O Ministério Público e a democracia

5 de abril de 2004

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A instituição do Ministério Público representou uma conquista inestimável ao aperfeiçoamento da democracia brasileira. Reforçou também um aspecto fundamental do aparelhamento republicano do poder ao conferir ao poder Judiciário mais autonomia e mais capacidade de controle sobre os demais poderes. Mas uma compreensão correta do arcabouço institucional republicano implica concebê-lo como um sistema de poderes autônomos, complementares, contrapostos e mutuamente limitados por freios e contrapesos. Nessa concepção, os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – se controlam entre si e por decorrência da doutrina democrática, devem ter algum tipo de controle social. É a partir dessa compreensão teórica que deve ser entendido o debate atual acerca da necessidade de instituição de controles externos sobre o Judiciário e sobre o Ministério Público.

Algumas práticas levadas a efeito por membros do Ministério Público reforçam a percepção da necessidade de se erigir esses controles externos. Dentre essas práticas irregulares, destaca-se a atuação de alguns procuradores envolvendo o caso Waldomiro Diniz e a tentativa de obtenção da fita motivadora da denúncia junto ao empresário do jogo, Carlinhos Cachoeira.

Antes que paire qualquer tipo de dúvida ou de distorção deliberada de fatos e argumentos cabe reiterar que, para o PT, o caso Waldomiro Diniz é grave, precisa ser apurado até o fim e os rigores da lei precisam ser aplicados. Dito isto, cabe estabelecer uma petição de princípios: a investigação de uma ilegalidade não pode ser contra a lei.

O poder não pode usar quaisquer meios para atingir seus fins. Isto representa o reino do arbítrio, contraposto à democracia, que, por definição, expressa o império da lei. Até porque quando uma investigação não segue os princípios da lei ela será anulada pelo Judiciário, além de estimular a impunidade.

O teor da conversa gravada entre o subprocurador José Roberto Santoro com Carlinhos Cachoeira representa exatamente esse rompimento do legal e uma deturpação das atribuições constitucionais do Ministério Público. Quando a legislação brasileira, corretamente, adotou uma prática consagrada pelo direito italiano de beneficiar o criminoso que colabora com a Justiça na investigação de crimes, o fez exatamente para elucidar atos criminosos.

O que a gravação da conversa do subprocurador da República com o empresário do jogo revela, no entanto, é outra coisa. Na conversa, o foco não era a investigação das ações de Waldomiro Diniz na Loterj e suas supostas ligações com outros ilícitos. O foco da conversa consistia em como atingir o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o governo federal. Todo o enfoque da conversa não era criminal, era político. O que o procurador visava não era investigar e esclarecer um crime, mas criar um processo político contra o governo e o ministro, cujo instrumento último e legalizador dessa urdidura seria a instalação de uma CPI no Senado.

O caráter conspiratório e clandestino da ação do subprocurador está inequivocamente testemunhado na própria conversa: feita na hora suspeita da madrugada, o subprocurador estava tomado de precauções para que o procurador geral da República não tomasse conhecimento do desenrolar dos fatos. Como pode ter pretensão de normalidade e de legalidade uma ação de um subprocurador que é feita à revelia da instituição e às escondidas de seus superiores hierárquicos? A operação envolvia também um delegado da Polícia Federal. Nem a instituição policial e nem seus superiores hierárquicos estavam informados dessa ação.

O caráter clandestino e não institucional de ações de setores do Ministério Público e da Polícia Federal revela o grave perigo a que o sistema democrático está exposto e que pode afetar a própria proteção dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Ou seja, em nome de uma investigação, violam-se as garantias fundamentais dos cidadãos e armam-se conspirações de natureza política. Não apenas usam-se fins ilícitos e ilegais em nome de uma falsa legalidade, mas falsifica-se os próprios fins que justificaram a adoção do Ministério Público, instituição tão importante para o funcionamento adequado da democracia.

O que está em jogo nessa extrapolação de poderes não é o PT, o governo ou a crise. O que está em jogo é o funcionamento de um princípio da democracia. O que não pode mais continuar existindo é essa atuação paralela, não institucional membros do Ministério Público e da Polícia Federal. O Ministério Público não pode ser braço político, nem do governo e nem dos partidos. A regulamentação de funções e o controle público são remédios que precisam ser aplicados de forma urgente para impedir que amanhã práticas ilegais, como estas, não causem um prejuízo ainda maior à democracia.