Edição

Prorrogação de concessões por interesse público

31 de julho de 2006

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AGRAVO DE INSTRUMENTO
Nº 2004.002.08804

Agravante: Auto Lotação INGÁ LTDA

Agravado: DETRO – Departamento de Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro

RELATOR: Des. Marco Antonio Ibrahim

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 2004.002.088404 em que é Agravante: Auto Lotação Ingá Ltda. E Agravados: Detro – Departamento de Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro e Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, acordam, por unanimidade os Desembargadores da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.

 

Relatório

Trata-se de Agravo de Instrumento oposto contra decisão do r. Juízo da 5ª Vara de Fazenda Pública, que, em Ação Civil Pública, deferiu, medida antecipatória de tutela determinando que em 180 dias fosse iniciado processo licitatório referentemente às linhas intermunicipais exploradas pela parte agravante.

Em síntese, alega a recorrente que o contrato de concessão que envolve a transportadora teve seu prazo prorrogado pela Lei Estadual 2.831/97, o que, por si só, revela a boa fé da concessionária. Por outro lado, sustenta que não há trânsito em julgado do acórdão do colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, liminarmente, cassou os efeitos da parte final do art. 6º da Lei Estadual 2.831/97, cuja decisão operou efeitos, meramente, ex nunc. Diz, ainda, que a lei em comento goza de presunção de constitucionalidade, sendo incabível antecipação de tutela por inexistir periculum in mora e, além de tudo, haver risco de irreversibilidade da medida.

Houve pedido de concessão de efeito suspensivo ao recurso, deferido por decisão do Relator, a qual foi alvo de Agravo Regimental desprovido pela unanimidade desta colenda Terceira Câmara Cível.

A parte agravada apresentou resposta, salientando que o dispositivo legal com base no qual foram prorrogadas as concessões de linhas intermunicipais teve sua inconstitucionalidade declarada por liminar em Representação de Inconstitucionalidade nº 137/2002 do colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Alega que a eficiência no serviço público se verifica, também, pela opção de competitividade, que só pode ser atendida com observância do princípio constitucional da licitação, sendo certo que o art. 175 da Constituição Federal está regulamentado pelas Leis Federais 8987/95 e 9074/95, aplicáveis à espécie.

Entende a parte agravada, que a parte final do art. 6º da Lei Estadual 2831/97 ofende o princípio da moralidade ao autorizar a prorrogação por 15 anos às permissões que estavam vigendo por ocasião da promulgação da referida lei, isto é, deixando de submeter a concessionária ao processo licitatório e constitucional, o que implica em afronta ao princípio da impessoalidade e da moralidade previstos no art. 37 da Carta Constitucional.

Por fim, sustenta que o princípio da segurança jurídica não há de servir para engessar a Administração e que estão presentes os pressupostos para manutenção da decisão de 1º grau.

VOTO

Em que pese ter sido, a decisão agravada, prolatada por uma das mais brilhantes Magistradas do Estado do Rio de Janeiro, Dra. Márcia Capanema de Souza, o recurso está a merecer provimento.

Conforme já exposto na decisão que concedeu efeito suspensivo ao recurso, há, como se sabe, especiais condições que legitimam a concessão de tutela antecipada sem as quais a providência torna-se dissonante do sistema processual em vigor. A liminar deferida pela exemplar Juíza se ressente, data vênia, dos requisitos aludidos no art. 273 do Código de Processo Civil. Desde logo se percebe que a tutela antecipadamente concedida é de todo modo irreversível, porque, a vingar o conteúdo de tal decisão, promover-se-á licitação de mais de mil linhas de transporte intermunicipal (considerada a totalidade dos processos que envolvem as dezenas de empresas de ônibus que operam estas linhas), o que fatalmente desaguará na concessão de tais linhas intermunicipais a outras empresas que deverão fazer vultuosos investimentos para poder operar os respectivos transportes coletivos.

Assim, no caso de eventual decaimento da pretensão autoral do Ministério público, o retorno ao status quo ante será impossível ou, pelo menos, de dificílima concretização. Quem indenizará a vencedora da licitação pelos investimentos que fez? Como calcular seus expressivos lucros cessantes e a perda da expectativa de emprego fixo de seus empregados? O mesmo se diga em relação à agravante, que experimentaria enorme prejuízo, bem assim, seus empregados, que seriam demitidos aos milhares.

Com isso não se quer dizer que a irreversibilidade sempre e sempre há de obstaculizar o deferimento de tutela antecipada ou mesmo de cautelares, dês que isso, em regra, só deve ocorrer quando não estão em jogo interesses de expressiva magnitude, tais como direito à vida ou à liberdade. Nestes casos, se mostra necessário ponderar os respectivos direitos em conflito, o que se deve fazer através de um critério de proporcionalidade por via do qual o juiz deve sacrificar um interesse relativo a direito que pareça improvável. Cabe como luva, aliás, a observação feita pelo afamado jusprocessualista Ferrucio Tommaseo, muito ilustre Professor da Universidade de Trieste, no histórico Colóquio Internacional sobre as Medidas Cautelares em Processo Civil – Milão, 1984:

Se non vi è altro modo per evitare um pregiudizio irreparabile a um diritto soggetivo che appaia probabile, si deve ammettere che il giudice possa provocare um pregiudizio anche irreparabile al diritto che gli paia improbabile. 

