Nova competência do juiz da Justiça Militar

7 de janeiro de 2022

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A Justiça Militar brasileira passou a integrar o Poder Judiciário a partir da Constituição de 1934, mas sua organização iniciou-se nos anos mil e seiscentos em Portugal. O Superior Tribunal Militar (STM) é considerada a corte superior mais antiga do País, devido à criação do Conselho Supremo Militar e de Justiça em 1808. Desde então, funciona ininterruptamente. Foi do Reino Unido ao Império, depois à República, quando passou a denominar-se Supremo Tribunal Militar. Obteve o atual nome na Constituição de 1946. Originou-se do Conselho de Guerra de Lisboa (1640), órgão da alta administração do Reino, integrado por marechais, almirantes e generais, e três desembargadores do Paço, com competência para julgar apelações, embargos e outros recursos de crimes militares. 

O Processo Penal Militar atual decorre de legislação de 1895, reformada em 1920, quando foram criados o Ministério Público Militar e a Advocacia-de-Ofício, que é o órgão embrionário da Defensoria Pública no País. Está vigente o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/1969), formando com o Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969) e a Lei de Organização Judiciária Militar (Lei nº 8.457/1992), o principal acervo legislativo da jurisdição castrense.

Recentemente, duas novas leis alteraram profundamente a jurisdição militar: a Lei nº 13.491/2017 e a Lei nº 13.774/2018. A primeira ampliou a competência criminal instituindo os crimes militares por extensão. Lei de natureza híbrida, trouxe para a jurisdição especializada o arcabouço das leis penais brasileiras. A segunda, atualizou a Lei de Organização Judiciária Militar, produziu significativas alterações e modificou a Lei nº 8.457/1992. Transformou os cargos de juiz-auditor e juiz-auditor substituto em cargos de juiz federal da Justiça Militar, instituiu a competência monocrática para o magistrado togado, modificou a Auditoria de Correição para Corregedoria da Justiça Militar, dentre outras inovações.

Historiadores do Direito mencionam que a figura do auditor era conhecida no ano 305 d.C., nos primórdios da organização dos exércitos. O imperador romano Constantino (273-337) criou o magistri militum para julgar militares. O cargo foi adotado pelo Direito ibérico no Século XVI com os auditores de campo nos Conselhos de Guerra. Felipe II os designou em 1533 para manter os exércitos “em buena disciplina y justicia”. Legislação portuguesa de 1570 reporta-se ao auditor da Armada e sua competência judicial (“Regimento dos capitães-mores”). Alvarás régios citam a criação do auditor de guerra e de marinha, destacando-se o “Regimento dos auditores” de 1678, em que restou fixada a sua competência jurisdicional. (“25º. Os auditores de todas as províncias d’este reino são juízes privativos de todos os crimes cometidos pelos cabos e soldados pagos, cada um na sua província…”).

No Brasil, o cargo foi considerado militar até 1908, mas reconhecida sua exclusiva atuação de justiça nos conselhos de guerra. De magistrados militares na organização do exército e da armada, a lei retirou-lhes o posto e a patente através de lei de 1908, e formou um quadro de juízes federais civis, cuja denominação em 1920 passou a ser auditor, nomenclatura que permaneceu até a década de 1960, quando mudou para juiz-auditor. No Direito Comparado, verifica-se em muitos países a denominação de auditor e também de juiz militar de primeira instância. Poucos são os países que mantém o cargo de natureza civil, pois a maioria adota o sistema de cortes marciais, nas quais os juízes, promotores e advogados ocupam postos e possuem patentes. 

O modelo brasileiro é praticamente isolado no contexto mundial, haja vista que dos 193 países soberanos que fazem parte da Organização das Nações Unidas (ONU), a Justiça Militar brasileira é das poucas na estrutura do Poder Judiciário. Cabe observar que a exigência de concurso público para a magistratura militar ocorreu com o Decreto 12.095, de 14/06/1916.

