MISSÃO CUMPRIDA

30 de abril de 2010

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O Judiciário Brasileiro não será mais o mesmo após a passagem do ministro Gilmar Mendes pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — o primeiro, a instância máxima do Poder Judiciário; o segundo, o órgão responsável pela fiscalização e elaboração do planejamento estratégico de todos os tribunais do Brasil. Na Suprema Corte, Mendes liderou a adoção de uma série de medidas que permitiram a racionalização e o melhor gerenciamento dos processos originários e recursos extraordinários. O resultado foi surpreendente: pela primeira vez, em 10 anos, a mais alta corte do País registrou menos de 100 mil ações distribuídas, segundo levantamento divulgado no início de abril último. No entanto, foi a gestão desenvolvida à frente do CNJ que mais chamou a atenção da sociedade. Mendes empenhou-se em iniciativas em prol do aperfeiçoamento do Judiciário, com o estabelecimento de metas e prazos para o alcance delas. A maior parte com vistas ao aumento da transparência desse Poder e à redução da morosidade processual. De fato, a Justiça ficou mais acessível, segundo diversas pesquisas sobre este tema divulgadas recentemente.
Gilmar Mendes prepara-se para deixar a presidência do Supremo no próximo dia 23 de abril, ocasião em que assume o ministro Cezar Peluso — magistrado de carreira, homem de poucas palavras, contudo de atuação implacável. Em consequência, Mendes se despedirá do comando do Conselho, que é presidido pelo Presidente do STF, conforme determinação legal. Em razão disso, a Revista Justiça & Cidadania traz nesta edição um balanço com Mendes sobre as principais iniciativas lideradas por ele, mostrando, inclusive, de que forma elas contribuíram para atenuar os inúmeros problemas do Poder Judiciário. O Ministro citou as diversas ações adotadas em seu mandato, principalmente à frente do CNJ, no campo do sistema prisional. Os mutirões carcerários — projeto em que um grupo de juízes do Conselho promove a revisão de uma série de processos de presos nos estados pelos quais passa — foram os mais destacados.
Os mutirões carcerários já permitiram a libertação de 20.068 pessoas presas irregularmente. Por isso, venceu a edição do ano passado do Prêmio Innovare, que tem como objetivo reconhecer as boas práticas no âmbito da Justiça. Além disso, deu início a uma série de outros projetos correlacionados, dentre os quais o “Começar de Novo”, que visa a possibilitar a reintegração de egressos do sistema carcerário no mercado de trabalho para que esses não voltem a reincidir. O Ministro fechou, ao longo de seu mandato, uma série de parcerias, com órgãos governamentais e da iniciativa privada, para garantir vagas de trabalho a egressos do sistema penitenciário.
Por meio dos mutirões, o CNJ pôde identificar vários outros abusos praticados no sistema carcerário nacional, dentre os quais a utilização indevida das prisões provisórias. O relatório “Um em cada cinco: a crise do sistema prisional e de justiça criminal no Brasil”, publicado recentemente pelo Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association (IBAHRI) — organização mundial de profissionais do direito internacional, associações de advogados e sociedades de direito —, confirma essa situação. De acordo com o estudo, de fato o encarceramento tornou-se uma rotina no País. Em alguns tribunais, mais de um terço das pessoas detidas por furto, crime de menor potencial ofensivo, tinham passado mais de 100 dias privadas de liberdade e muitas teriam passado mais tempo presas provisoriamente do que se tivessem cumprido a pena eventualmente recebida.
Diante desse quadro, Mendes iniciou uma campanha para reduzir o número de presos provisórios. A população carcerária no Brasil é a quarta maior do mundo. Em setembro do ano passado, havia 472.482 pessoas detidas. Destes, 264.940 eram condenados e 207.542 (44%) estavam sendo mantidos em regime de prisão provisória. Assim, os conselheiros do CNJ aprovaram, em novembro do ano passado, a Resolução 66, para disciplinar o acompanhamento desses casos. A norma enfatizou a responsabilidade dos juízes quanto à necessidade de maior controle das prisões ocorridas nos casos de flagrante delito. E também estabeleceu a obrigatoriedade de os magistrados reverem todos os inquéritos judiciais ou procedimentos policiais que não tenham sido movimentados por um período de dois meses e pelos quais os acusados tenham sido presos em flagrante. A norma deixou mais clara a responsabilidade dos magistrados, portanto, de providenciar a soltura dessas pessoas ou acelerar os procedimentos judiciais para o andamento do processo.
