O direito à proteção de dados e a tutela da autodeterminação informativa

17 de janeiro de 2022

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O advento da rede mundial de computadores elevou as relações sociais a um nível transnacional, que atravessa os limites de tempo e espaço. Nesse contexto, a regulamentação da realidade digital apresenta dificuldades e desafios complexos, que exigem mecanismos legislativos específicos e suscetíveis a adaptações, pois a dinamicidade é característica essencialíssima da Internet. Trata-se da informação que traz consigo novos fenômenos como o big data, a pós-verdade, as redes sociais e as fake news.

Com os avanços da tecnologia, o acesso e o aproveitamento de dados pessoais passaram a ser considerados ativos empresariais de grande valia. Por certo, o refinamento das informações de um grande volume de dados diversificados (big data), possibilitou que não só o domínio econômico fosse afetado pela “Era da Informação”. Vislumbra-se, também, repercussões em outros âmbitos como o pessoal, nas próprias relações político-sociais e até no Direito do Consumidor.

A capacidade de tratamento universal das informações pessoais possibilita a identificação de tendências a partir de um conjunto de dados precisos que potencializam os resultados. Em regra, faz-se tratamento de dados com toda a população e o aumento da interação nas redes sociais, bem como dos negócios de compra e venda por meio virtual, tem intensificado o debate público, sobretudo no que se refere à liberdade e à proteção da privacidade e da reserva pessoal.

Nesse contexto, o Direito, em nível mundial, tem buscado se atualizar para melhor garantir a proteção dos direitos fundamentais à privacidade, individualidade, personalidade e informação. Frente à complexidade da realidade digital, a atualização dessa proteção fez surgir um novo direito intitulado “autodeterminação informativa”, que nada mais é do que a garantia que o indivíduo tenha o controle das informações sobre sua própria pessoa.

A própria Constituição Federal de 1988 inicia a previsão de proteção de dados no Brasil ao dispor sobre: direitos da personalidade, liberdade de expressão (inciso IX, art. 5º); inviolabilidade da intimidade e da vida privada (inciso X, art. 5º); sigilo de dados e comunicações telefônicas (inciso XII, art. 5º); direito à informação (inciso XIV, art. 5º); e até sobre o remédio constitucional habeas data (inciso LXXII, art. 5º).

“Não há mais dados insignificantes”, essa foi a constatação precoce e cirúrgica do Tribunal Constitucional alemão em 1983, no julgamento do caso denominado “censo demográfico”, em que se reconheceu a autodeterminação informativa, marcando um novo paradigma na tutela jurídica dos dados em todo o mundo. Se em outros períodos históricos o poder e a riqueza estavam na posse de terras e, após, na posse de bens de produção e do capital, hoje não há dúvidas de que detém poder aquele que detém mais informação, maior quantidade de dados.

No que se refere especialmente aos dados estatísticos, faz-se importante reconhecer que a elaboração dos censos é necessária, sobretudo porque subsidiam políticas governamentais e fundamentam o planejamento estatal. Ciente disso, o Tribunal alemão assentou que por mais que seja impossível determinar a estrita finalidade em que os dados serão utilizados ou mesmo para quais órgãos públicos específicos serão encaminhados, é imprescindível que haja a regulamentação do processamento desses dados com previsão legal dos procedimentos.

O Supremo Tribunal Federal, também em decisão histórica, teve a oportunidade de reconhecer a existência do direito à autodeterminação informativa no ordenamento brasileiro. O julgamento se deu em apreciação de medida cautelar no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6387), proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contra a Medida Provisória nº 954/2020, que determinava o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações prestadoras do serviço telefônico fixo comutado e do serviço móvel pessoal com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para fins de suporte à produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública decorrente do coronavírus (covid-19).

O Conselho Federal da OAB argumentou afronta ao postulado fundamental da dignidade da pessoa humana e às cláusulas fundamentais da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, bem como do sigilo de dados e da autodeterminação informativa (artigos 1º, inciso III e 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal). Dada a realidade brasileira de proteção de dados fragilizada, maior cuidado a MP impugnada deveria ter para não permitir que milhões de pessoas tenham direitos lesionados.

Apontou-se que a Medida não apresentava, de forma transparente, qual seria a proteção dos cidadãos quanto ao uso adequado dos dados, não garantia a participação do Judiciário, do Ministério Público e da advocacia, além de entidades da sociedade civil, na fiscalização quanto a tal uso; que a MP previa uma forma insegura de repasse de informações, por meio eletrônico e que também pretendia acessar os dados de todos os cidadãos brasileiros, quando a pesquisa por amostra de domicílio seria feita em reduzido número de residências.

