O consumismo como fator comprometedor à celeridade processual e meios de contenção da demanda

5 de julho de 2021

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Fatores comprometedores à celeridade processual

Consoante o Relatório Justiça em Números 2020, emitido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas em 2019 ingressaram na Justiça brasileira 30,2 milhões de novos processos. Em média, a cada grupo de 100 mil habitantes, 12.211 ajuizaram uma ação.

Ainda nesse mesmo período, cada magistrado arquivou 2.107 processos, o que representa 8,4 processos por dia útil. Todavia, apenas 12,5% das sentenças proferidas tiveram como objeto a homologação de acordo.

Dessa breve análise, portanto, o que se vê é a escassa procura pela autocomposição. E a consequência é evidente: o prejuízo à célere tramitação do processo.

Com efeito, a submissão do mérito de todo e qualquer dissabor ao exame judicial se apresenta como fator de congestionamento processual de grande relevo e, atuar, seja na admissão dos processos, seja na causa desses dissabores, mostra-se crucial ao enfrentamento do problema de maneira eficaz.

Para além disso, os dados consolidados pelo CNJ colocam no topo da lista de assuntos mais demandados na Justiça Estadual aqueles afetos à responsabilidade do fornecedor de produtos e serviços e indenização por dano moral no âmbito do Direito do Consumidor.

Esse ranking bem revela a posição do consumismo na atualidade, embora evidentemente não seja ele a única causa desse número exacerbado de ações, já que é notória a dificuldade dos jurisdicionados exercerem seus direitos administrativamente diante de parte das grandes empresas.

Consumismo

Enquanto o consumo é tão antigo quanto o nascimento da humanidade e relacionado às necessidades básicas dos indivíduos, o consumismo é incessante e volúvel, marcado pelo momento em que o consumo passou a se “tornar o verdadeiro propósito da existência”.

A sociedade de consumidores é movimentada por desejos sempre crescentes e pela substituição constante dos bens. Nela, cada instante é uma oportunidade e há pressa para adquirir, e, principalmente, para descartar e substituir.

Nesse contexto, consumo seria uma característica e uma ocupação dos indivíduos, ao passo que consumismo pode ser visto como um atributo da sociedade, na medida em que a “sociedade de consumidores” é manipulada a desejar cada vez mais.

De se notar que, ainda na escolas, a marca do tênis, da mochila e até mesmo dos materiais escolares muitas vezes separam as turmas em classes sociais, fazendo com que os menos abastados usem o pouco que têm com a intenção de equiparar socialmente seus filhos aos demais, isentando-os dos sentimentos de humilhação e rejeição. Trata-se da comodificação do consumidor, da sua caracterização como uma mercadoria vendável.

Na sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria vendável é a mais envolvente preocupação do consumidor, ainda que de modo inconsciente.

A cultura de consumo encurta a distância temporal entre o desejo e sua satisfação, assim como entre a satisfação e o depósito de lixo. A “síndrome consumista” envolve velocidade, excesso e desperdício.

Feita essa análise, intuitivo concluir que esse agir inconsequente do consumidor, ainda que atraído pelas insistentes ofertas colocadas diante de si por diversos meios de comunicação, não raras vezes, chegará ao Poder Judiciário. Com efeito, ainda que sejam conhecidas as práticas abusivas muitas vezes praticadas pelo mercado, fato é que, por detrás do contrato, está o ato de consumo.

Direito de ação e meios de contenção de demanda

Ao monopolizar a jurisdição, coube ao Estado a obrigação de prestar a tutela jurisdicional a quem a pleitear. Trata-se, portanto, de um direito público e, mais que isso, de uma garantia fundamental, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República.

Porém, isso não significa que o direito de ação seja absoluto, pois se submete a pressupostos e condições, dentre elas, o interesse processual.

Conforme leciona Humberto Theodoro Júnior:

“Localiza-se o interesse processual não apenas na utilidade, mas especificamente na necessidade do processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto, pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgada sem uma necessidade […]”

Historicamente, as formas de resolução de conflitos estão classificadas em autodefesa, autocomposição e heterocomposição. Enquanto a primeira é a primitiva, remontando ao Código de Hamurabi (“olho por olho dente por dente”), distando muito do juiz imparcial e do devido processo legal, e tipificada atualmente como crime inclusive (Código Penal, art. 345), a segunda decorre da vontade das partes, podendo ocorrer dentro ou previamente a um processo judicial.

