“O único partido do Ministério Público é a Constituição”

5 de outubro de 2020

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Procurador-Geral da República, Augusto Aras, defende o papel contramajoritário do Ministério Público

Em entrevista à Revista Justiça & Cidadania, o Procurador-Geral da República Antônio Augusto Brandão de Aras fez o balanço de um ano à frente da PGR e analisou a evolução do papel do MP desde a Constituição de 1988. Membro do Ministério Público Federal desde 1987, ele não se furtou a responder perguntas sobre temas espinhosos, como os impasses entre a PGR e a força-tarefa da operação Lava Jato, a eventual responsabilização por excessos de promotores e procuradores de justiça, bem como a questão da liberdade de expressão dos membros do Parquet. O Procurador-Geral defendeu ainda o modelo definido para a instituição no texto constitucional que, em tese, coloca o MP acima das oscilações da conjuntura política e impede a contaminação pelos “vícios” do Executivo e do Legislativo.

Revista Justiça & Cidadania – O senhor completa em setembro um ano à frente da Procuradoria Geral da República. Qual é o balanço que faz da atuação do órgão nesse período?
Augusto Aras – Na área criminal, reafirmamos o compromisso do Ministério Público com o combate à corrupção e à criminalidade organizada. Oferecemos 26 denúncias ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal (STF), envolvendo 92 pessoas. Dos investigados, 27 tiveram prisão provisória decretada a pedido da PGR, e 21 foram afastados de seus cargos. Assinamos também 19 acordos de colaboração premiada, com multas bilionárias.

Na área constitucional, ajuizamos 64 ações diretas de inconstitucionalidade no STF, muitas delas questionando benesses garantidas irregularmente a agentes públicos e ex-ocupantes de cargos eletivos, como as pensões de ex-governadores. Reduzimos em 60% o acervo de processos de natureza penal, constitucional e eleitoral, dando andamento a feitos que herdamos de gestões anteriores e mantendo em dia a análise do que nos chegou ao longo do último ano. Fizemos parcerias com ministérios, como o da Infraestrutura, para que o MP funcione como agente indutor do desenvolvimento socioeconômico do Brasil, fomentando a atuação preventiva da instituição para acompanhar a execução de grandes licitações e contratos, diminuindo o risco de paralisações de serviços.

JC – Quais projetos ainda pretende implementar durante sua gestão?
AA – Pretendo fortalecer mais ainda o combate à corrupção e formar quadros mais especializados em temas econômicos relevantes para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro. Também pretendo contribuir para que a democracia aumente e melhore seu grau de participação popular por meio de diversos mecanismos de acesso do cidadão ao próprio Ministério Público como um todo, como ouvidorias, Câmaras de Coordenação e Revisão, serviço de atendimento ao cidadão.

E, mais que tudo, seja no plano externo, seja no interno, pretendo promover a transparência e a publicidade dos atos, para que a instituição possa ser escrutinada por todo o povo brasileiro e, com isso, inclusive, possa ser melhor fiscalizada, seja para que o serviço se realize de forma eficiente, seja para que se realize com observância aos direitos e garantias fundamentais de toda a sociedade.

JC – Como o senhor avalia o modelo constitucional do Ministério Público no Brasil? Como ele poderia ser aperfeiçoado?
AA – Entendo que o MP, assim como a magistratura, são instituições contramajoritárias, são instituições que encontram sua legitimidade material no dever de cumprir a Constituição e as leis do País. Dessa forma, processos de legitimação material que passem por sistemas eleitorais típicos do Executivo e do Legislativo são incompatíveis com essas instituições contramajoritárias, especialmente porque atraem para o interior dessas instituições os vícios que assolam as eleições em geral. O Ministério Público precisa ter a sua compreensão, como órgão autônomo, que, ao lado da magistratura, atua com o dever de cumprir a Constituição e as leis do País, sem se deixar influenciar por escolhas pessoais de seus membros e da própria instituição, por qualquer pensamento político-partidário. O único partido do Ministério Público é a Constituição Federal.

