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Rastreamento de ativos e combate às fraudes

5 de dezembro de 2023

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O rastreamento e a recuperação de ativos são considerados essenciais para combater crimes financeiros. De acordo com o conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Daniel Carnio Costa, o tema é muito relacionado à atuação do Ministério Público, embora ainda haja pouca participação da instituição. Daí a razão em promover o V Seminário Internacional de Rastreamento de Ativos, realizado em novembro na sede do CNMP, em Brasília (DF)..

Sigilo, ativos digitais, mediação e o combate às fraudes financeiras e fiscais foram alguns dos temas discutidos no seminário por autoridades e especialistas, nacionais e internacionais, incluindo ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O evento foi promovido pela Unidade Nacional de Capacitação do Ministério Público, vinculada ao CNMP, e pelo Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos (Ibra).

Na abertura do seminário, o Ministro do STJ Moura Ribeiro relembrou os princípios da ordem econômica e social, previstos no art. 170 da Constituição Federal. Para o magistrado, o tema da recuperação de ativos perpassa pelo capital. “O capital que queremos, e o Superior Tribunal de Justiça vem trabalhando para isso, é um capital que tenha perfume e alma. Não precisamos, de jeito algum, que haja desvio de finalidade do nosso capital. E o Brasil tem longo caminho a ser percorrido com base nisso”, afirmou.

Importância do sigilo – Vice-presidente do Ibra, André Rocha começou sua fala relembrando aspectos conceituais relacionados ao termo asset tracing: “Originado nos países de common law, traduzido como rastreamento de ativos, diz respeito a um conjunto de técnicas e ferramentas jurídicas e de investigação para traçar o mapa de relacionamentos do personagem ou do fraudador, o patrimônio a ele vinculado e a cadeia de transferências de ativos até a sua última camada de blindagem. A ideia é identificar o ultimate beneficial ownership (UBO), que é quem detém a propriedade e o controle sobre aqueles ativos”.

Os ativos, explicou Rocha, possuem natureza conversível e transferível, o que significa que podem ser convertidos em outros ativos e transferidos para outras pessoas físicas ou jurídicas. Devido ao risco do fraudador sumir com o ativo se tiver que ser ouvido antes das investigações serem procedidas, o especialista defendeu o sigilo como um elemento essencial para a efetividade do processo de rastreamento.

“O sigilo é fundamental no sentido de reconstruir o cenário fraudulento e provar as hipóteses de fraude detectadas. O segundo objetivo é identificar os ativos que pertencem àquele fraudador, embora possam estar em nome de terceiros e não possuir vínculo formal, e recompor o patrimônio daquela empresa”, afirmou.

Interesse público – A avaliação do Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Nilton Belli Filho é de que o sigilo atende ao interesse público e ajuda a preservar a coleta de informações. “A questão do sigilo atende ao imperativo de ordem pública que se faz presente nesse tipo de investigação para o fiel cumprimento do objetivo do processo de insolvência e, sobretudo, para a consecução dos objetivos previstos no art. 170 da Constituição”, declarou.

Para além da supremacia do interesse público sobre o particular, o advogado Lucas Batistuzo Gurgel entende que o sigilo ex parte seria como “uma paridade de armas entre as partes envolvidas no processo”.

Precedente recente – Ambos destacaram um precedente de relatoria do Ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino. No RMS 46.628 foi garantido à massa falida o direito de defesa e de contestação de medidas. Fernanda Mathias, assessora de Ministro no STJ, foi quem relembrou o contexto do precedente de 2015, conhecido como “caso do Banco Santos”, destacando a forma de atuação brasileira.

“O direito de fiscalizar a falência deve ser ponderado com dever legal de eficiência do administrador na identificação dos bens a serem arrecadados pela massa falida. No Brasil, não se visa apenas os credores, como normalmente os americanos o fazem, mas todo o contexto social, econômico, financeiro, que envolve também a circulação de capital, empregos, etc.”, explicou Mathias.

