O exercício regular do poder discricionário

12 de março de 2024

Débora Maliki Juíza Federal do TRF-2

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Atualmente uma das maiores questões que vêm sendo enfrentadas no mundo jurídico centra-se em compreender quais os limites do ato administrativo discricionário e de que forma ele pode ser regularmente exercido. Não obstante a evolução histórica, pode-se afirmar que o ato administrativo tem como premissa imutável o fato de que, no seu âmago, existe uma margem de apreciação por parte daquele que o está praticando.

O Estado Democrático de Direito, longe de ser um poema sem sentido, deve buscar o seu real significado, e isso passa pela atuação da Administração, que deve sempre almejar a satisfação do interesse público. No entanto, resta nítido que, não raro, esses atos não atingem os interesses públicos e não são passíveis de controle pelo Poder Judiciário. 

Nesse contexto, a fórmula de Abraham Lincoln, quanto à essência da democracia, que prega “governo do povo, pelo povo e para o povo”, é considerada, ainda hoje, a melhor síntese do princípio democrático. O exercício do poder democratizado é revelador do seu correto funcionamento e o “governo para o povo” será a finalidade do poder democrático, ou seja, o atingimento do bem comum. O governo democrático tem por fundamento, portanto, o binômio liberdade política e igualdade política.

Cada vez mais nota-se que os princípios constitucionais estão sendo aplicados de forma concreta. Nesse sentido, cumpre esclarecer que as gerações ou dimensões do Direito são pensamentos que procuram explicar a evolução do Direito Constitucional. É possível dizer que a primeira geração é a da liberdade, entendida em face do Estado; a segunda está relacionada aos direitos sociais prestacionais; a terceira liga-se aos direitos comunitários, fraternidade, solidariedade etc.; a quarta é decorrente dos direitos humanos, da participação democrática; a quinta trata da paz para toda a humanidade; e a sexta geração relaciona-se à bioética. 

Hoje, há quem fale que existe também o direito à felicidade. E por aí vão surgindo mais direitos e gerações, por conta de desejos que se encontram insatisfeitos na era moderna. Não se pode olvidar que, na verdade, o que se busca, o que se deseja é voltar ao núcleo central, ou seja, retornar aos valores primários mais importantes que irradiam por todo o ordenamento jurídico e fazem dele a base do sistema constitucional.

Cabe considerar que esses direitos devem estar também no âmago das escolhas administrativas. Inclusive, no tema de políticas públicas, a forma de atuação da Administração antes era exclusiva do Poder Executivo, e hoje percebe-se que, nos casos omissos, o Poder Judiciário determina que a Administração adote medidas assecuratórias dos direitos constitucionais, sem que, com isso, a separação de poderes seja ferida.

Como exemplo, vale citar o Recurso Extraordinário no 592.581/RS (com Repercussão Geral reconhecida), julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015. Trata-se de recurso do Ministério Público Estadual (MPE) contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para reforma de sentença que determinava a execução de obras na Casa do Albergado do município de Uruguaiana. 

Relator, o então Ministro Ricardo Lewandowski, em seu percuciente voto, manifestou que: “[…] não se está diante de normas meramente programáticas. Tampouco é possível cogitar de hipótese na qual o Judiciário estaria ingressando indevidamente em seara reservada à Administração Pública”. 

E propôs a seguinte tese de repercussão geral: “É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5o, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes”.

O que se busca não é uma substituição das escolhas do administrador no seu atuar, em especial no que concerne às políticas públicas, e sim que os atos sejam regularmente exercidos. O Poder Judiciário não resolve questões em tese, mas sim os casos concretos que são levados à sua apreciação, ante o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Atualmente, o Direito Administrativo vive uma fase de receio, conhecida como o “apagão das canetas”, criticada por muitos que afirmam que os gestores estão com medo do controle externo disfuncional. Os gestores argumentam que estão com receio de agir por enfrentarem dificuldades em suas decisões, ao mesmo tempo em que as constantes mudanças da sociedade exigem uma atuação mais transparente, ética e proba

O que se almeja é uma releitura do ato administrativo, para que, além da motivação, da justificativa das escolhas públicas, seja possível analisar os princípios constitucionais, ou, em outras palavras, o que se costuma chamar de “juridicidade do ato”. 

