A Reconstrução Democrática do Brasil

12 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
Resumo
O presente estudo procura analisar os 20 anos de vigência da Constituição Federal de 1988. Os capítulos iniciais são dedicados à análise do contexto histórico em que se deu a convocação da Assembleia Constituinte, bem como o desenvolvimento de seus trabalhos e as múltiplas circunstâncias a que esteve sujeita. No restante do texto, empreende-se um balanço dos avanços e revezes do período, com destaque para o desempenho das instituições ao longo dessas duas décadas.
 
Introdução
Da vinda da família real à Constituição de 1988
Começamos tarde. Somente em 1808 – trezentos anos após o descobrimento –, com a chegada da família real, teve início verdadeiramente o Brasil. Até então, os portos eram fechados ao comércio com qualquer país, salvo Portugal. A fabricação de produtos era proibida na colônia, assim como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior, a educação resumia-se ao nível básico, ministrada por religiosos. Mais de 98% da população era analfabeta. Não havia dinheiro e as trocas eram feitas por escambo. O regime escravocrata subjugava um em cada três brasileiros e ainda duraria mais oitenta anos, como uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Pior que tudo: éramos colônia de uma metrópole que atravessava vertiginosa decadência, onde a ciência e a medicina eram tolhidas por injunções religiosas e a economia permaneceu extrativista e mercantilista quando já ia avançada a Revolução Industrial. Portugal foi o último país da Europa a abolir a inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Um Império conservador e autoritário, avesso às ideias libertárias que vicejavam na América e na Europa.
 
Começamos mal. Em 12 de novembro de 1823, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, que havia sido convocada para elaborar a primeira Constituição do Brasil. Já na abertura dos trabalhos constituintes, o Imperador procurara estabelecer sua supremacia, na célebre “fala” de 3 de maio de 1823. Nela, manifestou sua expectativa de que se elaborasse uma Constituição que fosse digna dele e merecesse sua imperial aceitação. Não mereceu. O projeto relatado por Antônio Carlos de Andrada, de corte moderadamente liberal, limitava os poderes do Rei, restringindo seu direito de veto, vedando-lhe a dissolução da Câmara e subordinando as Forças Armadas ao Parlamento. A Constituinte foi dissolvida pelo Imperador em momento de refluxo do movimento liberal na Europa e de restauração da monarquia absoluta em Portugal. Embora no decreto se previsse a convocação de uma nova Constituinte, isso não aconteceu. A primeira Constituição brasileira – a Carta Imperial de 1824 – viria a ser elaborada pelo Conselho de Estado, tendo sido outorgada em 25 de março de 1824.
 
Percorremos um longo caminho. Duzentos anos separam a vinda da família real para o Brasil e a comemoração do vigésimo aniversário da Constituição de 1988. Nesse intervalo, a colônia exótica e semiabandonada tornou-se uma das dez maiores economias do mundo. O Império de viés autoritário, fundado em uma Carta outorgada, converteu-se em um Estado Constitucional, democrático e estável, com alternância de poder e absorção institucional das crises políticas. Do regime escravocrata, restou-nos a diversidade racial e cultural, capaz de enfrentar – não sem percalços, é certo – o preconceito e a discriminação persistentes. Não foi uma história de poucos acidentes. Da Independência até hoje, tivemos oito Cartas Constitucionais: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, em um melancólico estigma de instabilidade e de falta de continuidade das instituições.
 
A Constituição de 1988 representa o ponto culminante dessa trajetória, catalisando o esforço de inúmeras gerações de brasileiros contra o autoritarismo, a exclusão social e o patrimonialismo, estigmas da formação nacional. Nem tudo foram flores, mas há muitas razões para celebrá-la.
 
Ascensão e ocaso do Regime Militar
O colapso do regime constitucional, no Brasil, se deu na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, quando um golpe militar destituiu o presidente João Goulart. Veio o primeiro Ato Institucional – primeiro de uma longa série – e, na sequência histórica, tornou-se inevitável a trajetória rumo à ditadura, que duraria mais de vinte anos. Em 1965, foram canceladas as eleições presidenciais e prorrogado o mandato do presidente Castelo Branco. Em 1966, foram extintos os partidos políticos. Em 1967, foi editada uma nova Constituição, votada por um Congresso pressionado e sem vestígio de soberania popular autêntica. Em 1968, baixou-se o Ato Institucional nº 5, que conferia poderes quase absolutos ao Presidente, inclusive para fechar o Congresso, cassar direitos políticos de parlamentares e aposentar qualquer servidor público. Em 1969, em golpe dentro do golpe, impediu-se a posse do vice-presidente Pedro Aleixo, quando do afastamento por doença do presidente Costa e Silva, e uma nova Constituição foi outorgada pelos ministros militares.
 