A atuação nesta área culminou com a criação do Plano de Gestão para o Funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal, aprovado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça. O planejamento é composto por um conjunto de medidas que visam à modernização do sistema penal brasileiro e contém propostas de resoluções administrativas e outro conjunto de alterações legislativas, que já foram entregues pelo Presidente do CNJ ao Congresso Nacional. Mendes pediu o empenho dos tribunais para a concretização das sugestões apresentadas. Diante de tantas ações, não foi sem razão que 2010 foi classificado como o ano da Justiça Criminal no Brasil.
O plano prevê mudanças em cada uma das fases processuais: inquérito policial, prisão em flagrante e seu exame de legalidade e relaxamento, prisão em flagrante e decretação de preventiva ou concessão de liberdade provisória, assim como a prisão preventiva. Fixa também a necessidade de rotinas “em que se pese a simplicidade do procedimento judicial”. Ao abrir o 1º Seminário do Ano da Justiça Criminal, realizado pelo Conselho no início de abril, em Brasília, Mendes pediu o empenho de todos os tribunais para rápida adoção das propostas sugeridas no planejamento.
“Avançamos bastante e conseguimos somar os apoios devidos para as mudanças nas mais diversas questões. Creio, então, que avançamos de forma significativa com os mutirões carcerários e a criação do departamento de monitoramento do sistema prisional. Em suma, são muitas medidas que vão ficar e terão continuidade. Elas mudaram a face do Judiciário até no que diz respeito à assunção de responsabilidade”, afirmou o Ministro.
Paralelamente à atuação no campo carcerário, Mendes desenvolveu diversas ações para o aprimoramento dos tribunais. O estabelecimento de metas foi uma delas. Essas medidas ganharam notoriedade no ano passado, com a fixação das 10 metas de nivelamento, durante o Encontro Nacional do Judiciário, realizado em fevereiro de 2009, em Belo Horizonte, Minas Gerais. A meta mais famosa foi a de número 2 — que teve como objetivo promover o julgamento de todas as ações distribuídas até 31 de dezembro de 2005. O esforço resultou na apreciação de 2,72 milhões de processos anteriores a essa data e ainda pendentes de julgamento. “Sem o engajamento dos tribunais não teríamos obtido resultados tão expressivos”, disse o Ministro. Em fevereiro deste ano, os presidentes de todos os tribunais do País voltaram a se reunir na terceira edição do Encontro Nacional do Judiciário, que desta vez aconteceu em São Paulo. Na ocasião eles fizeram um balanço das metas estabelecidas e aprovaram novos objetivos a serem alcançados ainda neste ano.
São as novas metas de nivelamento do Poder Judiciário: (1) julgar quantidade igual de processos de conhecimento distribuídos em 2010 e parcela do estoque, com acompanhamento mensal; (2) julgar todos os processos de conhecimento distribuídos até 31 de dezembro de 2006 e, quanto aos processos trabalhistas, eleitorais, militares e da competência do Tribunal do Júri, até 31 de dezembro de 2007; (3) reduzir em pelo menos 10% o acervo de processos na fase de cumprimento ou de execução e, em 20%, o acervo de execuções fiscais; (4) lavrar e publicar todos os acórdãos em até 10 dias após a sessão de julgamento; (5) implantar método de gerenciamento de rotinas em pelo menos 50% das unidades judiciárias de 1º grau; (6) reduzir em pelo menos 2% o consumo per capita (magistrados, servidores, terceirizados e estagiários) com energia, telefone, papel, água e combustível; (7) disponibilizar mensalmente a produtividade dos magistrados no portal do tribunal, em especial a quantidade de julgamentos com e sem resolução de mérito e homologatórios de acordos, subdivididos por competência; (8) promover cursos de capacitação em administração judiciária, com no mínimo 40 horas, para 50% dos magistrados, priorizando-se o ensino à distância; (9) ampliar para 2 Mbps a velocidade dos links entre o tribunal e 100% das unidades judiciárias instaladas na capital e, no mínimo, 20% das unidades do interior; e (10) realizar, por meio eletrônico, 90% das comunicações oficiais entre os órgãos do Poder Judiciário, inclusive cartas precatórias e de ordem.