Os advogados Stephen Baker, com atuação nas Ilhas Jersey, e Marthin Kenney, com atuação nas Ilhas Virgens Britânicas, contaram exemplos da experiência internacional relativas a processos contra fraudadores, busca de ativos em paraísos fiscais e como recuperá-los.

Resolução de conflitos – Outro painel foi dedicado às soluções amigáveis na falência, mediado pelo Ministro do STJ Sebastião Reis Jr., que criticou o volume de processos no Judiciário. O magistrado destacou a necessidade de achar soluções fora do contencioso para todos os setores.

Diante desse cenário, o presidente da câmara de mediação e arbitragem MedArb RB, Elias Mubarak Junior, defendeu os métodos adequados de resolução de conflitos e fez um alerta para o que chamou de “uso desvirtuado da mediação”. Segundo ele, alguns advogados têm entrado nas câmaras para conseguir iniciar mediações, mas não seguem com a ideia. “Eles pegam a carta convite, vão no Judiciário, conseguem a antecipação do stay, depois não dão andamento na mediação”, lamentou. 

Persistência – Entusiasta do instituto, o Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Moacyr Lobato relembrou da recuperação judicial da mineradora Samarco, da qual foi relator de um dos recursos. A empresa já havia tentado uma mediação no exterior e uma conciliação com o juízo de primeiro grau, ambas frustradas. Diante de impasses, o magistrado chamou a responsabilidade para o seu gabinete e passou a trabalhar numa conciliação com a presença dos advogados, dos assessores financeiros e dos administradores judiciais. “A primeira tentativa de mediação não foi exitosa, mas com certeza deixou sementes para que, numa segunda investida, também não exitosa, criássemos um ambiente favorável”, contou. A experiência de construção coletiva, segundo ele, lhe rendeu alegria e orgulho.

Ativos digitais e a evolução do rastreamento – O painel foi mediado pelo Ministro do STJ Villas Bôas Cueva, para quem o Brasil passa por uma evolução institucional quando se trata de ativos digitais. O ministro destacou como positiva a aprovação de decreto regulamentador e a definição do Banco Central como autoridade competente. Ponderou, no entanto, que “faltam condições materiais para implementação dessa regulação futura” e clareza sobre qual será o papel da Comissão de Valores Mobiliários nesse quadro.

No âmbito internacional, o ministro destacou a recente condenação do fundador da FTX, plataforma de exchange de criptomoedas, por fraudes e conspiração. Cueva disse que a medida “poderá apontar caminhos para uma fiscalização maior desses esquemas de pirâmide, que têm se revelado tão habituais no mundo dos criptoativos”. Ele apontou a necessidade de ferramentas mais adequadas para coibir essa prática e para fazer com que autoridades possam prevenir a repetição “desses tristes esquemas que têm se revelado muito mais frequentes do que gostaríamos”.

Regulamentação – O advogados Rodrigo Salomão e Audrey de Freitas Lucio destacaram a importância da Lei nº 14.478/2022, que estabelece diretrizes para a regulamentação do mercado de ativos virtuais e introduz dispositivos penais para prevenir o crime de fraudes praticadas por meio de criptoativos.

Salomão recuperou algumas preocupações expostas no mesmo seminário, realizado no ano passado, sendo uma delas a de que o STJ substituísse o legislador ao ter que analisar os casos que aportam à Corte. Para ele, houve avanço na questão, o que tende a diminuir essa preocupação, mas ainda há alguns pontos pendentes de regulamentação detalhada pelo Banco Central, como no caso da individualização da origem dos recursos quando estão em um fundo coletivo, por exemplo.

“A regulamentação da Lei com a conceituação das exchanges, dos criptoativos e da necessidade de autorização já ajuda bastante a esse tipo de identificação e à efetivação das penhoras, mas é ainda mais necessário a criação dessa autoridade central para unificar as informações do sistema financeiro”, afirmou, citando como exemplo o Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário (Sisbajud).

