Os desafios para a Constituição brasileira e o estado do bem-estar social em tempos de ultraneoliberalismo

12 de julho de 2021

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Desde a sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, a Constituição Federal já teve mais de uma centena de Emendas Constitucionais demonstrando que inúmeros governos de diferentes vertentes ideológicas, em conjunto com setores do Parlamento, aproveitaram uma maioria parlamentar circunstancial de forma a adaptar a Carta Fundamental às suas propostas políticas de governabilidade. Faz parte da política.

A Constituição Federal de 1988 sempre foi elogiada pelo seu compromisso com a democracia, o estado do bem-estar social e os direitos fundamentais que resgataram os valores em defesa da liberdade, igualdade, direitos humanos e justiça social, que haviam sido combatidos com o golpe civil-militar de 1964 e enfraquecidos com a Constituição de 1967 e a Constituição de 1969, por ocasião da Emenda Constitucional nº 1.

Contudo, desde o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2016 por um crime de responsabilidade denominado “pedalada fiscal”, ao meu juízo inexistente para sua saída do cargo, a agenda política tradicionalmente de centro deu uma guinada para a centro-direita, com Michel Temer, e posteriormente para a extrema-direita, com Jair Bolsonaro. Mas o que nos interessa é que esta mudança também ocorreu nos fundamentos econômicos, com o retorno da adoção do modelo neoliberal com o Governo Michel Temer e, posteriormente, ultraneoliberal com o Governo Jair Bolsonaro; inclusive, neste caso, conferindo superpoderes ao Ministro da Economia, Paulo Guedes, desde o início do seu mandato.

Entre os principais exemplos dessa nova orientação política com fundamento jurídico e econômico de 2016 em diante com consequências práticas para o País, podemos apontar no campo constitucional e infraconstitucional com Michel Temer a Emenda Constitucional nº 95, também chamada de teto de gastos, com forte impacto na área social, e a denominada reforma trabalhista, com a perda de direitos.

Na sequência, o Governo Bolsonaro iniciou o mandato acabando com o Ministério do Trabalho e conferindo superpoderes à pasta econômica, além de promover a reforma previdenciária e continuar o processo de desmantelamento do estado do bem-estar social, herdado da Era Vargas, com a consequente diminuição das políticas públicas.

Essas medidas vêm encontrando convergência em um Congresso Nacional majoritariamente composto por forças do centro, centro-direita, direita e a extrema-direita, com simpatia aos fundamentos do modelo liberal.

Dentre as propostas de emenda à Constituição para enfraquecer o papel do Estado e as políticas públicas, destaco as apresentadas pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, chamadas de PEC Emergencial (Proposta nº 186/2019), PEC dos Fundos Públicos (Proposta nº 187/2019) e PEC do Pacto Federativo (Proposta nº 188/2019), que atacam as políticas públicas, o sistema federativo e os direitos fundamentais, sendo todas repletas de inconstitucionalidades, segundo os pareceres elaborados pela Comissão de Direito Constitucional e aprovados pelo Plenário do Instituto dos Advogados Brasileiros.

Ressalta-se que a Proposta nº 186/2019 foi aprovada pelo Congresso Nacional se convertendo na Emenda Constitucional nº 109, de 15 de março de 2021, que acabou atendendo, de certa forma, ao sistema financeiro, em detrimento das políticas sociais, ainda mais se levarmos em consideração o valor muito reduzido do auxílio emergencial e o período de recebimento pela população necessitada.

A política de diminuição do tamanho do Estado com o enfraquecimento das políticas públicas é particularmente dramática para a população brasileira, com o histórico de séculos de desigualdades sociais, concentração de renda e segmentos marginalizados, como negros e indígenas.

O problema maior é o desmantelamento do Estado no atual momento de altos níveis da pandemia da covid-19, em que seria indispensável maior gasto e investimento em saúde, ciência e tecnologia, universidades, saneamento, meio-ambiente, pesquisa e políticas públicas, elementos que compõem qualquer visão contemporânea de saúde pública para o combate à doença.

Seria fundamental que o Estado se comprometesse com políticas públicas e sociais, de forma a manter o nível de emprego, evitar a quebradeira das empresas e dar uma contribuição financeira mais longa para as pessoas necessitadas, tendo muitas famílias passando fome e necessidades.

