Edição

Os Desafios do Judiciário

5 de novembro de 2001

Compartilhe:

O notável jurista italiano Mauro Cappelletti, professor por muitos anos na Universidade de Stanford (EUA) e autor de importantes trabalhos de direito comparado, como “O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado” e “Acesso à Justiça”, diz com sabedoria: “Sob a ponte da Justiça passam todas as dores, todas as misérias, todas as aberrações, todas as opiniões políticas, todos os interesses sociais. Justiça é compreensão, isto é, tomar em conjunto e adaptar os interesses opostos: a sociedade de hoje e a esperança do amanhã”.

Tem razão o eminente professor, de valor intelectual e prestígio reconhecidos em todo o mundo jurídico. É preciso reconhecer o trabalho contínuo, determinado e quase sempre anônimo da grande maioria dos juízes, que, com idealismo e independência, realiza a Justiça de acordo com a Lei.

Reformas do Judiciário no Brasil, todavia, são necessárias para permitir a todos o acesso à justiça, evitar abusos de natureza administrativa, a lentidão da prestação jurisdicional, os recursos protelatórios, o formalismo excessivo em detrimento da substância do Direito e o excesso de processos repetitivos (que se acumulam nos tribunais do país, incluindo tribunais superiores e o Supremo). Tal situação é, obviamente deletéria da credibilidade do sistema jurídico e dos princípios constitucionais da legalidade e da isonomia, pilares do Estado Democrático de Direito.

O saudoso ministro Victor Nunes Leal, autor de “Problemas de Direito Público”, obra clássica na literatura jurídica pela relevância dos temas (constitucionais e de direito público) e pela densidade doutrinária e jurisprudencial, introduziu no Brasil há cerca de quarenta anos, como membro da Comissão de Jurisprudência do STF, a experiência bem-sucedida das súmulas, inspiradas na doutrina do “stare decisis” e nos “restatements of laws” do direito anglo-americano. O eminente ministro Carlos Velloso, ex-presidente do Supremo, defende a modernização do Judiciário, com a adoção, dentre outras medidas, do efeito vinculante das súmulas da jurisprudência do STF e dos tribunais superiores. Propugna também pela instituição da arguição de relevância da questão federal (na verdade, introduzida pela primeira vez no Brasil por emenda ao regimento interno do colendo Supremo Tribunal Federal, nos idos de 1965, contando ainda com o talento de Victor Nunes Leal).

Penso que o ex-presidente do Supremo tem inteira razão em ambas as hipóteses. Na primeira, mais do que evitar o acúmulo de processos repetitivos (que dificultam o acesso ao Judiciário e prejudicam a qualidade da prestação jurisdicional, violando o princípio do “due process of law”), prestigiam-se os princípios da legalidade e da isonomia, da igualdade perante a lei, pois os recursos extraordinários e especiais destinam-se a permitir ao STF e aos tribunais superiores, pela correta exagese da norma jurídica federal abstrata, conferir às normas o conteúdo que lhes deram os representantes do povo no Congresso Nacional. A lei, expressão da vontade geral, deve ser aplicada igualmente para todos. O direito constitucional americano é muito expressivo ao referir-se à “igual proteção das leis”.

Na segunda hipótese, inspirada no “writ of certiorari” da Suprema Corte dos EUA, busca-se limitar a jurisdição do STF às questões realmente importantes para a Federação. Tem razão, ainda, o ex-presidente do Supremo quando preconiza a criação de um Conselho Nacional da Magistratura para tratar da administração da Justiça, promovendo seu contínuo aprimoramento.

São grandes os desafios para o Judiciário no terceiro milênio, diante da globalização, do desenvolvimento científico e tecnológico, das novas causas da humanidade (como a proteção internacional dos direitos humanos, a questão ambiental, o combate ao narcotráfico e ao crime organizado transnacional) e, sobretudo, do acesso à Justiça e aos direitos da liberdade e bem-estar para todos, consolidando os valores da ética, da solidariedade e do respeito à dignidade do ser humano.

As reformas constitucionais e infraconstitucionais do Judiciário devem superar obstáculos políticos, acadêmicos e corporativos para assegurar ao povo brasileiro uma melhor Justiça e uma mentalidade mais consentânea com os tempos em que vivemos, como deve ser a do jurista contemporâneo.

O pensamento de dois grandes “justices” da Suprema Corte dos EUA vem bem a propósito da matéria. O saudoso Benjamin Nathan Cardozo, de cujas valiosas lições nas “Yale Lectures” resultou o internacionalmente famoso “The Nature of the Judicial Process”, via na função judicial a oportunidade para praticar a criativa arte pela qual o Direito é moldado para preencher as necessidades de uma ordem social em mudanças. E o “justice” William J. Brennan, também falecido, adotava filosofia jurídica que conduz a uma síntese emblemática, nas suas próprias palavras: “O progresso do Direito depende do diálogo entre coração e mente”.