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Primeiras anotações sobre as alterações da Lei nº 11.101/2005

8 de março de 2021

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Introdução

Assumo o autoplágio!

Quando a Lei n° 11.101/2005 entrou vigor, eu disse em artigo publicado na Revista nº 38/2007 da Emerj:

“É compreensível que toda lei nova traga certo desassossego ao sistema jurídico. O novo inquieta. Com o tempo, a jurisprudência aplaina o desconforto e mostra que a antinomia a mais das vezes é apenas aparente. Com uma lei da importância da Lei nº 11.101/2005 não foi diferente. Diversas críticas brotaram ainda na sua vacatio, notadamente em relação à redação dos institutos vitais para a compreensão do moderno direito de empresa. A distribuição topográfica das matérias no novo texto também não foi poupada. Grande parte do rebuliço doutrinário decorreu da declarada intenção da lei de preservar a empresa e sua função social, e não, apenas, a de punir o empresário devedor, como até então era da cultura do foro. Partindo dessa premissa – verdadeira, por sinal – a maioria da doutrina deu de afirmar que a Lei nº 11.101/2005 tem por únicos princípios a recuperação e a preservação da empresa, parecendo ver nisso um fim em si mesmo.

De fato, o endereço da lei é a recuperação e a função social da empresa, mas não é só isso, ou nem é isso, fundamentalmente. É sobrado de dúvida que a nova lei traz inúmeros mecanismos para que a empresa, assim entendida a atividade econômica organizada, possa superar eventual e transitória crise econômica e financeira, mas, seduzidos por esses altos propósitos legislativos, muitos veem no princípio da preservação das empresas e de sua função social um valor absoluto. Para esses, toda empresa deve ser recuperada a qualquer custo. Não é bem assim. Preserva-se a empresa que possa e deva ser preservada, e essa seleção implica um juízo de valor a priori. Para manter o equilíbrio social, econômico e político, indiscutivelmente é dever do Estado incentivar e empenhar-se em preservar as empresas, fontes geradoras de tributos e de empregos.

Ninguém nega que o fiasco de uma empresa produz efeitos danosos na sociedade onde atua, mas a aplicação indiscriminada do princípio da preservação acabaria por permitir que a continuação de uma empresa economicamente inviável trouxesse prejuízos que refletiriam de forma desastrosa na coletividade, gerando instabilidade em vez de harmonia social. Ou seja: produziria no mercado todos os efeitos maléficos que se queria evitar. O legislador emprestou um novo perfil à falência. Exemplo disso está no mecanismo de satisfação dos credores. Diferentemente do que estava no decreto revogado, a liquidação mereceu uma releitura, pois o propósito principal da nova lei é a satisfação mais célere e eficaz dos credores com mecanismos que permitam a alienação de toda a unidade produtiva a fim de preservá-la – princípio da maximização ou da valoração do ativo. Este trabalho não padece da veleidade de ter resposta pronta para todos os sobressaltos vindos com a nova lei. Quer, apenas, trazê-los à cena das discussões proveitosas”.

Com o advento da Lei n° 14.112/2020 não mudo uma vírgula do que disse.  Tratarei aqui de alguns poucos pontos acrescidos ou modificados pela nova lei.

Princípios

A Lei n° 11.101/2005 é permeada por vários princípios, tais quais:

  • indivisibilidade e unidade do juízo;
  • pars conditio creditorum;
  • maximização ou otimização do ativo;
  • preservação da empresa e sua função social;
  • celeridade, contraditório e ampla defesa.

A nova lei trouxe um princípio interessante: empreendedorismo (art. 75, III). Esse princípio (fresh start, copiado do Direito norte-americano, objetiva tirar do falido a pecha de “empresário que não deu certo”, “caloteiro” e tantos outros rótulos que o estigmatizavam na lei anterior. Quer-se dar ao falido uma nova chance: a de se afastar de suas atividades com a decretação da falência e a de retornar de forma mais célere ao mercado, em especial por meio de dois mecanismos que permitem a extinção de suas obrigações e viabilizam sua completa reabilitação:

  • redução do percentual de 50% para 25% para pagamento dos créditos quirografários (art. 158, II) após realizado o ativo; e
  • encurtamento do prazo prescricional de cinco anos para três anos, nas hipóteses de extinção das suas obrigações.

O empreendedorismo muda o conceito de falência, que se contentava com a satisfação dos credores. Abandona-se o caráter punitivo da falência para dar-se uma nova chance ao devedor malsucedido.

A imposição de um “desconto” de quase 74% nos créditos dos credores quirografários – que são maioria na falência – pode incentivar pedidos fraudulentos de falência, pois não há controle nem planejamento judicial do efetivo retorno do falido ao exercício de atividade empresarial.