Verifica-se que a maior parte dos países do mundo optou por tomar algum tipo de medida para salvar a economia, ao contrário do Brasil, cujo Ministro Paulo Guedes se vangloria de estar fazendo reformas e ajuste fiscal em plena pandemia. Trata-se de um equívoco que poderá custar muito caro ao País.

O exemplo significativo na linha contrária é o do Presidente dos Estados Unidos, Joe Binden, ao conseguir aprovar um pacote significativo no montante de cerca de US$ 2,3 trilhões, após negociações com o Congresso estadunidense, o que se constitui numa medida importantíssima até para salvar o capitalismo e estimular a economia norte-americana neste momento tão difícil.

Existem outros países com medidas de impacto na economia, como Reino Unido, Alemanha, China, Japão, dentre outros.

Neste contexto, a Constituição Federal e seus princípios fundamentais que asseguram o estado do bem-estar social deveriam nortear o sistema de proteção para o cidadão ter o benefício dessas políticas públicas, principalmente neste momento em que se chega a meio milhão de brasileiros mortos desde o início da pandemia. Mas o grande paradoxo é que os direitos sociais e as políticas públicas continuam sendo atacados na perspectiva econômica, o que propicia retrocessos às políticas públicas com restrição de gastos governamentais através da diminuição ou enfraquecimento do papel do Estado em áreas como meio-ambiente, saúde, aumento da autorização de agrotóxicos nos alimentos, diminuição de proteção aos indígenas e outras medidas que refletem o enfraquecimento dos órgãos públicos com atribuição legal para a efetividade das políticas públicas.

A própria falta de autorização e incentivo ao concurso público, aliada a uma reforma administrativa em que se responsabiliza o servidor público de forma indiscriminada, se constituem em objetivos deste projeto. Além disso, a Proposta de Emenda à Constituição tende a provocar dezenas de pedidos de aposentadoria sem reposição do concurso.

A recente aprovação da privatização da Eletrobrás se constitui em outro equívoco, tanto pela falta de definição do que é estratégico para o Estado, quanto pelo próprio momento de crise mundial provocada pela pandemia em que privatizar pode ser desvantajoso para o Estado.

Merece reflexão permanente de todos se o enfraquecimento dos direitos e garantias fundamentais do estado do bem-estar social da Constituição Cidadã, na definição do deputado Ulysses Guimarães, através desse modelo econômico, atende aos interesses do cidadão brasileiro.

Em um País com enormes desigualdades regionais e sociais, com forte desequilíbrio nas escalas sociais e com alta concentração de renda, é muito preocupante que as condições do atual modelo não ocasionem uma ruptura mais profunda que venha a dificultar o processo de inclusão social, principalmente sem a adoção das políticas públicas consolidadas no nosso modelo republicano.

Ainda mais se levarmos em conta o atual modelo federativo, que deve contemplar políticas públicas não somente da União, mas também dos estados e municípios, além do Distrito Federal, através da competência concorrente e que deveria, sob o ponto de vista do aperfeiçoamento do modelo federativo, implicar num federalismo cooperativo como consequência do federalismo clássico.

A expectativa é de que tenhamos uma mudança de prioridades e de agenda governamental, independente do governante, que possibilite que o Brasil volte a ter respeito aos princípios que simbolizaram a Carta Política de 1988, sob pena de gravíssimos retrocessos em relação a temas multilaterais e sensíveis como combate à fome, pobreza, meio ambiente, mudanças climáticas, moradia, emprego, saneamento, saúde, educação, ciência e tecnologia, dentre outros.

Esse modelo ultraneoliberal não deu certo no Chile, e mesmo nos países liberais está havendo uma compreensão da importância das políticas públicas, do investimento, do planejamento e da prioridade no atendimento ao cidadão neste momento de falta de controle da pandemia.

Somente com investimento público, instituições de excelência, como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Butantã e as inúmeras universidades públicas brasileiras, terão capacidade de pesquisar, conhecer e produzir as vacinas fundamentais para imunizar a população brasileira e chegarmos a um patamar de cerca de 80% a 85% dos cidadãos com as duas doses da vacina, para podermos voltar a alcançar o ritmo de desenvolvimento compatível com um País que chegou a ser a sexta economia do mundo.