Aos poucos, o CNJ começa a apontar os caminhos para a adoção destas metas. Em relação à Meta 3, por exemplo, estimativas indicam a existência de 25 milhões de processos de execução fiscal atualmente em tramitação nos tribunais do País. Por essa razão, o órgão de fiscalização e estratégia da Justiça realizou um workshop, no último dia 14 de abril, para definir o conteúdo exato dos estoques a serem reduzidos e estabelecer os procedimentos para se alcançar este objetivo. Essa, aliás, vem sendo uma prática há algum tempo realizada pelo Conselho.
São inúmeros os eventos promovidos e fóruns criados pelo CNJ para discutir as mais diversas questões: a criação de Juizados Especiais de Violência Contra a Mulher, o papel da Justiça no que diz respeito à regularização fundiária, a melhor gestão financeira e orçamentária, as melhores práticas de gestão ambiental, entre tantos outros assuntos são alguns exemplos. O diálogo e a troca de experiências com os dirigentes dos tribunais e a base da Magistratura se tornaram uma constante.
Outra medida instituída pelo CNJ também importante diz respeito à transparência do Judiciário. A Resolução 102, editada pelo órgão, obrigou que todos os tribunais do País divulgassem informações relativas ao orçamento e aos gastos que executam. Segundo Mendes, os dados levantados pelo “Justiça em Números” mostram que é preciso melhorar muito a gestão administrativa dos tribunais. É papel do Conselho, portanto, ajudar as cortes a terem uma adequada gestão dos recursos públicos disponíveis. “Até aqui, sempre tivemos uma atitude reivindicatória militante, culpamos o Executivo e o Legislativo pela falta de recursos no Judiciário, mas os tribunais têm que levantar primeiro se estão aplicando bem os recursos hoje disponíveis”, afirmou o Ministro.
Esses são apenas alguns exemplos dos projetos e programas empreendidos por Gilmar Mendes à frente do Conselho Nacional de Justiça. Foram tantas ações que se torna difícil enumerá-las. O Ministro resume todas como fundamentais para aperfeiçoar o Poder Judiciário. E o aspecto mais positivo, na avaliação dele, é o de que todas as medidas partiram da própria Justiça. “A descoberta de que há falta de gestão é nossa, do CNJ. Os números vêm nos apontando vários problemas na aplicação e no aproveitamento dos recursos. Tanto que temos tribunais extremamente caros e que não são céleres. Isso mostra que recursos humanos ou gastos excessivos não resolvem o problema, porque há a questão da gestão”, explicou.
A mesma linha de raciocínio foi adotada pelo Ministro ao longo de seu mandato no Supremo Tribunal Federal — a mais alta corte do País. No ano passado, por exemplo, foram editadas 14 novas Súmulas Vinculantes, somando um total de 27. Esse instrumento, juntamente com a Repercussão Geral, tornou mais ágil e efetiva a prestação jurisdicional. Também na gestão de Mendes, o Plenário do STF realizou 72 sessões em que foram proferidas 2.823 decisões — finais, liminares ou interlocutórias. A corte realizou julgamentos importantes, entre os quais o que definiu a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, a validade da Lei de Imprensa, o direito de se recorrer em liberdade, a necessidade ou não de se exigir diploma de jornalismo, o monopólio dos Correios e a extradição do italiano Cesare Battisti.