Mas quando aqui se diz direito improvável, está-se a afirmar que não há – como pretende o Ministério Público – verossimilhança do direito alegado na inicial, porque os contratos administrativos, tornados írritos pela decisão agravada, foram firmados de boa fé e com base em lei plenamente vigente no ato de suas respectivas efetivações. Por outro lado, parece evidente o risco de dano inverso, porque, ocorrendo a licitação e adjudicado seu objeto, milhares de trabalhadores e suas famílias serão diretamente atingidos, sem falar que licitações deste porte não podem ser feitas no exíguo prazo alvitrado na decisão interlocutória.

Nem parece disfarçável o risco que toda a população corre de ficar de um dia para o outro sem acesso a transporte coletivo, bastante para isso que algum problema de ordem jurídica, política ou administrativa emperre eventual adjudicação do objeto da licitação. São tais situações que a lei quis, propositadamente, evitar. A propósito, a doutrina de J.J. Calmon de Passos, que, em seus comentários ao Código de Processo Civil, precisa o sentido que se deve dar a danos de difícil reparação, em lapidar ensinamento:

“A dificuldade e incerteza da reparação pedem, também alguns esclarecimentos. Elas podem dizer respeito ao tempo, aos meios ou aos agentes. É difícil e incerta a reparação que reclama posterior e demorado processo; a que exige meios custosos ou de manipulação anormalmente trabalhosa; também difícil e incerta a que exige o envolvimento de pessoas especialmente qualificadas cujo recrutamento seja problemático ou demasiadamente oneroso. O critério mais adequado, a nos ver, para se aferir a dificuldade e incerteza da reparação é considerar a possibilidade de ressarcimento dos danos do próprio processo a curto prazo ou com meios expeditos. Se isso ocorrer é válido entender-se a lesão como de difícil ou incerta reparação”. (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. X, tomo I, p. 98, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978).

Nesse passo, cabe destacar que uma atenta leitura da inicial da ação proposta pelo Ministério Público (que se houve, aliás, dentro da grandeza dessa essencial instituição da qual me orgulho de um dia ter pertencido) demonstra que não há, na verdade, risco, sequer mediato, para o erário público, o que, de certa forma, motivou outras decisões deste e. Tribunal, como aquela prolatada pelo Professor e Desembargador Sérgio Cavalieri Filho (Agravo de Instrumento nº 4190/2004), que deferiu efeito suspensivo em caso idêntico ao dos autos.

Tem-se admitido antecipação de tutela contra a administração pública, mas em casos especialíssimos, como no caso de fornecimento de medicamentos para pessoa que sofra de doença grave; para obstaculizar medidas lesivas ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, histórico e artístico ou ao erário público. E aqui não se trata de nenhuma destas hipóteses.

Tais evidências, por si só, já seriam suficientes para a desconstituição provisória da liminar deferida pelo Juízo a quo, mas há outros motivos que a revelam, de todo, inconveniente – mesmo do ponto de vista do interesse público.

Se é verdade que a Lei Estadual nº 2831/97 teve seus efeitos parcialmente suspensos por liminar concedida pelo colendo Órgão Especial Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, não menos verdade é que esta decisão não opera efeitos retroativos, vindo atingir atos jurídicos perfeitos e situações há muito consolidadas.  Decerto que, em caso de decisão passada em julgado declarando a inconstitucionalidade da referida lei, os contratos administrativos que sob sua égide foram firmados poderão ser anulados, mas esta é uma circunstância que apesar de possível, não se apresenta concreta na atualidade.

A mais moderna doutrina constitucional brasileira, na esteira do que vem ocorrendo em diversos países europeus, tem revelado adesão às normas e princípios que vêm mitigar os efeitos da nulidade das leis inconstitucionais e isto tem sido feito levando em consideração valores constitucionalmente relevantes e, especialmente, o princípio da segurança jurídica.

Entre nós já não é mais novidade que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei possa ser decretada com efeitos prospectivos, ex nunc, havendo diversos precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal neste sentido. Aliás, a própria Lei Federal nº 9868/99 prevê que

Art. 27 – ao declarar a inconstitucionalidade de lei do ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tem eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Compreende-se o cuidado do legislador na edição da referida norma porque só assim se podem proteger relações jurídicas há muito constituídas, bem assim albergar aqueles que de boa fé contraíram obrigações e adquiriram direitos com base na legislação, então, vigente. A regra, bem de ver, traz à baila um dos mais importantes princípios da hermenêutica constitucional, qual seja, o da ponderação de interesses a reconhecer que existem princípios de igual relevância (vis a vis o principio da moralidade) que só poderiam ser preservados mediante a atribuição de eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade.

