcance internacional. Suas fortunas estão associadas a empreendimentos que operam muito além das fronteiras nacionais. Elas estão mais preocupadas com o funcionamento homogêneo do sistema como um todo do que com qualquer de suas partes. Sua lealdade é supranacional e não nacional ou regional. Elas têm mais afinidade com suas
similares lá fora do que com as massas que lutam para combater as desigualdades.

No universo do território nacional, as ligações das elites se verificam com os maus políticos, chegando a essa aberração normativa que prevê a tentativa de punição, por abuso de poder, a magistrados e integrantes do Ministério Público, fundada em critérios puramente subjetivos, heresia que nem os Atos do governo militar ousaram produzir, naqueles primeiros tempos sombrios, somente aportados no cenário brasileiro com a edição do Ato Institucional no 5, quando a ditadura mostrou concretamente sua face cruel.

Daí o veredicto cruel: a democracia encontra-se sob provação. Em severa crise de valores.

As elites, tendo se descartado das normas morais e éticas que a religião lhes proporcionava, agarram-se à crença de que através da ciência e da política – política aqui escrita e pronunciada com letras minúsculas – é possível dominar o destino da humanidade e colocá-lo a seu serviço. Sua indesejada universalidade está destroçando tudo aquilo que vale a pena na vida que se pratica no mundo ocidental.

Há uma crescente guinada internacional à direita – Brexit, Donald Trump, Marine Le Pen, Colômbia, protecionismo, isolamento, racismo, intolerância, entre muitos outros – guinada repleta de amargor, xenofobia e ressentimento, constituindo grave advertência a todos que acreditam no ideal democrático. Essa gui­nada está traindo um dos pilares da demo­cracia: aquele segundo o qual poderíamos, coletivamente, com escolha fidedigna dentro do processo político, fazer nossa História ou participar dela, interferir em nosso destino para tentar dirigi-lo em direção ao melhor.

A decepção não pode nos conduzir ao descaso. Nossa arma, a arma dos advogados, é a palavra. E a palavra tem poder de fogo maior do que tanques, fuzis ou foguetes.

Basta que resguardemos nosso relevante papel no grande exército da resistência democrática. Dessa atitude desafiadora temos muitas provas colhidas da História. Uma das maiores ainda está viva em nossas mentes: Émile Zola. Foi jornalista, escritor brilhante, repousa, merecidamente, no Panthéon de Paris. Através da palavra, travou luta feroz pela verdade e pela justiça contra as sombrias maquinações antilibertárias de um bando de militares. Thomas Mann – o maior escritor do Século XX, que apresentou à humanidade as únicas condições sob as quais se deve viver, a savoir, a liberdade de espírito, a solidariedade e a fantasia – ressalta, em palavras candentes, o que significou Zola para sua época, que lhe perpetua a memória, trazendo-a para nossos dias:

“Época dourada aquela em que um único pecado contra o Direito, a expulsão de um único inocente era capaz de revoltar o mundo inteiro com ajuda da palavra de um grande escritor! Desde então, o retrocesso ético tem sido terrível, horrível o nosso embrutecimento psicológico com a experiência do Mal exercido em massa. A apatia e a angustia nos transformam em aleijões morais – e ainda nos vangloriamos do refinamento de nossos conhecimentos, da ‘superação do materialismo’ e até mesmo de um ‘revigoramento do impulso religioso!’ (…). Em Zola admiro o Século XIX, venero nele o mito da França, a tradição que o animava e que é uma tradição de consciência social e sensibilidade atenta para a liberdade, a verdade e a dignidade humana”.

Nos tempos presentes, nossa situação é pouco alentadora, pela extensão indefinida dos extremismos, mas essa constatação deve servir de estímulo a todos nós. Somos obrigados a retomar a caminhada mesmo em um universo de desencanto. A mensagem que deveremos consagrar, malgrado todas as nuvens negras que ameaçam a humanidade, ainda é uma mensagem de esperança.

Vivemos em um mundo que está desaparecendo e cuja sobrevivência se mantém em um equilíbrio de terror entre as grandes potências. Apesar desse quadro de temeridades, nossa profissão conserva seu vigor em ação, porque ela tem a força de ser símbolo, e se não se pode sorrir de um símbolo, ressalta Jacques Isomi, se não se pode esquecê-lo, renegá-lo, nem zombar dele, não se ousa abatê-lo. Esse temor que o símbolo inspira assegura nossa perpetuidade.

Representamos princípios que são eternos, imperecíveis, infindos. Temos o dever de lutar pelo Direito, mas no dia em que defrontarmos um conflito entre o Direito e a Justiça, nosso dever é lutar pela Justiça. Nós, advogados, somos, sobretudo, agentes transformadores da História.