JC – O Ministério Público ganhou muito poder na Constituição de 1988. Soube usá-lo de maneira ponderada?
AA – O Ministério Público, como guardião do regime democrático, por meio do cumprimento da ordem jurídica, tem na Constituição o seu caminho do meio, o seu equilíbrio, a sua ponderação. Nesses 32 anos da Constituição, a instituição tem passado por momentos de ponderação e momentos de excessos, que vão sendo corrigidos ora no plano interno, por meio de seus quadros superiores, ora no plano externo pela atuação do Poder Judiciário. Para o Ministério Público que promove justiça, existe o aplicador do direito que é o Judiciário, que distribui justiça. O sistema de freios e contrapesos tende a corrigir eventuais excessos de quaisquer das duas magistraturas.

JC – Os recentes impasses entre a PGR e a operação Lava Jato de alguma forma revelam falta de unidade no corpo do Ministério Público Federal?
AA – O Ministério Público não precisa ser constituído em corpo, e, sim, preservar a sua unidade, que passa pela Lei Complementar nº 75/1993, a qual estipula sua estrutura, sua organização e seu funcionamento. Unidade não se confunde com corporativismo. Corporativismo é sempre algo endógeno, que encontra um fim em si mesmo. O Ministério Público não pode encontrar um fim em si mesmo, para seus membros, mas, sim, um fim para servir ao interesse público, à sociedade e ao Estado brasileiro. Quando o Ministério Público age do ponto de vista da unidade institucional, nos termos da Lei Complementar, ele mantém coerência, coesão e constrói uma unidade que assegura, acima de tudo, a segurança jurídica, que é um atributo do nosso Estado Democrático de Direito.

JC – O MP tem atuado com o rigor necessário para, internamente, melhorar o seu sistema de cobrança de responsabilidades? O que poderia ser feito para aprimorar o trabalho das corregedorias e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)?
AA – No plano da autocontenção institucional, nossa gestão tem buscado fortalecer a Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal em todas as suas atuações, buscando trabalhar juntamente com a Corregedoria Nacional do Ministério Público, assim também com todas as corregedorias nos estados, pois sabemos que é preciso não somente que o sistema de freios e contrapesos funcione externamente, entre Poderes e órgãos autônomos, mas também no plano interno.

Nós temos um fenômeno novo: com o pacote anticrime, o Ministério Público brasileiro passa a ter um protagonismo especial por meio de institutos ditos despenalizadores, a exemplo do acordo de não persecução penal, do acordo de não persecução cível, acordos de leniência, acordos de colaboração premiada. Isso tudo vai impor ao MP brasileiro como um todo o fortalecimento urgente de suas corregedorias, porque, com isso, o Ministério Público assume uma parte significativa das funções do Poder Judiciário no que toca à solução de conflitos de forma preventiva, de forma extraprocessual. Nós temos que evitar que as vantagens desses institutos atraiam também os vícios que a atuação sem controle possa ocasionar. É hora de fortalecer as nossas corregedorias para que o empoderamento advindo do pacote anticrime não atraia também vícios que possam enodoar, macular a importância desses institutos.

JC – Acredita que a introdução no ordenamento de institutos jurídicos que deem mais poder aos membros do MP, a exemplo da plea bargaining, poderia causar incômodo aos membros do Poder Judiciário? Acha que os juízes teriam dificuldades para abrir mão do controle jurisdicional que hoje têm, por exemplo, sobre as provas utilizadas para embasar acordos ou os critérios para fixação de penas?
AA – É preciso que nós vejamos as duas magistraturas, como reconhecido pela Suprema Corte brasileira, como integrantes do mesmo Sistema de Justiça. Elas se completam perante o sistema acusatório constitucional brasileiro. Nesta integração institucional, o Ministério Público promove a persecutio criminis e o Judiciário decide. Isso funciona como mecanismos de freios e contrapesos para que o MP, ao mesmo tempo, exerça um controle policial externo das investigações criminais e, em um plano interno, endoprocessual, promova o controle da legalidade – inclusive, movendo recursos contra eventuais decisões judiciais, sempre lembrando que o juiz decide acerca da legalidade ou ilegalidade.