Competência monocrática

A nova lei de 2018 fixou a jurisdição monocrática para o juiz federal da Justiça Militar, ao lado da jurisdição colegiada, na qual ocupa a presidência dos conselhos de justiça compostos por quatro oficiais, cuja competência é o processo e julgamento dos crimes atribuídos aos réus militares. Na lei anterior, uma vez instaurada a ação penal, todos os atos do processo tinham a participação do colegiado sob a presidência do oficial de mais alto posto, e o juiz-auditor exercia a sua jurisdição de juiz-relator. Na nova sistemática, a presidência é conferida ao juiz federal, único exemplo em todo o mundo no qual a presidência de um órgão de justiça militar integrado majoritariamente por militares é atribuída ao magistrado civil de carreira. 

A competência monocrática do juiz togado existia apenas nos processos cautelares e de execução de sentença. Com a nova lei, foi consideravelmente ampliada para o processo e julgamento de civis, também quando denunciados militares em concurso. Nestes casos, o juiz federal atua com jurisdição em todas as fases do processo – do recebimento de denúncia até a sentença, sem qualquer intervenção do conselho de justiça. Portanto, a jurisdição militar dividiu-se em monocrática e colegiada, com o julgamento de civis exclusivamente sob a competência do juiz togado de carreira. 

Trata-se de notável alteração da competência, pois submete o acusado civil ao julgamento do magistrado togado em juízo natural, na exata isonomia com a jurisdição comum. 

A nova lei atribuiu ainda ao juiz togado, em jurisdição isolada, o processo e julgamento das ações de habeas corpus, habeas data e mandado de segurança contra atos de autoridades militares, exceto oficiais-generais, hipótese em que a competência reside no segundo grau. Na antiga lei, não havia essa competência para a primeira instância, privativa somente ao Superior Tribunal Militar.

Corregedoria 

A correição na Justiça Militar foi instituída com a Reforma da legislação de 1920, sendo realizada a primeira correição geral em 1922. No ano de 1930, houve a criação do cargo de auditor-corregedor e da auditoria de correição, alterada para Corregedoria da Justiça Militar pela nova lei, que também conferiu ao ministro vice-presidente do Superior Tribunal Militar a função de corregedor da Justiça Militar, além disso, transformou o cargo de juiz-auditor corregedor em juiz-corregedor auxiliar. A modificação colocou a Justiça castrense na precisa conformidade do sistema nacional de corregedorias, designando um dos membros do Tribunal para a função, cujo titular é eleito pelo plenário.

Do auditor de guerra e de marinha ao juiz federal da Justiça Militar decorreram cinco séculos, nos quais se pode apreciar a engenhosidade legislativa portuguesa, a revelar a evolução do Direito Militar até os dias atuais. Desde tempo muito antigo alvarás régios definiam a competência do magistrado e sua atuação nos conselhos de guerra. 

O Superior Tribunal Militar conserva nos arquivos registros de sentenças proferidas a bordo da esquadra aliada no estuário do Rio da Prata durante a Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870). Nos processos, oficiavam obrigatoriamente auditores de guerra e de marinha, sob pena de nulidade. Obtinha-se a prestação de justiça no próprio teatro de operações, uma peculiaridade da justiça aplicada em tempo de paz e tempo de guerra. O mesmo deu-se na II Guerra Mundial, quando foram incorporadas duas auditorias e um Conselho Superior na Força Expedicionária Brasileira (FEB).

As garantias da magistratura aos auditores foram asseguradas pelo Decreto-Lei nº 895/1938: “Os auditores são juízes vitalícios e inamovíveis, não podem perder seu cargo senão em virtude de sentença judiciária, exoneração a pedido, ou aposentadoria (…)”.

A jurisdição castrense da União conta hoje com o quadro de 38 juízes federais titulares e substitutos, os quais exercem atividades em todo o País nas 12 circunscrições judiciárias, além de um juiz-corregedor. As auditorias do Distrito Federal dispõem de competência extraterritorial para processar e julgar crimes militares ocorridos fora do País, nas circunstâncias definidas pela lei.

Desde a criação do auditor de guerra e de marinha no Século XVI, atravessando a Colônia e o Império até a República, o cargo foi concebido como magistrado independente, imparcial e possuidor de formação jurídica, de modo a conferir a devida aplicação da justiça nos exércitos, com a valorização do magistrado togado nos tribunais castrenses.