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O Direito Penal do século XXI

31 de maio de 2007

Desembargador (aposentado) do TJ/RJ, Ex-presidente do TRE/RJ. Presidente do Fórum Permanente de Execução Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Criminologia da pós- graduação da UGF e da EMERJ

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Vivemos atualmente uma dramatização da violência e da ameaça.

Pergunto: o Direito Penal disponível e politicamente funcionalizado ainda pode conservar o lugar que deve ocupar dentro do sistema de controle social ou perder, aos olhos da população, sua força de convicção normativa e sua distância moral frente a violação do Direito?

A meu sentir, o Direito Penal não pode sobreviver como um instrumento estatal de solução de problemas pontuais no conflito global, pois a violência é um firme componente de nossa experiência cotidiana. O que se modifica são as formas e a densidade de atividade desviante. A violência está onipresente e com a mídia temos a possibilidade de percebê-la como não ocorria no século passado.

As Reformas ocorridas nesses últimos vinte anos, na maioria dos países mais avançados tecnológico e economicamente,
são retrato das novas tendências para a legislação das primeiras décadas do século XXI. Para determinada corrente doutrinária, esta adaptação dos conceitos básicos do Direito Penal às novas necessidades político-criminais seria uma conseqüência inevitável de um planejamento funcionalista do Direito Penal, traduzindo-se em subsistema de imputação dentro de um conjunto global do sistema social global a cujo equilíbrio deve contribuir, restabelecendo e robustecendo a pena para quem tenha violado a norma penal, isto é, a confiança dos demais cidadãos fiéis ao Direito. O principal representante desta tendência é Jakobs, em uma linguagem hermética e de difícil compreensão.

Não podemos olvidar nas duas últimas décadas do século passado que a discussão se manteve dentro de parâmetros marcados por princípios constitucionais do Estado de Direito. Sem questionar os direitos humanos fundamentais reconhecidos nos planos internos e externos, a polêmica sobre a função correspondente à dogmática é traduzida na feliz expressão de Hassemer como “as novas tendências do moderno Direito Penal”.

Ao vislumbrar o Direito Penal do século XXI, temos que partir da conferência de Jakobs, realizada em Berlim, em outubro de 1999, com o título “Os caminhos da ciência do Direito Penal no futuro”, quando, em tom provocativo, chama a atenção para a necessidade de reconhecer e admitir que, nas atuais sociedades, exige-se um Direito Penal dirigido com uma única tarefa de restabelecer, através da sanção punitiva, a vigência da norma violada pelo delinqüente e a confiança dos cidadãos no Direito (segurança normativa). Inspirada em conceitos mais ou menos flexíveis ou funcionais, mas respeitosos com as garantias e limites do poder punitivo no Estado de Direito, defende a existência de um outro Direito Penal, o “Direito Penal do inimigo”, em que o Estado, diante de determinados sujeitos, que, de forma grave e reiterada, se comportam contra as normas básicas que regem a sociedade, constituindo-se em uma imediata e constante ameaça, razão pela qual há de se reagir de forma mais contundente para restabelecer, não a segurança e a confiança normativa, mas sim “a segurança cognitiva”.

No Direito Penal do inimigo, segundo Jakobs, o Estado tem a permissão de tentar, eficazmente, atuar contra o “inimigo” e, desta forma, está autorizado a impor penas desproporcionadas e draconianas, a penalizar condutas, ainda que inócuas ou sem qualquer ameaça ou perigo relevante para um bem jurídico, enfim, o que é mais grave, eliminar ou reduzir ao mínimo, certas garantias e direitos do acusado do Processo Penal.

A discussão toma maior relevância na primeira década do século XXI diante do atentado terrorista das Torres Gêmeas de Nova Iorque, em 11/09/2001, do atentado de Dezembro de 2003, em Bali, do de 11 de março de 2004, em Atocha, Madri, do de 1º de setembro, na Escola de Beslan, na Rússia, e de 7 de julho de 2005, no Metrô de Londres.

Com a edição do Patriotic Act aprovada pelo congresso dos Estados Unidos poucos dias depois do atentado de 11 de setembro de 2001, recentemente prorrogado por tempo indeterminado, permite-se a detenção, a violação da correspondência e outros atos de intimidade sem qualquer controle judicial, a existência de tribunais militares secretos e a suspensão de outros direitos fundamentais reconhecidos na Constituição Americana, em nome do combate ao terrorismo.