Na gestão de Mendes, destacou-se também o incremento da Central do Cidadão, que se tornou um importante canal de comunicação da corte com a sociedade. No ano passado, o órgão recebeu 14.600 comunicações, acumulando mais de 31.000 contatos recebidos desde sua criação, em maio de 2008. Cerca de 27,29% dos habeas corpus autuados em 2009 foram iniciados por esse setor.
O uso cada vez maior da tecnologia também chamou a atenção no mandato do Ministro. O Supremo iniciou testes com as Defensorias Públicas e os Ministérios Públicos Estaduais, para o desenvolvimento da versão eletrônica dos processos judiciais. Assim, passou a implantar os módulos eJud Processamento Inicial; eJud Consulta Processual; eJud Criminal (Controle eletrônico de HC e de Prescrição); eJud Registro Simplificado; e-STF Petição Eletrônica; Telex Eletrônico; e e-STF-Sessões.
O Tribunal foi a primeira Suprema Corte no mundo a ter uma página oficial no YouTube — a exemplo da Casa Branca, do Congresso norte-americano, da Família Real inglesa e do Vaticano. Este instrumento permitiu, inclusive, que o informativo do STF, enviado por e-mail a diversos usuários cadastrados no mundo todo, possuam link ao vídeo de cada julgamento resumido. Um levantamento do dia 3 de novembro mostrou que desde a data de lançamento a página alcançou a marca de 54,4 mil acessos.
Outro ponto alto da gestão do Presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ está relacionado ao fortalecimento da parceria institucional entre Judiciário e Congresso. Mendes destacou que esses Poderes vêm estreitando o diálogo cada vez mais, o que tem contribuído para a melhoria da Justiça. Como exemplo, ele citou a aprovação de uma série de projetos que se tornaram lei e hoje ajudam a fortalecer o Judiciário. Entre os quais, a criação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do CNJ, que possibilitou ao órgão fiscalizar os sistemas carcerário, prisional e de internação, e as iniciativas para ampliar a ação da Defensoria Pública.
Polêmico, Mendes nunca deixou de falar o que pensa sobre os mais diversos acontecimentos econômicos, sociais e até políticos do País, enquanto esteve na presidência dos dois mais importantes órgãos da Justiça. Por isso, foi várias vezes criticado, principalmente por aqueles que acreditam que os juízes somente devem falar nos autos. No entanto, o Ministro não demonstra nem um pouco de arrependimento por sempre ter se expressado. “Acho que falei o necessário. Ninguém discorda que o juiz deve falar nos autos, mas por se tratar de alguém com responsabilidade institucional de Presidente do STF, do CNJ e da chefia do próprio Judiciário, existem as responsabilidades para além do que está sendo julgado. O fato é que o papel do Tribunal também mudou muito nos últimos anos. A Reforma do Judiciário e o CNJ exigem uma postura diferenciada do Presidente do STF como líder que deve ser do Judiciário”, enfatizou.
Não é sem motivo, então, que o Ministro diz que deixará o cargo com a sensação de dever cumprido. Mendes disse que praticamente cumpriu tudo o que havia planejado para o Supremo e o Conselho Nacional de Justiça. “Estabelecemos metas e elas foram cumpridas. Um ou outro tópico poderia ter tido um maior desenvolvimento, mas isso é assim mesmo dentro do processo administrativo e político”, afirmou Gilmar Mendes.
“Não me arrependo de nada. Estou em paz comigo mesmo, satisfeitíssimo de tudo o que fizemos e acredito que avançamos muito em termos de administração judiciária e de fortalecimento das instituições. O Judiciário sai mais forte hoje do que antes da minha gestão e não ao contrário”, concluiu.

Revista Justiça & Cidadania – Ministro, durante a sua presi­dência celebramos 20 anos da Constituição de 1988. Qual o papel do Judiciário nesse atual momento da democracia brasileira? Como o Sr. vê o desenvolvimento do Judiciário durante a sua gestão? Quais as perspectivas para o futuro?
