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Solicitar é crime – A corrução passiva e seus elementos de consumação

20 de março de 2018

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça / Membro do Conselho Nacional do Ministério Público

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1. Introdução
Muito se fala, nos dias atuais, em crimes contra a administração pública, cujo conceito, nas palavras de Antônio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior, abrange “toda a atividade funcional do Estado e dos demais entes públicos.”1

A corrupção é um dos diversos crimes que atingem o próprio coração da Administração Pública, violando frontalmente diversos princípios constitucionais basilares, tais como a moralidade, a probidade e a eficiência.

Há de se destacar que a corrupção não é um crime típico da sociedade moderna, já que, historicamente, sempre esteve presente na evolução da humanidade.

Veja-se que já na Lei das XII Tábuas havia menção à severa pena capital para o juiz que não apresentasse comportamento probo. Cezar Roberto Bitencourt ao citar Heleno Fragoso, anota que:

cogitava-se da corrupção desde a lei das XII Tábuas, com referência à venalidade de magistrados, não faltando disposições penais severíssimas sobre a matéria, em outros povos da Antiguidade. As XII Tábuas impunham a pena capital ao juiz que recebesse dinheiro ou valores (qui pecuniam acceperit).2

No Brasil, desde as Ordenações Filipinas, que punia os oficiais do Rei que recebessem serviços ou “peitas”3, o legislador cuidou de reprimir, com veemência, a corrupção praticada por juízes que recebessem suborno para proferir decisão em favor de uma das partes.

Aliás, Heleno Fragoso, ao citar Noialle, lembrava que:

a corrupção dos juízes é o mais vil e perigoso dos crimes, pois é possível nos defendermos dos assassinos e dos ladrões, mas não dos juízes corrompidos que nos ferem com a espada da lei e nos degolam em seus gabinetes, tornando-se cúmplices infames da injustiça que lhes cumpre proscrever.4

Vê-se, pois, que de há muito a sociedade brasileira convive com a prática maléfica da corrupção nos ­diversos segmentos da administração federal, estadual e municipal, máxime quando amparada pela impunidade aos corruptos, diante de um sistema impregnado pela burocracia persistente de outros tempos, afastando-se da esperada atuação isenta e eficaz de nossa Justiça, situação que vem se alterando gradativamente, diante do notório fortalecimento das instituições de Estado, como o Poder Judiciário, o Ministério Público e as Polícias Judiciárias.

Esse mal que corrói o Estado, comprometendo a governabilidade e a credibilidade das instituições públicas, prejudica investimentos e o desenvolvimento do País, ameaçando diretamente a sociedade e a Democracia.

Citado por Celso Delmanto, estudo mundial realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cuja convenção foi subscrita pelo Brasil no ano de 2000, já advertia que:

a corrupção, além, de implicar aumento de custos com os desvios de dinheiro público, de minar o caráter competitivo e a busca de inovações tecnológicas de empresas que contratam com o setor público, de correr a confiança nas instituições e na própria Democracia, acarreta efeitos indiretos que muitas vezes não são lembrados, gerando graves consequências no próprio crescimento econômico e no desenvolvimento social de países altamente envolvidos com corrupção, inclusive na redução da pobreza.5

Como espécie do gênero ‘corrupção’, há de se destacar a ‘corrupção passiva’, praticada comumente por agentes do Estado, aliados, ou não, a terceiros.

2. Corrupção passiva
O art. 317, caput, do Código Penal, conceitua a corrução passiva como ato de “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.

Segundo Damásio de Jesus, a corrupção passiva pode ser considerada “uma forma de ‘mercancia’ de atos de ofício que devem ser realizados pelo funcionário.”6

Visa o dispositivo penal impedir que agentes ­públicos percebam vantagem indevida que venha a influenciar na prática de atos de ofício atribuídos à função pública, zelando-se, assim, como enfatizam Alberto Silva Franco e Rui Stoco, pelo correto funcionamento da Administração Pública, “enquanto delegatária do Estado e longa manus dos cidadãos integrantes de uma sociedade organizada.”7

Com efeito, a norma penal incriminadora tem como escopo coibir fatos que impeçam ou perturbem a atividade regular desenvolvida pela Administração Pública em geral, enquanto sujeito passivo do ilícito penal.

O sujeito ativo do crime, como dito alhures, ­somente pode ser o funcionário público, ao contrário da corrupção ativa, que pode ser praticada por qualquer pessoa, ainda que possível eventual coautoria ou ­participação de terceiros.