O precedente tem relevância ímpar porque, apesar do Supremo já apresentar reiteradas decisões em proteção aos direitos de intimidade, privacidade, sigilo das comunicações, dos dados, etc., ainda não havia reconhecido expressamente a tutela constitucional do direito à autodeterminação informativa, que antes de ser positivada no art. 2º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei nº 13.709/2018) já poderia ser extraída diretamente do texto constitucional.

No julgamento dessa ADI, o Supremo assentou que a autodeterminação informativa é um direito fundamental autônomo extraído da garantia da inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da dignidade da pessoa humana. De forma ponderada, apontou que a suspensão de eficácia do ato questionado não subestima a gravidade do cenário de urgência decorrente da crise sanitária nem a necessidade de formulação de políticas públicas que demandam dados específicos para o desenho dos diversos quadros de enfrentamento, “o seu combate, todavia, não pode legitimar o atropelo de garantias fundamentais consagradas na Constituição”.

Desde que declarada a pandemia do coronavírus, esse período tem sido marcado por medidas excepcionais que tendem a favorecer o enfraquecimento de direitos individuais. Para a professora Clarissa Long, a pandemia da covid-19 tem criado uma oportunidade sem precedentes para os governos justificarem a expansão pós-pandêmica de políticas de vigilância e de coleta de dados tanto de cidadãos quanto de não-cidadãos.

O tratamento de dados pessoais tem ganhado destaque crescente nos ativos da economia digital, sinalizando que a repercussão dos dados como mercadoria está em franca expansão. Por essa razão, a privacidade dos indivíduos não pode ser ignorada pelo Direito, a partir disso é que os parlamentos, a doutrina e a jurisprudência nacional e internacional têm se atentado aos direitos gerais da personalidade.

Associando-se à disciplina protetiva dos dados pessoais, o Brasil promulgou a LGPD em 2018, inspirado na General Data Protection Regulation da União Europeia. Antes dessa norma, o Estado brasileiro já estabelecia algumas proteções indiretas no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), na Lei do Cadastro Positivo (Lei nº 12.414/2011) e no Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Com a edição da LGPD, que estava em desenvolvimento desde o ano de 2010, o Brasil foi inserido no grupo de países que goza de legislações completas sobre a proteção de dados.

Longe de se assumir uma postura ludista, de negação dos avanços tecnológicos – como quando trabalhadores ingleses se organizaram para quebrar as máquinas, no início da Revolução Industrial – há que se assumir uma postura de incorporação da tecnologia e de reconhecimento da sua inexorabilidade e, por isso mesmo, a necessidade de ampliação do plexo de direitos e garantias que nos salvaguardem diante das mudanças da realidade social.

Novos dados de realidade exigem o reconhecimento de novos direitos e o alargamento das garantias jurídicas com vistas a tutelar, com a máxima efetividade, a autodeterminação das pessoas e, ao fim e ao cabo, o direito à dignidade humana. Na Era da Informação, inegável que o direito ao sigilo dos dados pessoais e à autodeterminação sobre eles seja constitutivo de um direito mais amplo da dignidade e da personalidade humanas. No centro da ordem constitucional estão o valor e a dignidade da pessoa que age com livre autodeterminação enquanto membro de uma sociedade igualmente livre.

Notas__________________________

1 GARFINKEL, Simson. “Database nation. The death of privacy in 21th century”. Sebastopol: O’Reilly Media, 2000. Pág. 4-5.

2 MIRAGEM, Bruno. “A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) e o Direito do Consumidor”. Revista dos Tribunais Online. Thompson Reuters. Vl. 1009/2019.

3 Volkszählungsurteil.

4 ADI 6387/MC-Ref. Relatora a Ministra Rosa Weber. DJ: 07/05/2020. Pág. 55. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344949214&ext=.pdf>.

5 Idem. Pág. 25.

6 LONG, Clarissa. “Privacy and Pandemics. In: PISTOR, Katharina. “Law in the time of covid-19”. Columbia Law School Books, 2020. Pág. 104-113.

7 Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm>. Acessado em 01/06/ 2021.

8 Regulation (EU) 2016/679. 04/05/2016. Disponível em: < https://gdpr-info.eu>. Acessado em 30/06/ 2021.