Diante desse cenário, este estudo sugere critérios objetivos e seguros já existentes no ordenamento jurídico para a análise do ato administrativo, o que trará mais segurança e terminará com o sentimento de “casuísmo” que o cidadão tem perante a Administração nas suas escolhas e frente ao Poder Judiciário nas suas decisões. 

Para a análise dos casos concretos é utilizado o primado da realidade, verificando as dificuldades enfrentadas pelos gestores, as quais constituem circunstâncias limitativas do seu agir. O consequencialismo, que exige a ponderação das consequências práticas das decisões, demanda que tal decisão seja motivada, expressando as suas consequências jurídicas e administrativas. Assim, entende-se como possível a análise da eficiência, da publicidade, da moralidade e da proporcionalidade.

O princípio da publicidade determina que a informação, ou, mais especificamente, o atuar administrativo, deve ser clara, transparente e compreensível para todos. A informação permite o controle pela sociedade, legitimando a atuação estatal. Já a proporcionalidade consiste na graduação da medida (proibição do excesso), enquanto a razoabilidade leva em conta as seguintes análises: adequação, ou seja, a compatibilidade entre a medida adotada e o caso concreto; e a necessidade, isto é, a exigibilidade da medida em face da situação. Em linhas gerais, a razoabilidade permite a valoração dos atos expedidos pelo Poder Público, analisando se estão compatíveis com os valores constitucionais.

Os princípios da economicidade, eficiência e eficácia são parâmetros para a boa Administração, visto que hoje não cabe mais uma atuação lenta e burocrática. Almeja-se buscar, com êxito, os objetivos, alcançando-os com o menor custo-benefício, trazendo, do Direito Econômico, a ideia de bem-estar agregado.

A sociedade clama por maior participação para intervir na gestão e na forma como os administradores vão gerir os recursos. A democracia e a legitimação das escolhas traz, em ultima ratio, a paz social. É importante comentar que o artigo 20 da LINDB, em sua nova redação, determina que o administrador deve basear a sua escolha na situação concreta e pautar-se em ponderações quanto à medida e à forma como essa escolha comprometerá os recursos. Registre-se, ainda, que as decisões precisam ser impessoais, princípio que traz segurança jurídica e impede decisões que favoreçam pessoas determinadas. 

A moralidade ligada diretamente à probidade é basilar para uma boa Administração. Aqui, traz-se à baila a ideia de sociedade justa, segundo a qual não basta o Estado agir conforme a lei, sendo necessário que a Administração obedeça a certos ditames para uma sociedade justa e igualitária.

Conclusão – Considerando o exposto neste breve estudo, pode-se afirmar que o Direito Administrativo nasceu de uma reação ao Poder Absolutista, visando a garantir certos direitos aos cidadãos em face do Estado. Foi Hans Kelsen que, estudando as normas jurídicas, colocou a Constituição como o centro do ordenamento jurídico. Por óbvio, existiu uma reação muito grande à legalidade estrita, surgindo os princípios como forma de interpretação, o que influenciou também o Direito Administrativo.

Diante dessa mutação, os atos discricionários foram sendo revistos e redimensionados quanto ao valor e à interpretação no ordenamento jurídico. As escolhas devem ser pautadas em critérios técnicos, legítimos, o que dará mais segurança jurídica e paz social, um dos direitos fundamentais mais caros. 

Os direitos humanos, da humanidade, de cada ser humano, entendidos de forma coletiva, são tidos como de maior valor constitucional para a sociedade, haja vista que, sem eles, nada se pode construir ou criar. Sem o ser humano como ponto principal da estrutura dos direitos constitucionais, não há que se falar em direitos sociais ou na paz, porque seria uma utopia.

É imprescindível atuação com responsividade, de modo que o ato seja revestido de licitude, legitimidade, transparência e fundamentação. Por derradeiro, simbolizando a evolução do Direito Administrativo e as mudanças dos últimos tempos, nada mais apropriado do que citar Luís Vaz de Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.

Referências__________________

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