Preocupa-me a insegurança que esse princípio possa gerar nos credores e na sociedade em geral, mas isso é trabalho para a doutrina e jurisprudência.

Novas atribuições do administrador judicial

As funções do administrador judicial foram alteradas pela Lei n° 14.112/2020.  Cabe agora ao administrador judicial:

  • estimular, sempre que possível, a conciliação, a mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos relacionados à recuperação judicial e à falência, respeitados os direitos de terceiros, na forma do §3º do art. 3º do Código de Processo Civil;
  • manter endereço eletrônico na Internet com informações atualizadas sobre os processos de falência e recuperação judicial, com a opção de consulta às peças principais do processo, salvo decisão judicial em sentido contrário;
  • manter endereço eletrônico específico para o recebimento de pedidos de habilitação ou a apresentação de divergências, ambos em âmbito administrativo, com modelos que poderão ser utilizados pelos credores, salvo decisão judicial em sentido contrário;
  • providenciar, no prazo máximo de quinze dias, as respostas aos ofícios e às solicitações enviadas por outros juízos e órgãos públicos, sem necessidade de prévia deliberação do juízo.

Ao enxugar os prazos do administrador o legislador prestigiou o “princípio da celeridade”, que deve ser aplicado de forma casuística porque o prazo de quinze dias terá de ser flexibilizado em algumas hipóteses.

apresentar ao juiz, para juntada aos autos, relatório mensal das atividades do devedor, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas;

fiscalizar o decurso das tratativas e a regularidade das negociações entre devedor e credores;

Segundo penso, o grande obstáculo dessa nova atribuição está no fato de que o administrador não participa diretamente desses processos.

  • assegurar que devedor e credores não adotem expedientes dilatórios, inúteis ou prejudiciais ao regular andamento das negociações;

Essa tarefa tem de ser exercida com cuidado porque os expedientes dilatórios ou inúteis têm de ser manifestamente inequívocos, sob pena de prejuízo dos acordos.

  • assegurar que as negociações realizadas entre devedor e credores sejam regidas pelos termos convencionados entre os interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial e homologadas pelo juiz, observado o princípio da boa-fé para solução construtiva de consensos que acarretem maior efetividade econômico-financeira e proveito social para os agentes econômicos envolvidos;
  • apresentar, para juntada aos autos, e publicar no endereço eletrônico específico, relatório mensal das atividades do devedor e relatório sobre o plano de recuperação judicial no prazo de até quinze dias contado da apresentação do plano, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor, além de informar eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64;
  • relacionar os processos e assumir a representação judicial e extrajudicial da massa falida, incluídos os processos arbitrais;
  • vender os bens da massa falida no prazo máximo de 180 dias contado da data da juntada do auto de arrecadação, sob pena de destituição, salvo por impossibilidade fundamentada reconhecida por decisão judicial;

Ainda aqui, a inovação tem por base o “princípio da celeridade”, mas deve ser aplicada de forma casuística porque o prazo de 180 dias precisará ser flexibilizado em algumas hipóteses, inclusive em razão da dificuldade de avaliação de determinados bens intangíveis.

  • arrecadar os valores dos depósitos realizados em processos administrativos ou judiciais nos quais o falido figure como parte, oriundos de penhoras, bloqueios, apreensões, leilões, alienação judicial e de outras hipóteses de constrição judicial, ressalvado o disposto nas leis n° 9.703/1998, nº 12.099/2009 e Lei Complementar nº 151/2015.

Termo de adesão

O “termo de adesão” visa à substituição da assembleia de credores por termo em que os credores representem mais da metade do valor dos créditos sujeitos à recuperação judicial, observados os requisitos legais, se requerido cinco dias antes da realização da assembleia. Medida necessária e bem-vinda, pois proporciona celeridade e economia.

Saliento apenas dois pontos:

  1.  aplicação do termo de adesão no cram down (art. 58, §1º);
  2.  declaração efetiva de nulidade do voto abusivo de acordo com a definição legal: “voto será exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem”.

Stay period

Como regra, a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial acarretam a suspensão das ações e execuções contra o devedor. Na recuperação judicial, as ações e execuções ficam suspensas por 180 dias contados do deferimento do seu processamento, prorrogável uma única vez, por igual período, em caráter excepcional, desde que o devedor não tenha concorrido para a extrapolação do prazo, não se admitindo qualquer ato de constrição do patrimônio do devedor.

Uma das alterações trazidas no §12 do art. 6º da nova lei foi permitir a antecipação total ou parcial dos efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial, ou seja, a lei permite, expressamente, a concessão de tutela provisória para antecipação do stay period, verdadeira blindagem do empresário em crise econômica e financeira, antes mesmo do deferimento do próprio processamento da recuperação judicial. Para a antecipação desses efeitos o devedor poderá se valer do pedido de tutela de urgência previsto no art. 300 do Código de Processo Civil.