Reflexões sobre a Ação Penal 470

20 de setembro de 2013

Luís Roberto Barroso Membro do Conselho Editorial / Presidente do STF e do CNJ

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Luís Roberto Barroso“Sem reforma política tudo continuará como sempre”

Introdução ao voto do ministro Luis Roberto Barroso na Ação Penal 470

I Introdução

1. Por se tratar da minha primeira intervenção no julgamento da Ação Penal 470, sinto-me no dever de declinar algumas das minha pré-compreensões sobre o tema. A interpretação e a aplicação do Direito não é uma atividade mecânica nem comporta precisão matemática. Como consequência, o ponto de observação do intérprete e sua visão de mundo fazem diferença na construção dos seus argumentos e nas escolhas que, com frequência, precisam ser feitas. Por essa razão, considero um dever de honestidade intelectual explicitar os fatores que influenciam o meu modo de ver e pensar o caso em julgamento. E faço, portanto, algumas breves reflexões institucionais.

Parte I – Algumas reflexões institucionais sobre a Ação Penal 470

II A Ação Penal 470 e a necessidade de reforma política

2. A sociedade brasileira está exausta do modo como se faz política no país. A catarse representada pelo julgamento da Ação Penal 470 é um dos muitos sinais visíveis dessa fadiga institucional. Sintonizado com esse sentimento, o julgamento dessa ação pelo Supremo Tribunal Federal, mais do que a condenação de pessoas, significou a condenação de um modelo político, aí incluídos o sistema eleitoral e o sistema partidário. A inquietação social pela qual tem passado o Brasil nos últimos meses se deve, em parte relevante, à incapacidade da política institucional de vocalizar os anseios da sociedade.

3. As principais características negativas do modelo político brasileiro são: (i) o papel central do dinheiro, como consequência do custo astronômico das campanhas; (ii) a irrelevância programática dos partidos, que funcionam como rótulos vazios para candidaturas, bem como para a obtenção de recursos do fundo partidário e uso do tempo de televisão; e (iii) um sistema eleitoral e partidário que dificulta a formação de maiorias políticas estáveis, impondo negociações caso a caso a cada votação importante no Congresso Nacional. (Nada do que estou dizendo é novidade ou desconhecido. Por ocasião da minha sabatina, tive oportunidade de conversar com as principais lideranças do Congresso, quando pude constatar que essa percepção é geral, transpartidária).

4. Tome-se um exemplo emblemático. Uma campanha para Deputado Federal em alguns estados custa, em avaliação modesta, quatro milhões de reais. O limite máximo de remuneração no serviço público é um pouco inferior a vinte mil reais líquidos. De modo que, em quatro anos de mandato (48 meses), o máximo que um Deputado pode ganhar é inferior a um milhão de reais. Basta fazer a conta para descobrir onde está o problema. Com esses números, não há como a política viver, estritamente, sob o signo do interesse público. Ela se transforma em um negócio, uma busca voraz por recursos públicos e privados. Nesse ambiente, proliferam as mazelas do financiamento eleitoral não contabilizado, as emendas orçamentárias para fins privados, a venda de facilidades legislativas. Vale dizer: o modelo político brasileiro produz uma ampla e quase inexorável criminalização da política.

5. A conclusão a que se chega, inevitavelmente, é que a imensa energia jurisdicional dispendida no julgamento da AP 470 terá sido em vão se não forem tomadas providências urgentes de reforma do modelo político, tanto do sistema eleitoral quanto do sistema partidário. Após o início do inquérito que resultou na AP 470 – com toda a sua divulgação, cobertura e cobrança –, já tornaram a ocorrer incontáveis casos de criminalidade associada à maldição do financiamento eleitoral, à farra das legendas de aluguel e às negociações para formação de maiorias políticas que assegurem a governabilidade.

6. O país precisa, com urgência desesperada, de uma reforma política. Não importa se feita pelo Congresso Nacional ou se, por deliberação dele, mediante participação popular direta. Mas é preciso fazê-la, com os propósitos enunciados: barateamento das eleições, autenticidade partidária e formação de maiorias políticas consistentes. Ninguém deve supor que os costumes políticos serão regenerados com direito penal, repressão e prisões. É preciso mudar o modelo político, com energia criativa, visão de futuro e compromissos com o país e sua gente.

7. Minha primeira reflexão: sem reforma política, tudo continuará como sempre foi. A distinção será apenas entre os que foram pegos e outros tantos que não foram.

III A Ação Penal 470 e outros casos de corrupção

8. A Ação Penal 470 apurou fatos que teriam custado ao país, em termos de dinheiro público, cerca de 150 milhões de reais. De parte o custo pecuniário, não se deve descurar do custo moral e institucional representado por dinheiros não contabilizados, compra de apoio político e malfeitos diversos. É impossível exagerar a gravidade e o caráter pernicioso de tudo o que aconteceu. Porém, a bem da verdade, é no mínimo questionável a afirmação de se tratar do maior escândalo político da história do país. Talvez o que se possa afirmar, sem margem de erro, é que foi o mais investigado de todos, seja pelo Ministério Público, pelo Polícia Federal ou pela imprensa. Assim como foi, também, o que teve a resposta mais contundente do Poder Judiciário.