Gilmar Mendes – As mais de duas décadas da promulgação da Constituição de 1988 — que completará 22 anos em outubro — representam o mais longo período de estabilidade democrática e normalidade institucional de nossa vida republicana, iniciada em 1889. A opção do Constituinte de 1988 pelo exercício simultâneo e harmonioso do Poder por diversos agentes políticos parece ser o grande responsável por esse equilíbrio institucional.
A Constituição confiou ao Poder Judiciário papel até então não outorgado por nenhuma outra: conferiu-lhe autonomia institucional, desconhecida na história de nosso modelo constitucional e digna de destaque também no plano do Direito Comparado; buscou garantir a autonomia administrativa e financeira do Judiciário; e assegurou também a autonomia funcional dos magistrados. Nesse contexto, o princípio da proteção judicial efetiva passou a configurar a pedra angular do sistema de proteção de direitos, orientando esforços na busca de uma ampliação do acesso ao Judiciário pelos setores menos favorecidos da sociedade brasileira.
Nesse sentido, a concretização de um Judiciário célere e eficiente é não apenas um imperativo reclamado pelo preceito constitucional de efetividade da justiça, mas também um pressuposto para o próprio desenvolvimento econômico do Brasil e para a realização de um verdadeiro Estado de Direito.
Esse ideal tem pautado historicamente a ação do Supremo Tribunal Federal e está na origem da própria criação do Conselho Nacional de Justiça.  Tenho certeza de que durante os últimos dois anos tivemos uma significativa evolução quanto à transparência e independência do Poder Judiciário. Essas são características essenciais de regimes democráticos maduros e não tenho dúvidas da continuidade desse movimento de fortalecimento institucional do Judiciário no futuro próximo.

JC – Como o Sr. analisa a atuação do CNJ nestes
últimos 2 anos?
Gilmar Mendes – Por meio da atuação do CNJ, nesses últimos dois anos o Judiciário brasileiro deparou-se cara a cara consigo mesmo e, enfim, enfrentou o hercúleo desafio de se autoconhecer. Através de sua atuação eficiente  foi possível mapear as reais dificuldades de cada órgão e, por meio dessa autêntica autorradiografia, adveio diagnóstico para muitos surpreendente. Ao contrário do pensamento outrora comum, a lentidão que se atribui à atividade jurisdicional é pontual e concentrada, como revelam os dados alusivos ao cumprimento da Meta 2, celebrada para julgar todos os processos protocolados até 31 de dezembro de 2005 e que mobilizou desde as comarcas mais distantes até o próprio Supremo Tribunal Federal.
Não há como deixar de aplaudir o admirável empenho de servidores e magistrados que, nem mesmo diante do tamanho da complexidade da tarefa, amesquinharam o afã de construir soluções concretas e criativas, inclusive em vista da escassez de recursos e da premência do tempo, como atesta o julgamento dos cerca de dois milhões e quinhentos mil processos protocolados antes de 2006, entre eles processos que há décadas aguardavam uma solução definitiva.
Expressivos também foram os resultados do programa “Mutirões Carcerários”, que deu origem a outras iniciativas igualmente importantes, como os programas “Começar de Novo” e “Advocacia Voluntária”, a merecerem destaque em virtude de atenderem, a um só tempo, tanto à obrigação de garantir o respeito inconteste aos direitos fundamentais quanto à necessidade de prevenir a reincidência criminal, item básico a qualquer projeto bem sucedido de segurança pública.

JC – E qual seria então o papel do magistrado? O Sr. defende o ativismo judicial?
Gilmar Mendes – É função do Poder Judiciário exigir o respeito aos direitos fundamentais. Não há nessa tarefa, no entanto, desejo de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático. Não há “judicialização da política”, pelo menos no sentido pejorativo do termo, quando os temas políticos estão configurados como verdadeiras questões de direitos. Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal.
Como já disse antes, o Supremo Tribunal Federal tem a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância ao Estado Constitucional. Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo político, inteligente e suprapartidário, além do que, nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A interpretação e a aplicação da Constituição são tarefas cometidas a todos os Poderes, assim como a toda a sociedade.

