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Notas sobre advocacia e colaboração premiada

31 de julho de 2022

Presidente da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros

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I. Introdução

Quem conhece a legislação penal brasileira sabe que o instituto da colaboração premiada não é novo. Há mais de 30 anos, a Lei nº 8.072/1990 (Lei dos crimes hediondos) o incorporou ao nosso ordenamento jurídico sob a denominação de delação premiada.

Em seguida, a Lei nº 9.034/1995 (Lei do crime organizado), a Lei nº 9.080/1995, que alterou as leis nº 7.492/1986 (Lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional) e nº 8.137/1990 (Lei dos crimes contra a Ordem Tributária e relações de consumo), a Lei nº 9.613/1998 (Lei da lavagem de dinheiro), a Lei nº 9.807/1999 (Lei da proteção à testemunha), a Lei nº 11.343/2006 (Lei das drogas) e a Lei nº 12.529/2011 (Lei da defesa da concorrência) também contemplaram a delação premiada e o acordo de leniência ou ampliaram benefícios de redução de pena e perdão judicial para quem admitisse participação delituosa e cooperasse para a identificação de autores, a elucidação dos fatos e a recuperação de produto do crime.

No entanto, a falta de uma disciplina clara sobre procedimento, obrigações, garantias e benefícios não inspirava segurança aos jurisdicionados, tornando raros os acordos durante longos anos.

Esse modelo de justiça negocial ganhou espaço com a Lei nº 12.850/2013 (Lei da organização criminosa), que instituiu regulamentação mais estruturada.

Em paralelo, surgiu a investigação que seria alcunhada de Operação Lava-Jato e ganharia excepcional dimensão, expandindo intensamente a utilização do instituto da colaboração premiada, o que também gerou severas distorções e expôs graves lacunas que demandaram balizamentos da jurisprudência, notadamente do Supremo Tribunal Federal, e da posterior Lei nº 13.964/2019.

Mais recentemente, a Lei nº 14.365/2022 introduziu, entre outras disposições, o §6º-I no art. 7º da Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), para corrigir uma das patologias advindas da disseminação da colaboração premiada, estipulando que é “vedado ao advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente”, sujeitando-o, em caso de descumprimento, a sanção disciplinar, sem prejuízo da pena prevista para o crime de violação de segredo profissional (art. 154 do Código Penal).

II. Controvérsia entre os advogados

Até 2013, delação ou colaboração premiada não era um tema relevante para a advocacia criminal brasileira. Esses pactos eram raríssimos, e a grande maioria dos criminalistas nunca havia participado de nenhum. Com a Lei de Organização Criminosa e os primeiros acordos no âmbito da Operação Lava Jato, o panorama mudou. Colaboração premiada virou assunto de mesa de bar. Clientes começaram a considerá-la e, mais do que isso, a procurar advogados dispostos a seguir com eles por esse caminho.

Embora veementes as críticas da maioria ao instituto, sobretudo aos desvirtuamentos no âmbito da Operação Lava Jato, como prisões abusivas para forçar colaborações, manipulações de prova, overcharging, vazamentos propositais para exploração midiática e homologações de acordos sem elementos externos de corroboração, paulatinamente renomadas bancas passaram a prestar assistência jurídica a interessados na solução negociada. A controvérsia entre colegas da área penal se acirrou.

Renato Tonini, em parecer publicado no Boletim nº 6 da Sociedade dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro (Sacerj), anota que importantes vozes da advocacia se opõem ao instituto por considerarem que “o advogado que participa de uma colaboração premiada presta auxílio aos interesses repressivos do Estado, corrompendo a sua função primordial de contenção do poder punitivo, deixando de oferecer resistência à vontade acusatória”, ou seja, traindo o dever profissional e incorrendo em desvio ético.

Tonini, porém, observa que as críticas se dirigem mais aos operadores que cometem abusos do que à conformação legal do instituto, e conclui, com robusta fundamentação, que não ofende os princípios éticos a atuação do advogado na assistência ao agente colaborador, embora ressalve a necessidade de atualização do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O tema também ensejou profundos debates internamente na Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

III. Impacto nas relações profissionais 

Quando as colaborações premiadas se ampliaram e a advocacia criminal, de um modo geral, reduziu as suas resistências, as relações entre advogados e clientes e entre os próprios advogados foram afetadas.