Este próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem produzido diversos julgados sobre esta questão constitucional com acolhimento – quanto à matéria relativa a IPTU – da tese que defende a eficácia da prospectiva da declaração de inconstitucionalidade do art. 67 do Código Tributário do Rio de Janeiro com a redação dada pela Lei Municipal 2080/93

Insta observar, outrossim, que há, ainda, um outro argumento invencível em prol da tese sustentada pela agravante. Trata-se da evidência de que, ainda que houvesse trânsito em julgado da decisão declaratória de inconstitucionalidade da Lei Estadual 2831/97, sua exclusão do mundo jurídico implicaria em repristinação da legislação anterior, sendo certo que o Decreto Lei nº 276/75 concedera permissão para exploração de linhas intermunicipais à agravante por prazo indeterminado.

Vale observar, ademais que são corriqueiros os atos que autorizam a prorrogação de concessões, à mingua de licitação. A União Federal o faz de forma sistemática estando tais prorrogações condicionadas a um único motivo: o interesse público. Nem se descure de relembrar que os Estados têm competência suplementar para legislar sobre esta específica matéria, transportes, a teor do § 2º do art. 24 e 25 da Constituição Federal, motivo pelo qual parecem inaplicáveis os art. 42 e 43 da Lei 8987/95.

A possibilidade da ocorrência de vultosos prejuízos para as empresas que atualmente operam as linhas, como, também, para aquelas que vençam eventual licitação, não são hipotéticos, mas reais. Quem há de negar que a desconstituição de prorrogação das permissões importaria em grave prejuízo para a empresa de transporte que, de boa fé, e escudada por lei estadual, efetuou investimentos dada a expectativa da prorrogação da permissão longi temporis?

Igualmente enormes seriam os prejuízos da empresa que vencesse a licitação porque para iniciar suas operações, obrigatoriamente teria que fazer grandes investimentos, que poderiam se perder em caso de insucesso do Ministério Público quando do desfecho da respectiva Ação Civil Pública.

Outrossim, não é tão evidente (como parece ao MP) a inconstitucionalidade do dispositivo da lei estadual que autorizou a prorrogação. Em primeiro lugar, a questão da moralidade pertine, efetivamente, ao mérito da causa. Por outro lado, prorrogações idênticas são constantemente autorizadas pelo poder público, muitas das quais por mero Decreto. Assim, a concessão outorgada à VARIG, por exemplo, vem sendo prorrogada por 15 anos por força do Decreto 95.910 de 11/04/88. Já o Decreto nº 4856 de 09/10/03 prorrogou a concessão da VARIG até 31/10/2010.

Na mesma toada, a ANATEL prorrogou por 20 anos os contratos de seis concessionárias de telefonia fixa (EMBRATEL, TELEFONICA, BRASIL TELECOM, TELEMAR, SERCONTEL e CBTC TELECOM) e o fez por antecipação, já que os respectivos contratos estavam em vigor até 30/12/2005. No mais, a Medida Provisória nº 144 de 10/12/03, já convertida em lei, deu nova redação ao art. 4º da Lei nº 9074, autorizando prorrogação de 20 anos para as concessionárias de energia elétrica.

 

LEI Nº 9.074, DE 07 D E JULHO DE 1995

Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências.

Art. 1º Sujeitam-se ao regime de concessão ou, quando couber, de permissão, nos termos da Lei nº 83987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes serviços e obras públicas de competência da União:

I – (VETADO)

II – (VETADO)

III – (VETADO)

IV –  vias federais, precedidas ou não da execução de obra pública;

V – exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções, eclusas, diques e irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas;

VI – estações aduaneiras e outros terminais alfandegados de uso público, não instalados em área de porto ou aeroporto, precedidos ou não de obras públicas.

VII –os serviços postais. (Incluído pela Lei nº 9.648, de 1998)

§ 1º Os atuais contratos de exploração de serviços postais celebrados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT com as Agências de Correio Franqueadas – ACF, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão à delegação das concessões ou permissões que os substituirão, prazo esse que não poderá ser inferior a de 31 de dezembro de 2001 e não poderá exceder a data limite de 31 de dezembro de 2002. (Renumerado pela Lei nº 10.684, de 2003)

§ 2º O prazo das concessões e permissões de que trata o inciso VI deste artigo será de vinte e cinco anos, podendo ser prorrogado por dez anos. (Incluído pela Lei nº 10.684, de 2003)

§ 3º Ao término do prazo, as atuais concessões e permissões, mencionadas no § 2º, incluídas as anteriores à Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, serão prorrogadas pelo prazo previsto no § 2º. (Incluído pela Lei nº 10.684, de 2003)

….

Art. 4º As concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de aproveitamento energéticos dos cursos da água serão contratadas, prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei nº 8.897, e das demais.

§ 1º As contratações, outorgas e prorrogações de que trata este artigo poderão ser feitas a título oneroso em favor da União.

§ 2º As concessões de geração de energia elétrica anteriores a 11 de dezembro de 2003 terão o prazo necessário à amortização dos investimentos, limitado a 35 (trinta e cinco) anos, contado a data de assinatura do imprescindível contrato, podendo ser prorrogado por até 20 (vinte) anos, a critério do Poder Concedente, observadas as condições estabelecidas nos contratos. (Redação dada pela Lei nº 10.848, de 2004).

Diante do exposto, voto no sentido do provimento do agravo.