O juramento da magistratura e o cultivo de suas virtudes

2 de janeiro de 2024

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O cultivo da ética na magistratura é um compromisso inafastável de seus integrantes e de suas instituições. Não por acaso, em todas as escolas judiciais, e mesmo nos concursos públicos, ética da magistratura tem sido um tópico incontornável. Não por acaso, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados está presente desde a formação inicial dos novos magistrados e magistradas até o Mestrado Profissional.

De fato, receber novos magistrados e magistradas, como também propiciar condições para o contínuo aperfeiçoamento da prática judicial ao longo da carreira, é missão para a qual a formação ética requer desenvolvimento constante. 

Esse desafio está estampado desde o primeiro momento em que os integrantes da magistratura ingressam. Não há como deixar de associar as boas-vindas e congratulações àqueles cujos estudos e as vivências prévias mereceram o reconhecimento com a aprovação num concurso público deveras difícil e com o chamado, que vem da sociedade e das instituições jurídicas, para a prática de uma jurisdição comprometida com a Constituição, com os direitos humanos e fundamentais, com a democracia e o desenvolvimento humano e social.

O juramento da magistratura e o cultivo das virtudes – Este chamado está estampado no juramento que, uma vez prestado ao iniciar suas trajetórias, todos os magistrados e as magistradas devem vivificar a cada dia de trabalho: “Prometo cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis da República Federativa do Brasil, bem como exercer com exatidão, serenidade, independência e presteza os deveres do meu cargo.”

Se, como ensina a filosofia do direito, a jurisdição é uma prática social, a que nos remete e nos recruta esse juramento?

“Prometo cumprir” Antes de mais nada, a jurisdição exige preparo, empenho e compromisso pessoais, por cada um nela investido. Jura-se na primeira pessoa do singular. 

Enquanto prática que toma essa dimensão subjetiva, pessoal e intransferível, o que se quer não é somente o domínio técnico e o conhecimento do ordenamento jurídico. Além disso, é incontornável vivenciar os arranjos institucionais das organizações judiciárias e cooperar com seu aperfeiçoamento; é preciso empenhar-se no aprendizado da arte do convívio com a alteridade na vida social, que é rica, diversa, plural, complexa, desigual e injusta. Capacidade que se desenvolverá concretamente, no dia a dia forense, na interação com as partes e procuradores, com os servidores e auxiliares do juízo, diante de demandas tão decisivas para a vida individual de uns, quanto acaloradas para comunidades inteiras.

“Prometo cumprir e fazer cumprir” Fazer cumprir indica não só o comprometimento pessoal com o decidido; fazer cumprir aponta para a existência de condições que viabilizem a efetivação do direito.

Ao lado do compromisso pessoal de cada integrante da magistratura com o funcionamento das instituições das quais participa, a efetividade da jurisdição requer a convergência de todo o “sistema jurídico” (que engloba não só o Judiciário, mas também outras instituições, como a advocacia pública e privada, o ministério público, a academia); sem este horizonte comum, fragilizam-se as condições para a aplicação da lei de modo justo e para a almejada transformação das realidades de injustiça. 

Que os novos e os velhos juízes não esmoreçam nesse compromisso de fazer cumprir a Constituição e as leis, para o que, como seres humanos concretos que são, necessitam da cooperação ativa e leal de todo o sistema jurídico e dos atores sociais envolvidos. O empenho mais produtivo é aquele carregado da consciência de nossa potência e nossa contingência; que essa humildade benfazeja seja, por parte da magistratura, ao mesmo tempo abertura e também chamada de responsabilidade ao sistema jurídico e à sociedade; pois assim como não são divinos como Hércules no Olimpo, juízas e juízes não detêm poderes mágicos de, sozinhos, resgatar da injustiça toda uma ordem social profundamente desigual.

“Cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis da República Federativa do Brasil” – No juramento, quiçá a parte mais importante é a menção à Constituição e às leis da República. Qual seria o valor de todo empenho pessoal, qual seria a legitimidade de toda cooperação de outras instituições, carreiras jurídicas e forças sociais, se fossem dirigidos para subverter o Estado Democrático de Direito e suas leis?