Nesse mesmo ano, indicado pelas Forças Armadas, toma posse o presidente Emílio Garrastazu Médici. Seu período de governo, que foi de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de 1974, ficou conhecido pela designação sugestiva de “anos de chumbo”. A censura à imprensa e às artes, a proscrição da atividade política e a violenta perseguição aos opositores do Regime criaram o ambiente de desesperança no qual vicejou a reação armada à ditadura, manifestada na guerrilha urbana e rural. A tortura generalizada de presos políticos imprimiu na história brasileira uma mancha moral indelével e perene. A abertura política, “lenta, gradual e segura”, teve seu início sob a presidência do general Ernesto Geisel, que tomou posse em 15 de março de 1974. Apesar de ter se valido mais de uma vez de instrumentos ditatoriais, Geisel impôs sua autoridade e derrotou resistências diversas à liberalização do Regime, que vinham dos porões da repressão e dos bolsões de anticomunismo radical nas Forças Armadas. A posse do general João Baptista Figueiredo, em 15 de março de 1979, deu-se já após a revogação dos atos institucionais, que representavam a legalidade paralela e supraconstitucional do Regime Militar.
 
Figueiredo deu continuidade ao processo de descompressão política, promovendo a anistia e a liberdade partidária. Centenas de brasileiros voltaram ao país e inúmeros partidos políticos foram criados ou saíram da clandestinidade. A derrota do movimento pela convocação imediata de eleições presidenciais – as “Diretas Já”–, em 1984, após ter levado centenas de milhares de pessoas às ruas de diversas capitais, foi a última vitória do governo e o penúltimo capítulo do Regime Militar. Em 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral elegeu, para a Presidência da República, a chapa contrária à situação, encabeçada por Tancredo Neves, que tinha como vice José Sarney. O Regime Militar chegava ao fim e tinha início a Nova República, com a volta à primazia do poder civil. Opositor moderado da ditadura e nome de consenso para conduzir a transição pacífica para um regime democrático, Tancredo Neves adoeceu às vésperas da posse e não chegou a assumir o cargo, morrendo em 21 de abril de 1985. José Sarney, que fora um dos próceres do Regime que se encerrava – mas que ajudou a sepultar ao aderir à oposição –, tornou-se o primeiro presidente civil desde 1964.
 
Convocação e atuação da Assembleia Constituinte
Cumprindo compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves, o presidente José Sarney encaminhou ao Congresso Nacional proposta de convocação de uma Constituinte. Aprovada como Emenda Constitucional nº 26, de 27.11.1985, nela se previu que “os membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal” reunir-se-iam em Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana. Instalada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Carlos Moreira Alves, em 1º de fevereiro de 1987, a Assembleia Constituinte elegeu em seguida, como seu presidente, o deputado Ulysses Guimarães, que fora o principal líder parlamentar de oposição aos governos militares. Da Constituinte participaram os parlamentares escolhidos no pleito de 15 de novembro de 1986, bem como os senadores eleitos quatro anos antes, que ainda se encontravam no curso de seus mandatos. Ao todo, foram 559 membros – 487 deputados federais e 72 senadores – reunidos unicameralmente. Não prevaleceu a tese, que teve amplo apoio na sociedade civil, da Constituinte exclusiva, que se dissolveria após a conclusão dos seus trabalhos.
 
A ausência de um texto que servisse de base para as discussões dificultou de modo significativo a racionalização dos trabalhos, que se desenvolveram em três grandes etapas: a) das comissões temáticas; b) da comissão de sistematização; e c) do Plenário. O processo constituinte teve início com a formação de oito comissões temáticas, cada uma delas dividida em três subcomissões, em um total de 24. Coube às subcomissões a apresentação de relatórios, que foram consolidados pelas comissões temáticas, surgindo daí o primeiro projeto de Constituição, que foi encaminhado à comissão de sistematização. Na elaboração do projeto da comissão de sistematização, prevaleceu a ala mais progressista do PMDB, liderada pelo deputado Mário Covas, que produziu um texto “à esquerda do Plenário”: nacionalista, com forte presença do Estado na economia e ampla proteção aos trabalhadores. Em Plenário, verificou-se uma vigorosa reação das forças liberal-conservadoras, reunidas no Centro Democrático (apelidado de “Centrão), que impuseram mudanças substantivas no texto ao final aprovado.
 