Importante notar que, mesmo não se encontrando no exercício da função pública ou se encontre tem
­­porariamente afastado, como, por exemplo, ­durante suas férias, o agente, que dela se valer para exigir vantagem indevida, pratica o crime de corrupção passiva.

Nessa linha, a doutrina de Bitencourt, esclarece que:

a corrupção passiva consiste em solicitar, receber, ou aceitar promessa de vantagem indevida, para si ou para outrem, em razão da função pública exercida pelo agente, mesmo fora dela, ou antes de assumi-la, mas, de qualquer, sorte, em razão da mesma. É necessário que qualquer das condutas, solicitar, receber ou aceitar, implícita ou explicita, seja motivada pela função pública que o agente exerce ou exercerá.8

Ou seja, a solicitação da vantagem, quando estiver motivada pela função pública que o agente exerce ou exercerá, é bastante para configurar a relação de causalidade entre ela e o fato imputado.

De outra parte, não existindo função ou não ­havendo relação de causalidade entre ela e o fato, não há se cogitar do crime de corrupção passiva.

Consoante lição do Supremo Tribunal Federal,

para verificar-se o crime de corrupção passiva, não basta que a solicitação, recebimento ou aceitação da promessa de vantagem se faça pelo funcionário público em razão do exercício da função, ainda que for dela ou antes de seu início. Indispensável se torna a existência de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua competência (AP no 307/DF, 2a Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 13/10/95).

3. Elementos de consumação
Conforme a doutrinária, o crime é formal, por isso a consumação ocorre quando o funcionário ­público, lato sensu, pratique o simples ato de solicitar, receber ou aceitar a promessa de vantagem indevida, que pode ser de cunho patrimonial ou não.

Como se infere do magistério jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça,

[o] crime de corrupção passiva, delito formal que se consuma com a prática de um dos verbos nucleares previstos no art. 317 do Código Penal, refere-se ao crime praticado por funcionário público, lato sensu, contra a administração pública e ocorre quando este, no exercício de suas funções ou em razão delas e até mesmo antes de assumi-la, solicita ou recebe vantagens, mesmo que seja por promessas, para praticar, omitir ou retardar determinado ato de ofício (REsp-AgR no 1.519.531/SP, 6a Turma, Rel. Min. Sebastião Reis ­Júnior, DJe 3/8/15).

Segundo a melhor doutrina, essa vantagem pode ser de qualquer natureza: lucro, ganho, privilégio ou benefício ilícito, ou seja, contrário ao direito, ainda que ofensivo apenas aos bons costumes (Guilherme de ­Souza Nucci. Código Penal comentado, op. cit. p 1.440).

Para o glorioso Tribunal de Justiça de São Paulo, como anotou Nucci, não bastam meras ofertas de vantagens impossíveis ou não factíveis, incapazes de gerar no funcionário público uma real cobiça ou um atentado à moralidade administrativa. É preciso que o agente ofereça algo idôneo e verossímil, de acordo com suas condições, bem como harmônico com o seu contexto de vida9. In verbis:

Embora delito unissubsistente e formal, a aperfeiçoar-se com o simples oferecimento ou promessa de vantagem indevida, a corrupção ativa reclama seja essa oferta ou promessa, além de certa, factível em relação ao agente e idônea de molde a agredir a consciência do funcionário (TJ-SP: AP no 314.877-3 3a Câmara, Rel. Des. Gonçalves Nogueira, DJ 19/12/2000).

Note-se que o crime possui as seguintes condutas típicas: (i) solicitar vantagem indevida; (ii) receber referida vantagem; e (iii) aceitar promessa de tal vantagem, anuindo com futuro recebimento. Trata-se, portanto, de crime de múltipla ação, que prevê três modalidades de conduta distintas, bastando a realização de uma delas para que o crime se consume (Damásio de Jesus, Comentários ao Código Penal. Saraiva: 1985, 1o vol. p 214).

Nas modalidades receber e aceitar a promessa de vantagem, a iniciativa é do particular. Exige-se, portanto, o concurso necessário de ao menos duas pessoas, o particular corruptor (extraneus) e o agente público corrompido (intraneus); não obstante este responda pelo crime de corrupção passiva, aquele deve responder pelo crime de corrupção ativa (CP, art. 333).

Como anota Paulo José da Costa Júnior, “das ­modalidades de corrupção passiva previstas em lei, ao menos duas, receber e aceitar, importam e bilateralidade da conduta.”10

Por sua vez, na modalidade solicitar, a corrupção parte do intraneus (servidor público corrupto), realizando-se, portanto, de modo unissubjetivo.