Mais concretamente, sem a Constituição Republicana de 1988, sequer as instituições onde ingressam e permanecem existiriam; nem mesmo a jurisdição seria efetiva prática de justiça, quando muito seria engodo e cantilena, mal ou bem responsiva, à vontade daqueles que se arvoram donos do poder aos moldes de um passado escravista e patrimonialista que teima em se perpetuar.

A magistratura que tem razão de existir, em uma sociedade plural, complexa e desigual como a nossa, é a magistratura democrática e republicana, que sabe que os princípios democrático e republicano constitutivos da Constituição de 1988 têm, sim, força jurídica, que não se comprazem com golpismos e apropriações privadas do Estado, que a força normativa da Constituição exige, além do respeito às urnas, a garantia dos direitos humanos e fundamentais, individuais e sociais,  de todos, e, particularmente, daqueles cujos direitos mais básicos são sistemática e cotidianamente atacados. Sem isso, o que seria senão a roupagem jurídica da opressão?

Chegamos ao trecho final do juramento. “Exercer com exatidão, serenidade, independência e presteza os deveres do meu cargo.” Aqui há virtudes a serem praticadas, virtudes ao exercício do cargo. Exatidão, serenidade, independência e presteza: nelas podemos ler, sob outra roupagem, as “virtudes judiciais” mundialmente consagradas: independência, imparcialidade, integridade, igualdade e idoneidade. 

Como toda virtude, trata-se de um ideal regulativo: as virtudes são imprescindíveis, mesmo que nossa frágil condição humana não possa encarná-las em plenitude; elas demarcam condutas e posições inadmissíveis que podemos conhecer e evitar (ninguém pode ser juiz de sua própria causa – já diziam os romanos); elas impulsionam o constante aperfeiçoamento de nossas capacidades, dizem para onde e como devemos rumar. 

Concretizar virtudes prometidas está no centro da ética, do agir prático que é jurisdicionar. Se, de fato, em cada momento histórico, o viver conforme a ética traz consigo esse insuperável desafio existencial, exercer a jurisdição hoje  com “exatidão, serenidade, independência e presteza” revela-se desafiador ao extremo.

Tomemos, de um lado, exatidão, serenidade, independência e presteza. A exatidão: nela podemos vislumbrar a imparcialidade e a igualdade; consideremos a serenidade: a partir dela podemos invocar integridade e idoneidade; a independência já se coloca textualmente; a presteza, por sua vez, nos remete à idoneidade. 

Tomemos, de outro lado, a mentalidade em que hoje as subjetividades estão submersas. Autopromoção, eficientismo, produtivismo praticamente a qualquer preço, conceber a si mesmo como capital e como empresário desse capital dito “humano”, competitividade desmedida, egocentrismo exacerbado, desprezo à ciência e descaso com a busca do conhecimento, darwinismo social, esfacelamento da ética diante da programação artificial, química e neuronal. 

Neste cenário é fácil perceber que as virtudes, juramentadas e essenciais à prática da jurisdição, são antagônicas ao ethos neoliberal, fomentador de empobrecimento humano e precariedade social. Evidencia-se, a mais não poder, o desafio ético que se apresenta a toda magistratura.

A última palavra juramentada é cargo. Cargo como múnus público, carreira de Estado, com seus encargos e garantias funcionais, sem as quais os direitos dos cidadãos ficam desguarnecidos de uma instituição capaz de protegê-los. Não estamos, portanto, diante de um prêmio a ser usufruído por quem o conquistou, de uma retribuição pelo esforço de uma estratégia individualista bem-sucedida, de um patrimônio pessoal a ser gozado, nem de um target profissional-financeiro alcançado.

Trata-se de uma responsabilidade que, bem vivida no e conforme ao Estado Democrático de Direito, é perspectiva de realização pessoal e social num objetivo coletivo maior, que é, nos termos da Constituição, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.