Em 5 de outubro de 1988, após dezoito meses de trabalho, encerrando um processo constituinte exaustivo e desgastante, muitas vezes subjugado pela política ordinária, foi aprovada, em clima de moderada euforia, a Constituição da República Federativa do Brasil. Aclamada como Constituição Cidadã e precedida de um incisivo Preâmbulo, a Carta Constitucional foi promulgada com 245 artigos, distribuídos em nove títulos, e setenta disposições transitórias.
 
O sucesso institucional da Constituição de 1988
A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento, para um Estado Democrático de Direito. Sob sua vigência, realizaram-se cinco eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios poderiam ter deflagrado crises que, em outros tempos, teriam levado à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar, sob acusações de corrupção. Mas houve outros, que trouxeram dramáticos abalos ao Poder Legislativo, como o escândalo envolvendo a elaboração do orçamento, a violação de sigilo do painel eletrônico de votação e o episódio que ficou conhecido como “mensalão”. Mesmo nessas conjunturas, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Não há como deixar de celebrar o amadurecimento institucional brasileiro.
 
Até aqui, a trágica tradição do país sempre fora a de golpes, contragolpes e quarteladas, em sucessivas violações da ordem constitucional. Não é difícil ilustrar o argumento. D. Pedro I dissolveu a primeira constituinte. Logo ao início do Governo Republicano, Floriano Peixoto, vice-presidente da República, deixou de convocar eleições – como exigia a Constituição – após a renúncia de Deodoro da Fonseca, permanecendo indevidamente na presidência. Ao fim da República Velha, vieram a Revolução de 30; a Insurreição Constitucionalista de São Paulo, em 1932; a Intentona Comunista, de 1935; bem como o Golpe do Estado Novo, em 1937. Em 1945, ao final de seu período ditatorial, Getúlio Vargas  foi deposto pelas Forças Armadas. Reeleito em 1950, suicidou-se em 1954, abortando o golpe que se encontrava em curso. Eleito Juscelino Kubitschek, foi necessário o contragolpe preventivo do marechal Lott, em 1955, para assegurar-lhe a posse. Juscelino ainda enfrentaria duas rebeliões militares: Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, os ministros militares vetaram a posse do vice-presidente João Goulart, levando à ameaça de guerra civil, diante da resistência do Rio Grande do Sul. Em 1964, veio o Golpe Militar. Em 1968, o Ato Institucional nº 5. Em 1969, o impedimento à posse do vice-presidente Pedro Aleixo e a outorga de uma nova Constituição pelos ministros militares. A enunciação é meramente exemplificativa, mas esclarecedora.
 
A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Nos últimos vinte anos, superamos todos os ciclos do atraso: eleições periódicas, presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
 
Um balanço preliminar
Alguns avanços
 
Em inúmeras áreas, a Constituição de 1988 consolidou ou ajudou a promover avanços dignos de nota. No plano dos direitos fundamentais, a despeito da subsistência de deficiências graves em múltiplas áreas, é possível contabilizar realizações. A centralidade da dignidade da pessoa humana se impôs em setores diversos. Para que não se caia em um mundo de fantasia, faça-se o registro indispensável de que uma ideia leva um tempo razoável entre o momento em que conquista corações e mentes até tornar-se uma realidade concreta. Nada obstante isso, no âmbito dos direitos individuais, as liberdades públicas, como as de expressão, reunião, associação e direitos como o devido processo legal e a presunção de inocência incorporaram-se com naturalidade à paisagem política e jurídica do país. É certo que ainda não para todos. Os direitos sociais têm enfrentado trajetória mais acidentada, sendo a sua efetivação um dos tormentos da doutrina e da jurisprudência. Nada obstante, houve avanços no tocante à universalização do acesso à educação, apesar de subsistirem problemas graves em relação à qualidade do ensino. Os direitos coletivos e difusos, por sua vez, como a proteção do consumidor e do meio ambiente, disciplinados por legislação específica, incorporaram-se à prática jurisprudencial e ao debate público.
 