O MP dispõe dos recursos dentro dos limites constitucionais para buscar aquilo que entende ser justo, legítimo, válido e legal. Nosso sistema não se exaure em uma única instituição, precisamos dessa integração para que o sistema da Justiça brasileira se realize.

JC – Na sua opinião, os membros do Ministério Público têm o direito de se expressar livremente por meio da imprensa e das redes sociais, inclusive a respeito das suas posições políticas individuais?
AA – Os membros do Ministério Público têm direito à liberdade de expressão no exercício das suas funções e nos limites da lei postos para suas próprias funções. Como cidadãos, devem ter o gozo de sua liberdade de expressão sem desprezar a ideia de que, mesmo como cidadãos, não deixam de ser membros da instituição – visto que, mesmo como cidadãos, quando cometem algum ilícito, também sofrem processos administrativos, pela qualidade de agentes públicos que ostentam.

Dessa forma, é preciso que o membro do MP não se esqueça de que tem o dever de zelo institucional, tem o dever de urbanidade não só no exercício de sua função, mas também pela sua postura e compostura, devendo agir com decoro na vida pública e privada. A separação entre a atuação do membro do Ministério Público na esfera pública e privada se restringe ao ambiente mais íntimo possível, tendo em vista que é impossível separar o indivíduo do agente público que está investido da autoridade que o Estado lhe confere.

JC – Como o senhor avalia a cobertura da imprensa sobre a atuação do MP?
AA – Avalio que existe a boa imprensa e os bons jornalistas e existem alguns profissionais que não se comportam nessa linha. Sou daqueles que defendem de forma muito segura a liberdade de expressão, mas também não posso admitir os abusos, os excessos do exercício da liberdade de profissão, a dar margem a narrativas que subvertam os fatos e as suas fontes. O bom jornalismo respeita fonte e fato. O mau jornalismo deforma a sociedade contribuindo para propagandas muitas vezes de guerra, muitas vezes com a disseminação de discurso de ódio, de intolerância. É preciso valorizar o bom jornalismo, que informa, que forma, que transmite conhecimento.

JC – Embora o MP tenha corajosamente liderado as maiores ações e medidas de combate à corrupção e ao crime organizado, seu poder de paralisar qualquer obra pública ou privada, questionar leis, decretos e normas de toda espécie é apontado como excessivo por alguns juristas. O que o senhor poderia comentar a respeito?
AA – Na nossa gestão, nós adotamos como um dos mais importantes vetores a atuação preventiva do Ministério Público, especialmente no que toca a grandes contratos de obras e serviços, públicos e privados, para que, atuando com todos os players, façamos um trabalho técnico, prévio, com as Câmaras de Coordenação e Revisão, e, dessa forma, não contribuamos para travar a economia, interrompendo contratos.

A atuação preventiva não importa em uma renúncia do MP de fiscalizar esses mesmos processos licitatórios e de contratação. O Ministério Público atuará em todo o curso de execução do contrato, e, se ao final, ainda assim, restar alguma ilicitude, caberá à Instituição  exercer o seu dever de processar criminalmente ou por improbidade os eventuais responsáveis por atos ilícitos. Nossa posição é a que venho defendendo há um ano: um Ministério Público qualificado tecnicamente, que aja preventivamente, ganhando a confiança da sociedade, especialmente dos setores econômicos, que contribua para a segurança jurídica, a redução do Custo Brasil, para a maior atratividade de recursos nacionais e estrangeiros.