Já a heterocomposição consiste na solução da lide por pessoa estranha à relação jurídica e, portanto, imparcial. Pode tanto ser exercida pelo Estado quanto por um árbitro, nos termos da Lei nº 9.307/1996.

Para além dessa classificação, Humberto Dalla Bernardina de Pinho relaciona, como meios contemporâneos de resolução dos conflitos a negociação, a conciliação e mediação e a arbitragem.

Portanto, se a composição e o juízo arbitral não conflitam com o direito de ação, intuitivo concluir que constituem importe mecanismo de solução de lides.

“Não se trata de desacreditar a Justiça estatal, mas de combater o excesso de litigiosidade que domina a sociedade contemporânea, que crê na jurisdição como a única via pacificadora de conflitos, elevando a um número tão gigantesco de processos aforados, que supera a capacidade de vazão dos órgãos e estruturas do serviço judiciário disponível.

Partindo dessa premissa, o Supremo Tribunal Federal, em sede de regime de repercussão geral, firmou a seguinte tese: “A concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo legal para sua análise.”

A contar de então, inúmeras foram as decisões a exigir, como demonstração de interesse processual, não só nas ações previdenciárias, mas também nas de cunho securitário, o prévio requerimento administrativo. Tal requisito não é novidade e, há muito, integra os pedidos de exibição de documento bancário.

Mais recentemente, nas ações de cunho consumerista, passou-se a ver a exigência de prévia tentativa de resolução do impasse por meio da plataforma virtual consumidor.gov.br. Essa ferramenta permite a interlocução entre consumidores e fornecedores de modo extremamente facilitado, por meio da Internet. E, conforme boletim do ano de 2019, o índice médio de solução das contendas por meio do canal alcançou o expressivo patamar de 80,7%, muito diferente, repito, do índice de composição na Justiça Estadual, de somente 12,5%.

Instrumentos como esse, tanto pelo índice de satisfação, quanto pela agilidade – prazo médio de resposta de 6,5 dias – e praticidade – acesso via Internet – constituem, sem dúvida, importantíssima alternativa à judicialização.

Ao tempo em que contribuem para a rápida solução de conflitos, evitam a movimentação da máquina judiciária por questões de menor relevo e passíveis de serem resolvidas em sede de autocomposição, questões essas que muitas vezes mais geram despesas processuais do que reparação à parte prejudicada.

Considerações finais

O ato de consumir em excesso é sem dúvida um dos fatores que comprometem a celeridade processual. E, com todas as insatisfações sendo conduzidas ao Poder Judiciário, não há como garantir a sustentabilidade do sistema.

Em que pese o direito de ação constituir garantia fundamental, prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição da República, há medidas de contenção estruturadas e eficazes que com ele não conflitam, infelizmente, pouco aproveitadas pelos cidadãos.

Como se pode inferir do estudo, ainda há muito a rever de modo a permitir que a Justiça brasileira entregue à sociedade o retorno desejado, no tempo desejado, e isso depende, dentre outros fatores, de uma mudança cultural, além da aceitação e adesão aos meios extrajudiciais de resolução dos conflitos e quiçá, de uma alteração legislativa que integre em nosso ordenamento jurídico um regramento capaz de dar efetividade a esses recursos.

Notas

1 Justiça em Números 2020. CNJ, 2020.

2 BAUMAN, Zygmunt. “Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias”. Jorge Zahar Editora, 2008.

3 Idem.

4 Idem.

5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Curso de Direito Processual Civil”. Forense, 2020.

6 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. “Manual de Direito Processual Civil Contemporâneo”. Saraiva, 2020. 0

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Curso de Direito Processual Civil”. Forense, 2020.

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 631240/MG. Relator: Ministro Roberto Barroso, 10/11/2014. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur283852/false>. Acesso em: 27/01/2021.

9 Boletim 2019. Consumidor.gov.br, 2020. Disponível em <https://www.consumidor.gov.br/pages/publicacao/externo/ >. Acesso em 15/01/2021.