A Federação – mecanismo de repartição do poder político entre a União, os estados e os municípios –, foi amplamente reorganizada, superando a fase do regime de 1967-69, de forte concentração de atribuições e receitas no Governo Federal. Embora a União tenha conservado ainda a parcela mais substantiva das competências legislativas, ampliaram-se as competências político-administrativas de estados e municípios, inclusive com a previsão de um domínio relativamente amplo de atuação comum dos entes estatais. A partilha das receitas tributárias, de outra parte, embora um pouco mais equânime do que no regime anterior, ainda favorece de modo significativo à União, principal beneficiária da elevadíssima carga tributária vigente no Brasil. De parte disto, ao longo dos anos, a União ampliou sua arrecadação mediante contribuições sociais – tributo em relação ao qual estados e municípios não têm participação –, o que colaborou ainda mais para a hegemonia federal. A verdade inegável é que os estados brasileiros, apesar da recuperação de sua autonomia política, não conseguiram, em sua grande maioria, encontrar o equilíbrio financeiro desejável. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também seguiu, como regra geral, uma lógica centralizadora. O reequacionamento do federalismo no Brasil é um tema à espera de um autor.
 
A nova Constituição, ademais, reduziu o desequilíbrio entre os Poderes da República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofia do Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantias e atribuições do Legislativo e do Judiciário. A nova ordem restaura e, em verdade, fortalece a autonomia e a independência do Judiciário, assim como amplia as competências do Legislativo. Nada obstante, a Carta de 1988 manteve a capacidade legislativa do Executivo, não mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisórias. A Constituição, juntamente com suas emendas, contribuiu, também, para a melhor definição do papel do Estado na economia, estabelecendo como princípio fundamental e setorial a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho. A atuação direta do Estado, assim na prestação dos serviços públicos (diretamente ou por delegação), como na exploração de atividades econômicas, recebeu tratamento sistemático adequado.
 
Algumas circunstâncias
O processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia – saudável euforia – de recuperação das liberdades públicas, a Constituinte foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para todos os setores organizados e grupos de interesse fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindicações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses múltiplos e a já referida ausência de um anteprojeto, geraram um produto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalência do interesse público oscilantes entre extremos. Um texto que, mais do que analítico, era casuístico, prolixo e corporativo. Esse defeito o tempo não curou: muitas das emendas, inclusive os ADCT, espicharam ainda mais a Carta Constitucional ao longo dos anos.
 
Outra circunstância que merece ser assinalada é a do contexto histórico em que se desenrolaram os trabalhos constituintes. Após muitos anos de repressão política, o pensamento de esquerda finalmente podia se manifestar livremente, tendo se formado inúmeros partidos políticos de inspiração comunista, socialista, trabalhista e socialdemocrata. Mais organizados e aguerridos, os parlamentares dessas agremiações predominaram amplamente nos trabalhos das comissões, até a reação, de última hora, já narrada, das forças de centro e de direita. Ainda assim, o texto aprovado reservava para o Estado o papel de protagonista em áreas diversas, com restrições à iniciativa privada e, sobretudo, ao capital estrangeiro, aí incluídos os investimentos de risco. Pois bem: um ano após a promulgação da Constituição, caiu o Muro de Berlim e começaram a desmoronar os regimes que praticavam o socialismo real. Simultaneamente, a globalização, com a interconexão entre os mercados e a livre circulação de capitais, impôs-se como uma realidade inelutável. Pelo mundo afora, ruíam os pressupostos estatizantes e nacionalistas que inspiraram parte das disposições da Constituição brasileira.
 
Alguns revezes
A Constituição brasileira, como assinalado, consubstanciou-se em um texto excessivamente detalhista e que, além disso, cuida de muitas matérias que teriam melhor sede na legislação infraconstitucional. De tais circunstâncias, decorrem consequências práticas relevantes. A primeira delas é que a constitucionalização excessiva dificulta o exercício do poder político pelas maiorias, restringindo o espaço de atuação da legislação ordinária. Em razão disso, diferentes governos, para implementar seus programas, precisaram reunir apoio de maiorias qualificadas de três quintos, necessárias para emendar a Constituição, não sendo suficientes as maiorias simples, próprias à aprovação da legislação ordinária. O resultado prático é que, no Brasil, a política ordinária – i.e., a implementação da vontade das maiorias formadas a cada época – se faz por meio de emendas constitucionais, com todo o incremento de dificuldades que isso representa.
 
