Robôs, perfis falsos e propaganda eleitoral suja

27 de agosto de 2021

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A democracia digital e os novos desafios para a jurisdição eleitoral

Um dos maiores desafios do Direito Eleitoral é o enfrentamento da propaganda digital suja, típica do baixo nível do debate eleitoral visto nos últimos anos. A velocidade e criatividade que caracterizam as plataformas de conteúdo de Internet propiciam o ambiente favorável para estratégias (veladas ou expressas) de ataques de milícias propagandísticas digitais (organizadas ou difusas), contaminando negativamente o embate em busca do voto e manipulando, sobremodo, o campo de visão do eleitor sobre esse ou aquele candidato.

As milícias digitais continuaram a atuar, não de forma nacionalmente organizada, mas de forma difusa, muitas delas constituídas por células coordenadas e patrocinadas pelos setores de marketing e comunicação digital das campanhas majoritárias e proporcionais.

Para se alcançarem resultados exitosos com a propaganda eleitoral suja e ampliar artificialmente a exposição do conteúdo (positivo ou negativo) digital dos candidatos, alguns estrategistas digitais admitem o uso, por intermédio de fornecedores ou terceirizados, de perfis falsos e robotizados (socialbots) – contribuindo-se, ainda mais, para a indevida automatização do debate público.

Bots podem ser considerados perfis automatizados, escondidos por detrás do anonimato, algo vedado pela Constituição Federal de 1988 (Art. 5°, inciso IV). Sabe-se que a proibição constitucional ao anonimato, dentro da perspectiva do mundo eleitoral digital, reside na garantia da identificação do titular daquele perfil e das respectivas informações e mensagens, a fim de lhe atribuir eventuais responsabilidades.

A selvageria do binômio “bots + algoritmos” destrói a reputação dos competidores eleitorais em questão de horas; e, na maioria das situações, a única saída para reparação – mesmo que tardia – é a judicialização.

Em matéria legislativa, sempre é muito difícil se manter atualizado diante dos novos desafios impostos pela tecnologia da informação e comunicação. Então, torna-se importante construir, pelo menos, um ambiente jurisdicional mais favorável para o enfrentamento do uso indevido dos bots na propaganda eleitoral suja. 

Hodiernamente, a legislação eleitoral proíbe a veiculação de “conteúdos de cunho eleitoral” por meio do cadastro de perfis falsos ou apócrifos, ou seja, contas virtuais sem correlação com qualquer pessoa natural ou jurídica, que venham a falsear identidades (art. 57-B, § 2º, da Lei nº 9.504/1997). A Lei Eleitoral (art. 57-B, § 3º, Lei nº 9.504/1997) proíbe também a utilização de técnicas virtuais para ampliar artificiosamente a repercussão ou a visualização de determinado conteúdo eleitoral. 

Mas é preciso avançar.

O primeiro desafio é como melhorar a identificação dos bots. É fundamental que a jurisdição eleitoral admita o controle externo de softwares de detecção de robôs (perfis falsos). Ferramentas populares para a identificação de robôs no Twitter, como são os casos do Botometer e Central Pega Bot (este, parceria do Ministério Público Federal com o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro – ITS Rio), precisam ser incorporadas ao cotidiano jurisdicional das ações eleitorais.

O segundo desafio consiste em saber o que fazer judicialmente quando detectados os perfis falsos em plena atuação em uma campanha eleitoral. Há duas saídas: (i) utilização das representações eleitorais por propaganda irregular (previstas no art. 96 da Lei nº 9.504/1997); ou (ii) o ajuizamento de uma ação de investigação judicial eleitoral (art. 22 e seguintes da Lei Complementar nº 64/1990).

Não há dúvidas de que a tentativa de remoção de conteúdo é a alternativa mais utilizada quando se está diante de mensagens caluniosas, difamatórias ou notícias sabidamente inverídicas, inclusive endereçando as representações contra as empresas gestoras de plataformas de redes sociais, quando ainda desconhecida a autoria da propaganda (art. 17, §1°, da Resolução TSE 23.608/2019), destacando-se ser obrigação do promovente da referida representação formular pedido liminar de diligências para a identificação do autor da propaganda irregular, exigindo-se o fornecimento dos dados indispensáveis para sua obtenção, sob pena de ser indeferida a petição inicial.