Exemplo prático – O advogado Cristopher Pease, que atua nas Ilhas Virgens Britânicas, abordou a dificuldade de mapear a cadeia de transações e destacou a importância do acesso às informações narrando um caso fictício. A vítima teria investido todas as economias em criptomoedas, mas teve essas moedas roubadas por meio de uma invasão a seus computadores. “Esses ativos são divididos em grupos menores e mandados para diferentes exchanges em várias partes do mundo. Mesmo se esse proprietário estivesse aqui, no Brasil, agora os ativos estão em várias partes do mundo e não se sabe quem são os hackers e a trajetória que foi feita por esses ativos”, narrou.

De acordo com o advogado, é comum que essas exchanges estejam em uma jurisdição de common law, em locais como as Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Cayman, Singapura ou Hong Kong. “Nesse cenário, a vítima poderia entrar em contato com seus advogados em sua própria jurisdição para dar início ao processo de recuperação”, afirmou.

Gestão e conduta – “Uma organização que não faz as entregas adequadas, peca em sua governança. Não adianta um bom compliance se a organização não consegue entregar aquilo que propõe”, afirmou o auditor da Controladoria Geral da União (CGU) e diretor de fiscalização na Câmara dos Deputados Renato Capanema, que falou no último painel do seminário sobre as “estratégias de governança no combate à fraude”.

O auditor tratou da evolução legislativa caminhando no sentido da criação de um sistema de governança envolvendo a Administração Pública. Neste sentido, destacou a nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), que vai em direção à confiança, eficiência e integridade dessas relações.

Mediador do painel, o Ministro Raul Araújo, integrante da Segunda Seção do STJ, que julga questões de Direito Privado, afirmou que é necessário que “os países abram mão de suas fronteiras para possibilitar a ampla investigação das organizações criminosas que atuam no plano para além do meramente nacional”. Para o magistrado, “tem que haver uma cooperação firme entre os países no sentido de se tornarem permeáveis os meios para a obtenção de informações e para a realização de investigações”.

O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Mario Sarrubbo, também defendeu que seja feito um trabalho “interagências”, unindo instituições como o Ministério Público, a Polícia e o Poder Judiciário para “construir uma rede de relacionamentos que permita ter informações de forma célere”. Sarrubbo é entusiasta de convênios e parcerias para instruir processos e procedimentos de modo a “coibir as organizações criminosas que têm trabalhado no Brasil e no mundo, já sem nenhum tipo de fronteiras”.

Presenças – Participaram do painel sobre soluções amigáveis, ainda, os advogados Paula Mitie Minohara, Frederico Rezende, Andrew Bodnar e Bernardo Bicalho. Antenor Madruga falou no painel sobre ativos digitais. O inspetor Marcos Vinicius de Carvalho, que atua no Núcleo de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo da CVM, explicou o funcionamento do órgão no último painel. Também participaram o Procurador de Justiça no Ministério Público de São Paulo Eronides Santos, o representante da Advocacia-Geral da União Lucio Angelo Jr., e o auditor do Tribunal de Contas da União Thiago Brito.

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Ministro Sanseverino e o legado pela gestão de precedentes  

O seminário também dedicou um momento para homenagear o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, falecido em abril deste ano. O “Paulinho”, como era carinhosamente chamado pelo Ministro Marco Buzzi, integrou a Segunda Seção e a Terceira Turma do STJ, especializadas em matéria de Direito Privado. 

O legado do ministro vai além da cultura jurídica, segundo Buzzi: “Para mim, o ‘Paulinho’ continua sendo um referencial. É uma referência muito maior nas relações próximas, no exemplo de dignidade, no cotidiano, no dia a dia, na conduta, além de ser exemplo para todos nós também na produção científica e jurídica”.

Sanseverino preocupava-se com a organização dos repetitivos e o respeito aos precedentes, estando à frente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ. “Ele era tido como juiz dos precedentes, o homem dos precedentes, entendia o papel constitucional do Superior Tribunal de Justiça”, afirmou o advogado Marcus Vinicius Vita Ferreira.

O advogado Gustavo Sanseverino, filho do ministro do STJ, compareceu ao evento e foi cumprimentado pelos presentes. “O ministro teve uma carreira na qual fez um trabalho sério e compromissado com a Justiça”, declarou o presidente do Ibra, Krikor Kaysserlian.