A polícia e o Ministério Público deixaram de ser os únicos potenciais adversários. E o rigoroso dever de sigilo que recai sobre os participantes do acordo (celebrante, colaborador e advogado), enquanto não homologado e não oferecida denúncia, gerou insegurança e desconfiança entre pessoas próximas, consortes de infortúnio, e entre colegas advogados atuantes numa mesma causa.

Mais grave, contudo, foram as situações extremas em que o sagrado sigilo entre cliente e advogado chegou a ser trocado por benesses individuais. Tanto houve clientes constituindo novo advogado e delatando o anterior, como alguns advogados se tornaram colaboradores em acordos nos quais incriminaram seus próprios clientes ou ex-clientes. Daí a inovação recente no Estatuto da Advocacia.

IV. O papel do defensor nos acordos de colaboração premiada

A lei atribui ao defensor, privado ou público, papel fundamental no acordo de colaboração premiada, reputando-o imprescindível em todos os momentos.

Ao contrário do que alguns imaginam, sem experiência prática, o advogado não se torna mero aliado dos órgãos de persecução. Ao revés, desenvolve trabalho também árduo visando a redução de danos, muitas vezes evitando encarceramento, mesmo com o desequilíbrio que a gestão dos elementos de prova pela polícia e pelo Ministério Público costuma provocar. Tudo isso se insere entre os legítimos recursos de defesa, como já era a confissão espontânea.

Qualquer profissional pode amesquinhar-se e olvidar-se do seu munus, o que também acontece no exercício convencional da defesa, porém não é essa a essência do papel do advogado nesses acordos.

V. A impossibilidade legal da colaboração de advogado contra cliente ou ex-cliente

Pierpaolo Bottini e Heloisa Estelita, em artigo intitulado “Sigilo, inviolabilidade e lavagem de capitais no contexto do novo Código de Ética” (revista eletrônica Migalhas nº 5.376), sublinham que “a confiança é a base da relação do advogado com seu cliente”, “da qual deriva o dever de sigilo profissional e, pois, a inviolabilidade das informações e documentos guardados pelo advogado e das comunicações com seu cliente”, e que “o advogado é, em verdade, o garante da Justiça material”, pois esta “demanda uma defesa técnica efetiva, e só pode fazê-la o advogado que estiver em posse de todas as informações relevantes para a defesa de seu representado”.

Se é inconcebível obrigar o advogado a reportar operação “suspeita” de seu cliente conhecida no exercício típico da advocacia, ainda mais absurdo é que ele se torne algoz do próprio cliente para conquistar para si próprio sanção premial, compartilhando informações obtidas com a assistência jurídica que prestou.

Ao proibir colaboração premiada do advogado contra cliente ou ex-cliente, o §6º-I do art. 7º da Lei nº 8.096/1994 explicita o que se pode extrair da interpretação sistemática da Constituição Federal e da legislação ordinária. Era fundamental essa reafirmação de garantias, prerrogativas e valores para a cidadania.

O Judiciário terá que rever as colaborações premiadas de advogados já homologadas e utilizadas em persecuções penais. Evidente que a vedação agora expressa na lei repercute retroativamente, até porque, na essência, reconhece ilicitude probatória. Vale dizer, são nulos esses acordos e tudo aquilo que deles derivou, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, LVI) e do Código de Processo Penal (art. 157).

VI. Conclusão

Numa perspectiva de forte tendência de manutenção da colaboração premiada no nosso ordenamento jurídico, e não de avaliação crítica de conveniência, legitimidade ou moralidade do instituto, a vedação à colaboração premiada de advogado contra cliente ou ex-cliente, incorporada ao Estatuto da Advocacia, é essencial para a preservação da confiabilidade na profissão referida por Voltaire como a mais bela carreira humana.

Inobstante, como advertiu Geraldo Prado em 2018, em palestra durante o 24º Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), citada por Sergio Rodas em matéria da revista eletrônica Conjur: “No Estatuto da Advocacia, no âmbito do Código de Ética dos Advogados, é necessário que haja um capítulo sobre delações e acordos de leniência com orientação sobre como devem proceder os advogados e escritórios”, assim como é preciso “instituir uma estrutura de conhecimento de fontes de provas em delações” para reduzir a posição de inferioridade do colaborador.

Essas são providências recomendáveis para o aperfeiçoamento da normatização deontológica da advocacia e para minimizar a assimetria entre órgãos de persecução penal e potencial colaborador incompatível com os princípios que orientam o processo penal num Estado Democrático de Direito.