Como já apontado, por se tratar de crime formal, o simples ato de solicitação pelo agente público da vantagem ilícita, para si ou para outrem, é suficiente à consumação do delito, revelando-se a percepção da dita vantagem como mero exaurimento do crime.

Colho o magistério de Cezar Roberto Bitencourt:

A corrupção passiva consiste em solicitar, receber ou aceitar promessa de vantagem indevida, para si ou para outrem, em razão da função pública exercida pelo agente, mesmo que fora dela, ou antes de assumi-la, mas, de qualquer sorte, em razão da mesma. Solicitar, no sentido do texto legal, quer dizer pedir, direta ou indiretamente, para si ou para outrem, o que envolve conduta ativa, um agir, e nessa medida crime formal, de simples atividade, que se consuma com a mera solicitação.11

Pouco importa, ademais, se o ato funcional venha, ou não, a ser praticado. Nesse sentido:

A caracterização do crime de corrupção passiva, portanto, depende do comércio da função pública, a qual é caracterizada com a mera possibilidade de que a vantagem indevida venha a influenciar na prática do ato pelo funcionário público. Conforme ­sintetizado na jurisprudência do STF, “o corruptor deseja influenciar, em seu próprio favor ou em benefício de outrem […], o corrupto ‘vende’ o ato em ­resposta à vantagem indevidamente recebida […] se o ato de ofício ‘vendido’ foi praticado pouco importa […] o crime de corrupção consuma-se com o mero tráfico da coisa pública” (JALIL, Mauricio Schaun, GRECO FILHO, Vicente (coords.). Código Penal ­Comentado: Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Manole, 2016, p. 819). (STJ: APn no 856/DF, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 6/2/18).

Em fim, todas as condutas típicas do crime de corrupção passiva, como visto, acabam por reforçar a ideia de mercancia de atos de ofício que devem ser realizados pelo funcionário público, como nos lembrou o já citado mestre Damásio.12

4. Conclusão
A partir dessa concisa explanação, pode-se concluir que o crime de corrupção passiva é hoje um dos delitos que mais corrói os pilares básicos da Administração Pública, violando frontalmente princípios constitucionais basilares, sem os quais nenhuma ­so­ciedade que se pretenda dizer moderna e civilizada, poderá ser construída.

A mera solicitação, portanto, constitui conduta inadmissível e não mais tolerada.

Do atendimento de mínimos pedidos surgirão a grande cobiça e a gula do insaciável do corrupto.

Esse mal ameaça frontalmente a sobrevivência de uma sociedade justa e moderna, e porque não dizer, a própria Democracia.

Devemos combatê-lo com veemência, impondo aos infratores sanções severas e eficazes, atingindo-lhes, não só a liberdade individual, mas igualmente o patrimônio ilícito que a prática do delito lhes tenha possibilitado amealhar, expurgando da vida pública os agentes de Estado corruptos, para que se tenha, verdadeiramente, uma Administração Pública vocacionada ao servir, comprometida com o bem comum e com a preservação da probidade, da moralidade e da eficiência, como preconizado na Constituição Federal.

 

Notas 


1 Dos Crimes Contra a Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 16-18.
2 Tratado de Direito Penal, 5: parte especial: dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 110.
3 Peita – presentes recebidos como suborno (Houaiss eletrônico. Ed Objetiva: 2009
4 Lições de Direito Penal; Parte Especial. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p 416.
5 Código Penal comentado. 9. ed. São Paulo: Saraiva. 2016, p. 947.
6 Direito Penal, Parte Especial, vol. 4. 13. ed. Saraiva, p. 166.
7 Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo: 2007. p. 1466
8 Código Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva: 2010. p. 1182.
9 Código Penal comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense: 2017, p. 1.440-1.441.
10 Comentários ao Código Penal. Saraiva: 1996. p. 470.
11 Tratado de Direito Penal, op. cit. p. 113.
12 Direito Penal comentado, op. cit. p. 164.

Referências Bibliográficas


PAGLIARIO, Antônio; COSTA JR, Paulo José da. Crimes Contra a Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 5: parte especial: dos crimes contra a administração pública e dos crimes praticados por prefeitos. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
FRAGOSO, Cláudio Heleno. Lições de Direito Penal; Parte Especial. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência. 8. ed. São Paulo, 2007.
JESUS, Damásio Evangelista. Direito Penal, Parte Especial, vol. 4. 13. ed. Saraiva, 2006.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense: 2017.
COSTA JR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal. São Paulo: Saraiva, 1996.