Porém, é muito comum que as empresas de plataformas de aplicação de Internet invoquem o Marco Civil da Internet e, assim, se neguem a fornecer dados mais sensíveis dos usuários que poderiam identificar, de forma mais acurada, o titular dos perfis questionados. Assim, limitam-se a informar o e-mail vinculado e o IP (Internet Protocol).

Ocorre que, embora cada aparelho ou dispositivo possua um IP fixo, a conexão com a Internet pode gerar IPs dinâmicos, também conhecidos como IPs externos. Ademais, há muitas outras formas de dificultar a identificação do usuário pelo IP, quando se usam roteadores ou acesso por redes públicas, a criptografia ou instrumentos de navegação sigilosa, além de outros mecanismos como o sistema VPN (Virtual Private Network), do serviço intermediário do Proxy e do navegador Top Browser. 

Portanto, só depois que as plataformas apresentam os IPs (verdadeiros ou falsos) é que a parte promovente da representação eleitoral deverá formular outro pedido, agora endereçado aos provedores de Internet (art. 10 da Lei nº 12.965/2014). Tudo isso para se tentar desvendar, ainda na fase inaugural da representação (a relação processual foi sequer consolidada), os dados cadastrais, pessoais ou outras informações disponíveis que possam contribuir para a identificação daquele usuário que está por detrás do robô ou perfil falso (art. 39, da Resolução TSE 23.610/2019).

Ou seja, missão quase impossível o combate dos perfis falsos e congêneres, dentro do curso do período eleitoral brasileiro – em torno de 60 dias.

Além dessa dificuldade operacional, ainda não há previsão legal expressa que autorize suspensão (durante o período eleitoral) ou exclusão de contas ou perfis anônimos, falsos, falsos automatizados ou cyborgues, embora não exista nenhum óbice normativo para fazê-lo, desde que fundado em prova robusta das alegações.

Mas, se há prova robusta pré-constituída na representação eleitoral por propaganda irregular, por que não se admitir, pelo menos, a suspensão, durante o período eleitoral, das contas ou perfis anônimos, falsos, falsos automatizados ou cyborgues? Questão fundamental.

Por outro lado, além da irregularidade deste tipo de propaganda suja na Internet, o uso dessas anomalias algorítmicas pode ser configurado como abuso de poder econômico, como gastos ilícitos de campanha eleitoral (art. 30-A, da Lei nº 9.504/1997) ou, principalmente, uma nova face do “uso indevido dos meios de comunicação social”.

A utilização gravosa de contas ou perfis anônimos, falsos, falsos automatizados ou cyborgues pode ser enquadrada como uso indevido dos meios de comunicação social, isso porque: (i) ocorre mediante a utilização ilegal de ferramenta de comunicação social; (ii) propicia a superexposição artificial (positiva, negativa ou suja) de determinada candidatura para o eleitorado, vulnerando a isonomia entre os concorrentes, e (iii) constitui-se numa aplicação das redes sociais que extrapola o seu uso habitual e natural.

Em conclusão, há novos desafios da democracia digital, novas barreiras a serem vencidas pela jurisdição eleitoral na defesa da igualdade de condições da propaganda eleitoral em ambiente virtual.

Notas___________________________

1 “Art. 57-B. § 2º Não é admitida a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral mediante cadastro de usuário de aplicação de internet com a intenção de falsear identidade.”

2 “Art. 57-B. § 3º É vedada a utilização de impulsionamento de conteúdos e ferramentas digitais não disponibilizadas pelo provedor da aplicação de Internet, ainda que gratuitas, para alterar o teor ou a repercussão de propaganda eleitoral, tanto próprios quanto de terceiros.”

3 https://central.pegabot.com.br/

4 https://tecnoblog.net/310200/como-esconder-meu-ip/

5 “Apenas os casos que extrapolem o uso normal das ferramentas virtuais é que podem configurar o uso indevido dos meios de comunicação social, sem prejuízo da apuração de eventual propaganda irregular, que possui limites legais distintos da conduta prevista no art. 22 da Lei Complementar 64/90. Precedentes”. (TSE, AIJE 0601862-21/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 26/11/2019).