9. Deve-se celebrar a resposta institucional dada ao episódio, como uma reação à aceitação social e à impunidade de condutas contrárias à ética e à legislação. Mas não se devem fechar os olhos ao fato de que o chamado “Mensalão” não constituiu um evento isolado na vida nacional, quer do ponto de vista quantitativo (isto é, dos valores envolvidos), quer do ponto de vista qualitativo (da posição hierárquica das pessoas envolvidas). Justamente ao contrário, ele se insere em uma tradição lamentável, que vem de longe. Nos últimos tempos, com o despertar da cidadania e pela bênção que são a liberdade de imprensa e a de expressão, tais fatos passaram a se tornar conhecidos e repudiados pela sociedade. E começam a ser punidos.

10. Em ligeiro esforço de memória, remontando aos últimos vinte anos, é possível desfiar um rosário de escândalos que custaram caro ao país. Também aqui, custos pecuniário e moral. Em 1993, veio a público, para espanto geral, o escândalo dos “Anões do Orçamento”, que envolveu o desvio bilionário de recursos públicos via emendas parlamentares à lei orçamentária. Em 1997, o escândalo dos Títulos Públicos ou dos Precatórios revelou um esquema que importou em perdas de alguns bilhões para a Fazenda Pública. O escândalo da construção do prédio do TRT em São Paulo, que veio à tona em 1999, implicou em desvio de muitas dezenas de milhões. O escândalo do Banestado, investigado em 2003, relacionou-se com a remessa fraudulenta para o exterior de mais de dois bilhões de reais. A lista é longa e pouco edificante.

11. Uma segunda reflexão: não existe corrupção do PT, do PSDB ou do PMDB. Existe corrupção. Não há corrupção melhor ou pior. Dos “nossos” ou dos “deles”. Não há corrupção do bem. A corrupção é um mal em si e não deve ser politizada.

IV A Ação Penal 470 e a necessidade de mudanças de atitudes privadas

12. Faço uma observação final: a sociedade brasileira tem cobrado um choque de decência em muitas áreas da vida pública. É preciso mesmo. Seria bom, por igual, aproveitar essa energia cívica para a superação de inúmeras práticas privadas que inibem o avanço civilizatório. Das pequenas às grandes coisas. Por exemplo: acabar com a cultura de cobrar preço distinto com nota ou sem nota; não levar o cachorro para fazer necessidades na praia, sabendo que pouco depois uma criança irá brincar na mesma areia; não estacionar o carro na calçada e obrigar o pedestre a caminhar pela rua ou ultrapassar pelo acostamento, criando riscos e obtendo vantagem indevida. Nas licitações, não fazer combinações ilegítimas com outros participantes ou fazer oferta de preço abaixo de custo para, em seguida, exigir adicionais logo após obter o contrato. Para não mencionar as obviedades: não dirigir embriagado, não jogar lixo na rua e respeitar a fila. As instituições públicas são um reflexo da sociedade. Não adianta achar que o problema está sempre no outro e não viver o que se prega.

13. Uma terceira e última reflexão: cada um deveria aproveitar este momento, visto como um ponto de inflexão, e fazer a sua autocrítica, a sua própria reflexão pessoal, e ver se não é o caso de promover em si a transformação que deseja para o país e para o mundo.

Nota do Editor ______________________________________________________________

O pensamento esposado pelo ministro Luís Roberto Barroso neste seu didático e bem formulado artigo, demonstra em síntese as aprimoradas reflexões, sobre a necessidade premente de urgentes modificações que terão de surgir para o fortalecimento cívico da sociedade e das instituições republicanas.

As cotidianas transgressões imorais, anti-éticas e criminosas praticadas, a miúdo, por políticos desprovidos de compostura e desavisados da irres­ponsa­bilidade com que conduzem sua vida pública, produzem essa fauna nauseabunda que, no caso, derivou para o crime do “Mensalão”.

As palavras de incentivo à moralidade e aos bons costumes esculpidas no artigo do recém e benfazejo ministro do STF, refletem os anseios de todos quantos se preocupam com um futuro melhor para a Nação, consentâneo com a aspiração, o desejo e a necessidade que temos de encontrar homens e mulheres que, no exercício de cargos públicos, possam transmitir para a sociedade exemplos de abnegação, civismo, honestidade e bons propósitos.

Oxalá que os resultados punitivos da Ação Penal 470 sirvam de exemplo aos que descuram das obrigações e se aproveitam do múnus público para enriquecer, como profetizou com contundente e pejorativa prédica, o ministro Ayres Britto, quando do julgamento da corrupção que condenou o governador de Brasília: “tem gente que sobe na vida para cometer baixaria”.