Chega-se, assim, sem surpresa, à segunda consequência da constitucionalização excessiva e minuciosa: o número espantoso de emendas, que antes do vigésimo aniversário da Carta já somavam 56. Houve modificações constitucionais para todos os gostos e propósitos: limitação da remuneração de parlamentares, restrições à criação de municípios, realização de reformas econômicas, administrativas, previdenciárias, do Judiciário, prorrogação de tributos provisórios, desvinculação de receitas, atenuação da imunidade parlamentar formal, contenção das medidas provisórias, redução do mandato presidencial, admissão da reeleição e daí por diante. Há risco de se perder o fôlego, a conta e a paciência. Tudo isso sem qualquer perspectiva de inversão de tendência. Naturalmente, essa disfunção compromete a vocação de permanência da Constituição e o seu papel de simbolizar a prevalência dos valores duradouros sobre as contingências da política.
 
O desempenho das instituições
Cabe, antes de concluir, fazer uma breve anotação sobre aspectos relevantes associados ao funcionamento dos três Poderes ao longo dos vinte anos de vigência da Constituição. São examinadas, ainda que brevemente, algumas das mudanças constitucionais que repercutiram sobre a atuação de cada um deles, bem como o desempenho concreto de seus papéis constitucionais pelo Executivo, Legislativo e Judiciário.
 
No tocante ao Poder Executivo, o plebiscito previsto no art. 2º do ADCT, realizado em 21 de abril de 1993, manteve, por significativa maioria, o sistema presidencialista. Dentre as emendas constitucionais aprovadas, merecem registro a que reduziu o mandato presidencial de cinco para quatro anos, a que passou a admitir a reeleição e a que criou o Ministério da Defesa, marco simbólico relevante da submissão do poder militar ao poder civil. As medidas provisórias, concebidas como um mecanismo excepcional de exercício de competência normativa primária pelo Executivo, tornaram-se instrumento rotineiro de o presidente legislar. A disfunção só veio a ser coibida, ainda que não integralmente, com a edição da Emenda Constitucional nº 32, de 12.09.2001. Apesar da redemocratização, não se superou integralmente o presidencialismo hegemônico da tradição brasileira, que se manifesta em domínios diversos, inclusive e notadamente, no poder de contingenciar verbas orçamentárias.
 
Quanto ao Poder Legislativo, cabe assinalar a recuperação de suas prerrogativas após a Constituição de 1988, embora permaneça visível o decréscimo de sua importância na produção de leis. De fato, além das medidas provisórias já referidas, a maior parte dos projetos relevantes resultaram de iniciativa do Executivo. Nesse cenário, a ênfase da atuação do Congresso Nacional deslocou-se para a fiscalização dos atos de governo e de administração. O principal instrumento dessa linha têm sido as comissões parlamentares de inquérito (CPIs). Por outro lado, um problema estrutural da representação política no Brasil é a desproporcionalidade da composição da Câmara dos Deputados. De fato, o número máximo de setenta deputados e o mínimo de sete, determinados pelo art. 45, § 1º da Constituição, provoca a sobre-representação de alguns estados e a sub-representação de outros. Por fim, a Emenda Constitucional nº 35, de 21.12.2001, introduziu modificação substantiva no regime jurídico da imunidade parlamentar, deixando de exigir prévia licença da Casa Legislativa para a instauração de processo criminal contra parlamentar.
 
O Poder Judiciário, por sua vez, vive um momento de expressiva ascensão política e institucional. Diversas são as causas desse fenômeno, dentre as quais se incluem a recuperação das garantias da magistratura, o aumento da demanda por justiça por parte de uma sociedade mais consciente, a criação de novos direitos e de novas ações pela Constituição, em meio a outros fatores. Nesse cenário, ocorreu entre nós uma expressiva judicialização das relações sociais e de questões políticas. O Supremo Tribunal Federal (STF) ou outros órgãos judiciais têm dado a última palavra em temas envolvendo separação de Poderes, direitos fundamentais, políticas públicas, regimes jurídicos dos servidores, sistema político e inúmeras outras questões, algumas envolvendo o dia-a-dia das pessoas, como mensalidade de planos de saúde ou tarifa de serviços públicos. Essa expansão do papel do Judiciário, notadamente do STF, fez deflagrar um importante debate na teoria constitucional acerca da legitimidade democrática dessa atuação.
 
