“O lixo e o lucro”

5 de agosto de 2001

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O governo brasileiro acaba de anunciar, com muito orgulho que deu lucro no primeiro semestre. União, Estados e municípios arrecadaram R$ 30,4 bilhões a mais do que gastaram (fora os juros)

O “lucro” conseguiu ser superior à meta acertada com o FMI (Fundo Monetário Internacional), que se contentava com R$ 21,4 bilhões.

Até daria orgulho, não fosse a foto da capa da Folha de São Paulo de 31/07, mostrando o pessoal de favelas cariocas fuçando o lixo no Ceasa, queimado dez dias atrás, em busca de comida.

A repórter Fernanda da Escóssia captou bem o momento na frase de uma garota de 13 anos com que abriu o seu texto: “Se eu comer essa salsicha, vai fazer mal? Eu já comi. Só não queria mais ficar com fome”.

Tem de haver algo profundamente errado em um país cujo governo se orgulha de ter “lucro” enquanto seus habitantes buscam comida no lixo.

Não se trata de ser contra orçamentos equilibrados. Mas já é discutível, em primeiro lugar, o tamanho do superávit que o Brasil combinou com o FMI. Trata-se de um ajuste brutal. Seria perfeitamente possível diluí-lo no tempo.

Agora, aceitar ir além do aperto combinado com o Fundo e de uma insensibilidade inimaginável. Sou obrigado a voltar a Paul Krugman, economista-estrela de Princeton, que, na semana passada, condenava a aplicação, em países como a Argentina, de receitas que seriam impensáveis nos EUA.

No Brasil, é ainda pior, porque a situação social brasileira consegue ser pior que a da Argentina mesmo na decadência. Aqui, é maior o número de pessoas que comem salsicha eventual mente podre só porque não agüentam mais ficar com fome. Enquanto isso, o governo da “lucro”. Não pergunte, por favor, para quem vai o “lucro”.

Não é certamente para Ana Paula Moreira Neves, a menina que trocou a fome pelo lixo.