Aduza-se a situação dos presos afegãos na base militar americana de Guantánamo, sem qualquer respeito às regras mínimas da convenção de Genebra para os presos de guerra. Acrescente-se ainda a legislação excepcional contra os meros suspeitos de vinculação a grupos terroristas ou propagadores de idéias islâmicas fundamentalistas.

Junto a estas leis de exceção, surgem muitas outras similares em outros países em matéria de terrorismo interno, criminalidade organizada, narcotráfico, tráfico de armas, corrupção, etc, que demonstram a existência de um “Direito Penal do inimigo”, que não é uma invenção de Jakobs, mas uma realidade evidente cada vez mais preocupante, que ameaça se estender durante algumas décadas do século XXI, como um furacão favorecido pelo medo, na feliz expressão de Francisco Munõz Conde, inclusive nos países mais respeitosos com Estado de Direito.

O que se questiona não é a existência do “Direito Penal do inimigo”, mas a compatibilidade do sistema do Estado de Direito, e o reconhecimento e o respeito aos direitos fundamentais.

Não cabe dúvida de que igual ao modelo de “tolerância zero” existe, nesta primeira década, uma tendência de utilizar o Direito Penal de modo mais enérgico e contundente e, se necessário, violando os limites que se impõe a um Estado de Direito e as garantias fundamentais do cidadão. Fica a indagação: até que ponto é legítimo o Direito Penal do inimigo não se ater aos princípios do Estado de Direito, permitindo a violação de preceitos constitucionais e as declarações e tratados internacionais a favor dos direitos humanos?

A construção de Jakobs sobre o “Direito Penal do inimigo” é uma construção ambígua, tanto para o sistema democrático quanto para um igualitário. Pergunta-se: Como se define o inimigo? Quem o define? Todos delinqüentes são inimigos? Se a resposta é afirmativa, todo Direito Penal é um Direito Penal do inimigo.

Zaffaroni observa que a proposta de “tática de contenção” – que Jakobs chamou de Direito Penal do inimigo ao tratamento diferenciado de alguns delinqüentes, em especial, terroristas, mediante medidas excepcionais – como tática destinada a deter o avanço traz a tendência de ameaça de invasão em todo o campo penal, que Silva Sanches denominou de “terceira velocidade”, que importaria uma renovação de classificação tripartida napoleônica de infrações penais com diferentes penas, processos e jurisdições.

Para Jakobs, o Direito Penal deveria habilitar o poder punitivo de uma maneira para os cidadãos, e de outra para os inimigos, reservando o caráter de pessoa para os primeiros e, para os segundos, de não pessoas, confinando em um compartimento estanque do Direito Penal, de modo que os demais continuariam funcionando conforme os princípios do Direito Penal liberal. Zaffaroni diz que se trata de uma espécie de quarentena penal do inimigo.

O Direito Penal do século XX se teorizou admitindo que alguns seres humanos são perigosos e que só por isso devem ser segregados ou eliminados.

Enfim, observamos, no início deste século, as transforma-ções da teoria e dos fins da pena, propugnando-se pela diversificação dos aspectos preventivos de seus fins, evitando-se a nefasta pena privativa de liberdade, tanto quanto seja possível e compatível com as necessidades de prevenção geral. Significa dizer que se devem introduzir alternativas às penas de prisão e outras mediadas sociais que favoreçam a inserção social ou que, pelo menos, não causem maiores obstáculos a sua concretude, possibilitando a incorporação do “cidadão-inimigo” à macrossociedade.

Quanto à tese da existência do Direito Penal, neste século, afirma-se que não será possível sua supressão, pois a pena privativa de liberdade, embora instrumento inadequado de repressão, continua necessária para conter os conflitos sociais intoleráveis. A sociedade do século XXI encontrará formas de organização que não requeiram mais a pena de prisão nem suas dramáticas conquistas sociais. A intensidade do controle social se incrementará e, com isso, se limitarão os conflitos macrossociais.

Não se pode fazer retroagir a roda da história, como diz Roxin, não mais se admitindo um modelo de Estado totalitário, bem como não se conseguirá a supressão ou minimização da criminalidade mediante um controle completo.

No século XXI, veremos um maior implemento das disposições penais. Dada a complexidade das sociedades pós-industriais e pós-modernas, teremos um acelerado desenvolvimento de novas disposições jurídicas. As penas serão mais leves e cada vez mais presentes à necessidade de suprimir as penas privativas de liberdade.

