Edição 76
O direito de viver
30 de novembro de 2006
Ives Gandra da Silva Martins Membro do Conselho Editorial, Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
Quanto mais a sociedade se torna menos solidária e mais egoísta, mais defende o direito de matar inocentes no ventre materno, como forma de proteger seu egoísmo para gozar a vida. Todos aqueles que defendem o homicídio uterino para os seres humanos recém concebidos – pois já escaparam do período em que suas mães poderiam ter agido com eles da mesma forma que pretendem que outras mães ajam com seus filhos – sentem-se, todavia, profundamente indignados se alguém defender o direito de destruir ovos de tartarugas ou fetos de animais em extinção. Para tais propugnadores da instituição de campos de extermínio de inocentes, em abortários legalizados, a atitude da mulher de impedir que seu filho nasça é um direito que a sociedade não tem legitimidade para cercear, visto que ela é dona de seu próprio corpo. O argumento, de rigor, é, no mínimo, contrário à biologia, pois, no momento da concepção, todo o corpo da mulher é dirigido pelo zigoto, que impõe suas regras naturais, passando, até o nascimento, a ser regido pelo novo ser, que tem o mesmo direito de viver que sua mãe.
Todos os defensores do meio ambiente e da preservação da natureza, todos os ecologistas, ambientalistas, deveriam, pois, ser contrários à legalização de tal assassinato, visto que a natureza demonstra que a mulher não é mais dona de seu corpo, quando a criança é concebida, mas sim a criança é que o conformará, a sua necessidade, até o nascimento.
O aborto é, pois, um crime contra o direito fundamental à vida e um crime contra a natureza e o meio-ambiente pelo menos superior àqueles de destruir ovos de tartarugas ou matar embriões de ursos pandas, considerados delitos de particular magnitude.
Os abortistas – e não tenho receio de chamá-los assim, visto que defendem o aborto, ou seja, o homicídio de seres humanos concebidos, no ventre materno – na ânsia de desqualificarem os defensores dos inocentes, dizem que estes são movidos por motivos religiosos, como se, numa democracia, só quem não tem religião tenha o direito de opinar, sem perceberem que o direito à vida sempre foi defendido por ateus, agnósticos e crentes em Deus, desde que não vocacionados ao direito de matar.
Tanto assim é que, no “Pacto de São José”, tratado internacional a que o Brasil aderiu, o artigo 4º diz que a vida tem início na concepção, e só pessoas que teimam em defender teses “da idade da pedra” podem alegar que não é na concepção que a vida principia. O zigoto já é um ser humano, com todos os sinais que se desenvolverão até sua morte, dentro ou fora do ventre materno. Se assim não fosse, tais pessoas que conseguiram aprovar o projeto Tamar, considerando crime, destruir ovos de tartarugas, não precisariam preocupar-se, porque os ovos de tartarugas ou os fetos não seriam embriões de tartarugas e nem haveria vida “tartarugal” a proteger.
O certo é que toda a sociedade, quando se torna egoísta – como Políbio detectou, no início da derrocada do império romano do Ocidente, período em que a vontade de gozar a vida levou as mulheres e a sociedade a perderem o sentido de família –, defende teses convenientes e não teses de respeito ao que de mais sagrado existe no mundo, que é a vida humana.
Tenho para mim que, por ter a Constituição garantido o “direito à vida” (artigo 5º), sem qualquer restrição, e pelo fato de o Brasil ter assinado o “Pacto de São José” – tratado internacional de direitos fundamentais (artigo 4º), que reconhece começar a vida na concepção, o qual foi incorporado ao direito interno, como norma constitucional (artigo 5º, §2º), ou como lei ordinária (interpretação de alguns juristas e membros do Judiciário)–, matar embriões de seres humanos no útero ou fora dele, é crime e torna quem o autoriza ou pratica promotor de homicídio.
Tampouco me parece possível que lei ordinária possa autorizar a eliminação sumária de seres humanos pelos métodos dolorosos que se conhecem (dilaceração, queimaduras, envenenamento, retirada do líquido do cérebro para fazê-lo passar pela vagina materna etc., que estão descritos pelos professores de medicina que participaram comigo do livro “Direito fundamental à vida” – editora Quartier Latin), visto que a Constituição proíbe tais práticas, assim como o “Pacto de São José”, para os países signatários, como o Brasil, que não tinham antes adotado o aborto, em sua legislação maior ou inferior.
É pena que o debate persista e o único argumento que os parlamentares abortistas utilizam é o de que a contestação ao aborto é de cunho religioso, sem perceberem que só são parlamentares porque a Constituição permitiu sua eleição, Constituição esta que foi promulgada sob a proteção de Deus. À evidência, se quiserem aprovar o homicídio uterino, comecem por mudar o preâmbulo da Constituição, colocando no texto “Sem a proteção de Deus, promulgamos a …”