JC – O instituto da delação premiada surgiu com a promessa de ser um poderoso instrumento no combate à corrupção. Deu certo? O que pode ser feito para aperfeiçoar o instrumento?
AA – Ainda estamos em um tempo de aprendizado do instituto da colaboração premiada. Ainda estamos à mercê de desenvolver sistemas de fiscalização e controle interno para que as colaborações operem em um plano de transparência, de plena legalidade, e para que não haja abusos dos delatores e mesmo dos membros do Ministério Público. Estamos desenvolvendo sistemas e estudos acadêmicos, dentro do próprio MP, exatamente para que os colaboradores, quando assim se determinarem, possam ter a confiança de que a sua delação será tomada de forma legal, sem consequências lesivas para o próprio delator e, também, que os terceiros delatados não venham a ser vítimas de vendetas particulares ou mesmo de extorsões de delatores, como temos notícia de ocorrência. E ainda proteger nossos membros de acusações de abuso de autoridade ou outro fato semelhante.

Os institutos da colaboração premiada, da leniência e mesmo dos acordos de não persecução penal ainda fazem parte de nosso aprendizado, a tal ponto que coube a mim, como procurador-geral, assinar o primeiro acordo de não persecução penal com o Ministro Onyx Lorenzoni após a edição do pacote anticrime.

Nós temos a Escola Superior do Ministério Público da União, com nosso diretor, Paulo Gustavo Gonet Branco, e o diretor adjunto, Manoel Jorge, e toda a equipe de professores e colegas estudando, propiciando meios de buscar segurança jurídica na realização desses institutos despenalizadores, muito importantes para desinchar a máquina judiciária e conferir eficiência e melhores resultados ao combate à corrupção e, em particular, buscar punição para aqueles que adentram o universo do crime.

JC – O Poder Judiciário já percebe um aumento, até previsível, do número de demandas judiciais em função da pandemia de covid-19. O MP pretende adotar alguma medida ou postura para ajudar o Sistema de Justiça a atender à justa expectativa dos demandantes pela duração razoável dos processos?
AA – O Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia de Covid-19 (GIAC), criado na PGR, tem essa pretensão. Uma vez superada a fase posta até aqui, de coordenação de ações de todo o Ministério Público brasileiro e interlocução com órgãos de saúde, o Gabinete já estuda câmaras de conciliação que possam atuar em todo o País para conciliar interesses distintos envolvendo questões trazidas pela covid-19. Essa medida está sendo estudada juntamente com a magistratura. A Bahia é pioneira com a câmara de conciliação em questões de saúde, com o desembargador Mário Albiani Júnior, que tem tido muito sucesso.

JC – Hoje no Judiciário há plenários virtuais, sessões por videoconferência, uso da inteligência artificial e de várias outras ferramentas tecnológicas. O MP também teve que se adaptar rapidamente a essa nova realidade. Como o senhor enxerga o uso dessas ferramentas? Vê riscos ao devido processo legal ou às garantias fundamentais dos cidadãos?
AA – Vejo com muito otimismo todo processo de desenvolvimento tecnológico em prol da melhoria dos serviços do Ministério e da magistratura, mas devo dizer que existem relações que são indissociáveis da pessoalidade, como o contato físico no cotidiano entre juízes, promotores, advogados, partes, e especialmente quando agentes públicos têm de fiscalizar serviços que são sensíveis, como orfanatos, casas de idosos, hospitais e outros ambientes.

Existem ainda princípios eternos que definem a verdade processual a partir, por exemplo, do olhar que o juiz tem, o princípio da imediatidade na colheita de provas é fundamental para que o juiz possa aquilatar se a testemunha mente ou não, ou mesmo aquilatar a verdade de um interrogado acerca de fatos relevantes para a formação de sua convicção.

Então, é preciso lembrar que existem determinadas circunstâncias que a pós-modernidade e suas inovações tecnológicas não irão superar, que é o contato físico, olho a olho, entre juiz, Ministério Público, advogado e partes em busca da realização do objeto sagrado da atividade do MP e da Justiça, que é a justiça justa.