Observaremos a contínua criminalização de condutas diante da complexidade tecnológica e econômica das sociedades modernas. O Direito Penal do futuro terá sanções no âmbito de sua aplicação, mas não similares às penas do Direito Penal tradicional, prescindindo seu caráter mais aflitivo.

Ao reconhecer a dignidade da pessoa humana, supõe-se evitar, no campo do possível, a imposição de pena e, para isso, é necessário que o Estado ofereça possibilidades mais amplas para que os injustos não sejam cometidos e, ao mesmo tempo, que as penas fiquem limitadas ao estritamente necessário. A função da pena predominará em casos limites, sobre os fins da pena e, nesses casos, só servirá como princípio garantidor limitativo passivo.

É um grave erro crer que o denominado discurso das garantias é um luxo ao qual se pode renunciar em tempos de crise, menos ainda considerar que se trata de uma tese conservadora.

Pelo contrário, devemos nos prevenir contra reformas promovidas por burocratas ou políticos de plantão, que se alimentam da emergência de turno apresentando-as como pós-modernas.

Seria absurdo negar, neste momento, a existência de um avanço autoritário mundial em matéria penal, que coloca em crise os estados de Direito, mas não podemos cair em pessimismos, deixando-nos levar pelo espírito do tempo e aceitá-lo, pois isto é permitir que o Direito Penal se deteriore, degradando-se pelo discurso legitimante, e reduza seu conteúdo pensante.

A resistência político-penal à admissão ao conceito de inimigo no Estado de direito é frontal, ainda que as limitações do poder jurídico não permitam eliminá-lo.

Não se propõe introduzir e ampliar o uso do conceito de inimigo no Direito Penal, senão admiti-lo em compartimento estanque, perfeitamente delimitado, para que não se estenda e contamine todo o Direito Penal.

Procura-se ainda, no arborescer do século XXI, não pensar em um preço tão caro, tendo em conta que, na prática, opera em uma medida mais extensa, o que importaria, em muitos casos, até uma redução em seu âmbito. O que se discute é a diminuição dos direitos dos cidadãos para individualizar o dos inimigos. Conclui Zaffaroni que, se legitimarmos essa lesão aos direitos de todos os cidadãos, se conceder ao poder a faculdade de estabelecer até que medida será necessário limitar os direitos, que está em suas próprias mãos, o Estado de Direito terá sido abolido.

Não se ignoram os efeitos negativos da pena, re-conhece-se como um mal que só pode ser imposto na medida em que se torna necessário para garantir a tutela de um bem maior.

Se a violência, o risco e a ameaça se converte em fenô-menos centrais da percepção social, a idéia de prevenção perde seu endereço e se consolida como instrumento efetivo e altamente intervencionista da política frente à violência do delito.

A sociedade ameaçada se vê colocada contra a parede e, em sua percepção, não pode dar ao luxo de um Direito Penal entendido como proteção da liberdade, necessitando de uma “Carta Magna do Cidadão” como arsenal de luta e efetiva contra o delito e a repressão da violência. Assim, o desviante se converte tendencialmente no inimigo e o Direito Penal, no Direito Penal do inimigo.

A prevenção geral positiva não fundamenta o Direito Penal nem a pena isoladamente, mas de maneira limitada pelo princípio da culpabilidade e acompanhada da missão de proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais.

A prevenção geral positiva limitadora tende a uma maior racionalidade diante das tradicionais funções da pena, a relativização do efeito intimidante e a evitação de irreais otimismos em relação ao efeito ressocializante da execução da pena. Representa um progresso em relação ao limite da atuação do Estado (proteção dos bens jurídicos e a limitação do princípio da culpabilidade). Não podemos esquecer a função preventiva especial positiva no momento da execução da pena.

A missão do Direito Penal que baliza a função da pena no Estado Democrático de Direito é a proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais.

Diante do princípio do pluralismo político, emerge o princípio de tolerância, determinando que os indivíduos suportem as diferenças não lesivas, pautadas no princípio da intolerabilidade, no cotidiano da vida social, e que serve de suporte para os princípios da ofensividade e da lesividade.

O Direito Penal tolerante cria espaços livres de direito, abrigando condutas toleradas na linha de Ferrajoli ao referir-se a maiores e menores vínculos estruturais. Quanto à quantidade e à qualidade das proibições e das penas estabelecidas, há dois extremos: o Direito Penal mínimo e o Direito Penal máximo.