JC – A atuação do Sr., seja no STF, seja no CNJ, é marcada por uma profunda preocupação com a questão do devido processo legal e sua conexão com a garantia da dignidade humana. Quanto a isso, como o Sr. analisa a atuação do Judiciário em relação a atual situação no sistema penitenciário brasileiro?
Gilmar Mendes – O Sistema Carcerário Brasileiro tem sido uma preocupação constante do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, que têm trabalhado em várias frentes, no tocante a tal problemática.
Quanto a isso, ressalto especialmente os Mutirões Carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça, por meio dos quais, em pouco mais de um ano foram analisados mais de 105 mil processos, resultando na concessão de aproximadamente 35 mil benefícios previstos na Lei de Execução Penal, dentre os quais mais de 20,7 mil liberdades.
Também merece destaque o projeto “Começar de Novo”, o qual tem o objetivo de, mediante campanha institucional, sensibilizar a população para a necessidade de recolocação de egressos de presídios no mercado de trabalho e na sociedade. Nesse sentido, ele é mais um dentre as diversas iniciativas que o CNJ tem desenvolvido, em cooperação com os demais Poderes e com a sociedade civil, com o objetivo de garantir o efetivo cumprimento da Lei de Execução Penal e dos direitos fundamentais dos sujeitos do processo penal e dos detentos e egressos do sistema carcerário brasileiro.
A atuação do Poder Judiciário, chamando a si a sua parte da responsabilidade pela atual situação carcerária brasileira e atuando efetivamente para garantir a realização dos direitos dos presos, demonstra o quanto pode ser realizado quando existe verdadeiro comprometimento por parte das instituições com a concretização dos direitos fundamentais declarados na Constituição.

JC – Quais os principais avanços que o Sr. identifica, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nestes últimos dois anos?
Gilmar Mendes – Desde a Reforma do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal tem passado por uma verdadeira revolução. Quanto a isso, nesses dois últimos anos concretizamos aquilo que a Reforma idealizava.
Assim, merece especial destaque a significativa redução de feitos — cerca de 40% a menos de processos distribuídos por dois anos consecutivos —, que ensejou espaço e ambiente necessários ao julgamento de questões de grande repercussão no cotidiano das pessoas e na estrutura institucional do País, tais como a controvérsia acerca da realização de pesquisas científicas com células embrionárias humanas; julgamentos relativos à fidelidade partidária; à proibição do nepotismo no âmbito de toda a administração pública nacional; a edição de medidas provisórias sobre créditos extraordinários; a constitucionalidade da especialização das varas; o piso salarial dos professores; a limitação do uso de algemas; a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol; a não recepção da Lei de Imprensa; o livre exercício da profissão de jornalista; a exclusividade da prestação de serviço público pelos Correios; o direito de recorrer em liberdade; a constitucionalidade da lei de recuperação de empresas e da proibição de importar pneus usados; além da extinção do crédito-prêmio IPI; e a irretroatividade da PEC dos Vereadores, entre tantos outros.
Ressalto ainda a edição de 27 súmulas vinculantes e o julgamento de 56 questões constitucionais de repercussão geral e iniciamos o julgamento de outras 13. O efeito ordenador de tais julgamentos acentua-lhes enormemente a importância, já que acrescentam racionalidade à dinâmica processual do sistema de justiça como um todo.
Isto é, a redução da distribuição permitiu que o STF pacificasse um número mais expressivo de controvérsias constitucionais, como demonstram os dados acima. Por outro lado, o STF avançou bastante na divulgação de suas decisões, não só em privilégio da transparência, como em verdadeira função pedagógica. Daí a mudança da programação da TV Justiça, com forte conteúdo educativo; o convênio com o YouTube, que já conta com mais de 1 milhão de acessos desde outubro de 2009, o lançamento do Twitter, com milhares de seguidores etc.
Essa atuação avulta o papel do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional responsável por garantir a realização dos direitos fundamentais, assim como o equilíbrio institucional conducente ao fortalecimento do Estado de Direito.