O legado de Orpheu Santos Salles

5 de julho de 2021

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O saudoso Orpheu Santos Salles, advogado, jornalista, escritor, preso político e acima de tudo incansável defensor da igualdade de direitos e de liberdades, deixou inúmeros legados que contribuíram para o engrandecimento do Poder Judiciário nacional e de todos os operadores do Direito.

Sinto-me honrado em poder prestar singela homenagem pela passagem de seu centenário a figura tão ilustre que em sua carreira participou ativamente da história da política brasileira, discorrendo de forma muito singela sobre sua extensa e importante biografia.

No primeiro Governo de Getúlio Vargas, ainda como estudante de Direito, foi porta-voz das reivindicações dos estudantes por mais oportunidades de trabalho junto ao Presidente e na sequência integrou a equipe do Ministério do Trabalho. Mais tarde, no segundo Governo Vargas, tornou-se oficial de gabinete da Presidência da República além de participar do Governo João Goulart, na Assessoria Trabalhista Sindical da Presidência da República.

Na iniciativa privada, assumiu cargos de direção e locução na Rádio Marconi de São Paulo, com programa dirigido aos trabalhadores voltado ao esclarecimento dos seus direitos, tornando-se figura importante na defesa da ordem democrática. Com a implantação da ditadura militar foi perseguido e preso político, permanecendo por mais de seis meses em navio presídio.

Com a liberdade temporária, partir para o exilio no Uruguai e na Argentina, e após seu retornou ao Brasil dedicou-se ao jornalismo, sempre na busca pelo respeito aos direitos de liberdade de expressão e de garantia dos direitos humanos.

Como importante legado ao ambiente jurídico, fundou a Revista Justiça & Cidadania, nacionalmente reconhecida como referência pela excelência dos seus inúmeros artigos e pela promoção de debates e reflexões de temas importantes relacionados à justiça.

Foi também criador dos Troféus Dom Quixote, baseado na obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes, e Sancho Pança, que tiveram como primeiros agraciados o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Velloso, e seu Vice-Presidente, Ministro Marco Aurélio Mello e, na atualidade, já homenagearam inúmeras personalidades do mundo jurídico, que atuam na defesa da ética, da moral e dos direitos da cidadania.

Seu trabalho proporcionou inestimável legado para o Direito, principalmente no campo do respeito ao princípio da igualdade, em toda sua dimensão social.

Sobre igualdade, sabemos que ela nunca será plena, uma vez que existem distinções por inúmeros fatores, tais como origem, raça, sexo, opção sexual, idade, deficiências, as quais acabam por distinguirem os grupos sociais e personalizam o indivíduo como único. Por sua vez, o conjunto desta diversidade faz sedimentar a sociedade multicultural e pluralista, onde seus membros devem respeitar-se mutuamente, assegurando iguais direitos, garantias e oportunidades.

Dentre as tantas razões de desigualdades, não podemos dizer que a busca pela igualdade deva sufocar as diferenças entre os entes da mesma espécie ao ponto de os tornarem absolutamente iguais, muito menos, provocar uma desigualdade que dificulte o exercício dos direitos mais indispensáveis à condição de ser humano. Assim, o que se deve buscar dentro da realidade é uma equidade constante, não dissociando o direito à igualdade do conceito de justiça.

Na tentativa de harmonizar o direito a igualdade com a justiça, já dizia o filósofo grego Aristóteles: “justiça é tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual”.

E com base nesta teoria, cabe ao Judiciário, proporcionar o equilíbrio, relativizando o conceito de igualdade para compensar a desigualdade existentes, seja ela de natureza social, econômica ou cultural.

No ato de equilibrar a aplicação do princípio da igualdade tem-se a possibilidade de aplicar tratamento diferenciado em relação a um determinado grupo que preencha certas características. Contudo, isso deve ser feito de maneira a não proporcionar maior desigualdades. Para tanto, para que a aplicação das diferenciações normativas não seja discriminatória, a justificativa deve ser pautada no princípio da razoabilidade, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos.

Na contramão das constituições anteriores, que primavam somente pela igualdade em âmbito formal, a Constituição Federal de 1988 deixou explicito  em todo o corpo do texto constitucional – a necessidade de se alvitrar diversas medidas de minimização das desigualdades sociais e econômicas. Como exemplo, no art. 4°, VIII, temos o repúdio ao preconceito, materializado neste inciso pelo racismo, que ainda é latente em nossa sociedade.

Seguindo os ensinamentos de Orpheu Santos Salles,
na busca pela contínua e necessária evolução do alcance da igualdade, cumprindo o papel de representantes do povo, a Câmara dos Deputados criou, em janeiro deste ano, uma Comissão de juristas instituída para aperfeiçoar a legislação brasileira sobre racismo estrutural e institucional no Brasil, a qual tenho a grande honra de presidir.

No grupo, formado por 20 representantes de movimentos sociais, acadêmicos, juristas e de outros especialistas, trabalhamos para dotar o sistema jurídico, dentre eles o Estatuto da Igualdade Racial, de instrumentos eficazes para combater este problema estrutural e institucional no nosso País, sempre na tentativa da busca pela igualdade, tomando por base os ensinamentos do saudoso Orpheu.