Conclusão
O que ficou por fazer
 
A comemoração merecida dos vinte anos da Constituição brasileira não precisa do falseamento da verdade. Na conta aberta do atraso político e da dívida social, ainda há incontáveis débitos. Subsiste no país um abismo de desigualdade, com recordes mundiais de concentração de renda e déficit dramático em moradia, educação, saúde, saneamento. A lista é enorme. Do ponto de vista do avanço do processo civilizatório, também estamos para trás, com índices inaceitáveis de corrupção, deficiências nos serviços públicos em geral – dos quais dependem, sobretudo, os mais pobres – e patamares de violência que se equiparam aos de países em guerra. Por outro lado, o regime de 1988 não foi capaz de conter a crônica voracidade fiscal do Estado brasileiro, um dos mais onerosos do mundo para o cidadão-contribuinte. Sem mencionar que o sistema tributário constitui um cipoal de tributos que se superpõem, cuja complexidade exige a manutenção de estruturas administrativas igualmente custosas.
 
Há, todavia, uma outra falha institucional, que, por sua repercussão sobre todo o sistema, compromete a possibilidade de solução adequada de tudo o mais. Nos vinte anos de sua vigência, o ponto baixo do modelo constitucional brasileiro, e dos sucessivos governos democráticos, foi a falta de disposição ou de capacidade para reformular o sistema político. No conjunto de desacertos das últimas duas décadas, a política passou a ser um fim em si mesma, um mundo à parte, desconectado da sociedade, visto ora com indiferença, ora com desconfiança. As repetidas crises produzidas pelas disfunções do financiamento eleitoral, pelas relações oblíquas entre Executivo e parlamentares, bem como pelo exercício de cargos públicos para benefício próprio, têm trazido, ao longo dos anos, uma onda de ceticismo que abate a cidadania e compromete sua capacidade de indignação e de reação. A verdade, contudo, é que não há Estado Democrático sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem parlamento atuante e investido de credibilidade. É preciso, portanto, reconstruir o conteúdo e a imagem dos partidos e do Congresso, assim como exaltar a dignidade da política. O sistema político brasileiro, por vicissitudes diversas, tem desempenhado um papel oposto ao que lhe cabe: exacerba os defeitos e não deixa florescer as virtudes.
 
É preciso desenvolver um modelo capaz de resgatar e promover valores como legitimidade democrática, governabilidade e virtudes republicanas, produzindo alterações profundas na prática política. Há inúmeras propostas na matéria, apesar da pouca disposição para o debate. Uma delas defende para o Brasil, como sistema de governo, o semipresidencialismo, nos moldes da França e de Portugal; como sistema eleitoral, a fórmula do voto distrital misto, que vigora, por exemplo, na Alemanha; e, como sistema partidário, um modelo fundado na fidelidade e na contenção da pulverização dos partidos políticos.
 
O que se deve celebrar
O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. O imaginário social contemporâneo vislumbra nesse arranjo institucional, que procura combinar Estado de Direito (supremacia da lei, rule of the law, Rechtsstaat) e soberania popular, a melhor forma de realizar os anseios da modernidade: poder limitado, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, justiça social, tolerância e – quem sabe? – até felicidade. Para evitar ilusões, é bom ter em conta que as grandes conquistas da humanidade levam um tempo relativamente longo para passarem do plano das ideias vitoriosas para a plenitude do mundo real. O curso do processo civilizatório é bem mais lento do que a nossa ansiedade por progresso social. O rumo certo, porém, costuma ser mais importante do que a velocidade.
 
O modelo vencedor chegou ao Brasil com atraso, mas não tarde demais, às vésperas da virada do milênio. Os últimos vinte anos representam, não a vitória de uma Constituição específica, concreta, mas de uma ideia, de uma atitude diante da vida. O constitucionalismo democrático, que se consolidou entre nós, traduz não apenas um modo de ver o Estado e o Direito, mas de desejar o mundo, em busca de um tempo de justiça, fraternidade e delicadeza. Com as dificuldades inerentes aos processos históricos complexos e dialéticos, temos nos libertado, paulatinamente, de um passado autoritário, excludente, de horizonte estreito, e vivido as contradições inevitáveis da procura do equilíbrio entre o mercado e a política, entre o privado e o público, entre os interesses individuais e o bem coletivo. Nos duzentos anos que separam a chegada da família real e o vigésimo aniversário da Constituição de 1988, passou-se uma eternidade.
 

 
Luís Roberto Barroso
Professor Titular de Direito Constitucional da Uerj