O Direito Penal mínimo é “condicionado e limitado ao máximo corresponde não só ao grau máximo de tutela das liberdade dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza”. Diz Ferrajoli que um Direito Penal é racional e concreto à medida que suas intervenções são previsíveis, isto é, motivadas por argumentos cognitivos. Já o Direito Penal máximo, incondicinado e ilimitado, se caracteriza por sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das condenações e penas, constituindo-se como um sistema de poder não controlável racionalmente pela ausência de parâmetros certos e racionais.

O Direito Penal é ferramenta própria de proteção de bens jurídicos relevantes e a aparição de novas realidades propiciam a existência de novos bens jurídicos-penais, bem como a deterioração de realidades abundantes, tornando-se bens escassos.

Não podemos esquecer as realidades como a proteção do meio ambiente, do consumidor, a evolução sociocultural, a proteção ao patrimônio artístico (bens coletivos e interesses difusos), abrindo-se espaço para uma expansão do Direito Penal. Aduza-se o papel do crime organizado desde a violação da ordem econômica aos capitais procedentes do narcotráfico. Vivemos como “sociedade de risco” (Risikogessellschaft).

A institucionalização da segurança, bem analisada por Silva Sánchez, em “A expansão do Direito Penal”, mostra uma sociedade de enorme complexidade, na qual a interação individual alcançou níveis desconhecidos como a configuração do risco de origem humana enquanto fenômeno social estrutural.

O progresso tecnológico e a competitividade geral criam a necessidade de intervenção diante dos riscos do cidadão na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações, além do papel de consumidor, usuário e beneficiário de serviços públicos. Vemos o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada transnacionais que configuram riscos de alta relevância para o Estado e os indivíduos.

Aduza-se o fenômeno da criminalidade de massa, diante da população de rua, com os bolsões de miséria e marginalidade a alimentar a onda dos tradicionais movimentos de lei e ordem.

Diante da revolta social e da intolerabilidade dos ataques aos bens jurídicos na atual conjuntura, agita-se, por meio da mídia, o tema do “Direito Penal do inimigo”, a terceira via do Direito Penal, como ferramenta emergencial em situação dita de “guerrilha urbana”, buscando, por meio do quadro fático de casos excepcionalidade do conflito urbano, permitir, por meio do retrocesso da roda da história, renascer restrições secularmente superadas aos princípios de legalidade e seus corolários, legitimando a intervenção estatal que fratura o modelo garantista. O tripé é “garantista”, pois se situa na absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia no contexto emergencial.

A expansão do Direito Penal deve ser observada no liminar do século XXI com grandes cautelas diante das sociedades de risco, pois as reações devem ser ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não ofereçam perigo de contaminação do Direito Penal da ‘normalidade’. Lamentavelmente, os estados vêm de forma indiscriminada admitindo o perenne emergencia, que tende a “crescer e estabilizar-se no século XXI”.

Não se pode imaginar como Direito Penal “eficiente” reduzir ao mínimo os pressupostos da punibilidade mediante a ampla utilização dos injustos de perigo abstrato, facilitar os pressupostos da imputação ou agravar os meios de coação.

Acrescenta-se a intenção a curto prazo de resolver o déficit com um arsenal de agravações (more of the same) em um âmbito crescente de efeitos puramente simbólicos do Direito Penal, que servem para o crédito político do legislador ter respondido com a celeridade os medos e as grandes perturbações sociais, atendendo os imediatos anseios midiáticos com os severos meios do Direito Penal.

Como conclusão, repelimos a existência de dois Direitos Penais, um tradicional, para os cidadãos, e outro excepcional, para as não-pessoas. Não podemos fazer reverter a roda da história buscando em seu museu ferramentas superadas.

O século XXI se caracterizará pela diminuição da incidência da pena privativa de liberdade substituída por outras medidas penais, que fogem ao modelo tradicional, educadoras e menos aflitivas, respeitados os direitos e deveres das pessoas humanas. A construção de prisões cederá a construção de escolas, reservando-se aquelas tão-só aos completamente inadaptáveis com as regras de conveniência da macrossociedade. A criação de patronatos e da assistência efetiva aos egressos. A humanização das prisões e o respeito à pessoa humana do encarado e, com isso, a redução das rebeliões. O estado conquistando o espaço público. As prisões modernas terão menor capacidade, menos guardas, maior disciplina, plena assistência ao encarcerado, diante do processo tecnológico do século XXI.