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Superendividamento do consumidor e direito da empresa

7 de novembro de 2023

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Magistrados debatem a nova Lei do Superendividamento e outros mecanismos de proteção ao consumidor endividado

A 126a edição do programa Conversa com o Judiciário, promovido pela Revista Justiça & Cidadania, aprofundou as discussões sobre o superendividamento, tema que tem mobilizado os juristas em todo mundo, como consequência da globalização e da ascensão da sociedade de consumo. Realizado em São Paulo, em setembro, o debate contou com a participação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Ricardo Villas Bôas Cueva, do Desembargador Luís Paulo Aliende Ribeiro, da Primeira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), e da Juíza de Direito Monica Di Stasi, da Terceira Vara Cível Central do TJSP.

Em sua participação, o Ministro Ricardo Cueva avaliou que apesar da evolução da matriz constitucional, legal e jurisprudencial desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que criou um robusto rol de direitos sociais, “andamos a passos de caranguejo para tutelar a questão do superendividamento”, que já vem sendo discutida em outros países há mais tempo. Ele criticou o fato de, na ausência de legislação mais contemporânea, o Direito nacional ter se apegado ao “retrógrado” modelo da insolvência civil, presente no Código de Processo Civil (CPC) de 1973 e mantido na reforma de 2015. “Tivemos em 1990 o Código de Defesa do Consumidor (CDC), na época revolucionário, que trouxe várias contribuições importantes. Tivemos mais do que isso, em 2002, um novo Código Civil com pretensões de moralizar as relações contratuais, criando deveres anexos de conduta, a boa fé objetiva e a função social do contrato, uma novidade tipicamente brasileira, alguns diriam uma ‘jabuticaba perfeita’. Não obstante, não conseguimos ter uma disciplina do superendividamento”, pontuou o Ministro Cueva.

A lacuna teria começado a ser preenchida, lembrou o magistrado, quando em 2015 foi criada no Senado Federal a comissão de reforma do CDC, coordenada pelo Ministro Herman Benjamin, que finalmente propôs um modelo de legislação para a proteção do consumidor superendividado. Baseada no modelo francês, a proposta foi enfim aprovada em 2021, por meio da Lei no 14.481, que procurou tratar do assédio de crédito e do superendividamento como fenômenos sociais coletivos.

Para o ministro, ao lado da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD/ Lei no 13.709/2018) e da Lei de Cadastro Positivo (Lei no 12.414/2011, alterada pela Lei Complementar no 166/2019), a reforma do CDC pela Lei do Superendividamento trouxe importantes avanços para a tutela do consumidor financeiro. Contudo, segundo ele, o Brasil ainda não se adequou aos princípios de tutela do consumidor tal como foram definidos pelo G20 e pela OCDE desde 2012 – e atualizados em dezembro de 2022, quando foram incluídos o princípio da estrutura regulatória e o princípio da supervisão adequada.

“Talvez fosse o caso de se constituir no Brasil um órgão à semelhança ao Consumer Financial Protection Bureau dos Estados Unidos”. (…) “No contexto do G20 e da OCDE, em que prevalece uma visão de mundo liberal, senão libertária, eles admitem que há de haver um órgão regulatório que entre no mérito da qualidade do produto financeiro. Faz sentido vender uma capitalização para um consumidor pobrezinho?”, questionou o Ministro Cueva – membro do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania – para quem é preciso avançar com outros mecanismos que complementem a proteção do consumidor endividado.

Educação financeira – O Desembargador Luís Paulo Aliende Ribeiro, aplaudiu a ênfase dada pela nova lei à educação financeira. “Vamos trabalhar no preventivo, no saudável, para fazer com que as pessoas não cheguem a determinadas situações”, comentou.

Sobre a concessão de crédito consignado para beneficiários de programas sociais ou para idosos, por exemplo, o desembargador opinou que é preciso haver cuidado para não rotular grupos sociais determinados para efeito de condições de crédito. “Fazer algo para melhorar a educação financeira da população é mais importante do que sobretaxar alguns grupos ou tentar limitar a capacidade de atuação de cada um destes grupos”, observou.

Em participação híbrida, na qual manifestou tanto o ponto de vista dos magistrados, quanto o das empresas, por ser diretor-presidente da Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Magistrados de São Paulo (Magiscred), o Desembargador Aliende Ribeiro acrescentou que havendo a judicialização, o Poder Judiciário deve levar em consideração a postura das empresas na fase da mediação. “No caso daquelas empresas que quando forem chamadas para a mediação não incentivarem a lide, não vierem contestando tudo, mas propondo e aceitando a conciliação, isso deve ser reconhecido no final, ao ponto de não onerar em demasia essas empresas que, até certo ponto e com boa fé, não tiveram tanta culpa na situação de superendividamento das pessoas”, pontuou o magistrado.

Passos de caranguejo – Integrante do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemec) do TJSP, com destacada atuação justamente no tema do superendividamento, a Juíza Monica Di Stasi buscou contextualizar a discussão com números. Ela disse, porém, ser difícil dimensionar o tamanho do superendividamento no Brasil, porque os números variam conforme os levantamentos de diferentes institutos de pesquisa. “Há quem diga que no final do ano passado éramos cerca de 18% dos brasileiros superendividados; na Serasa há 70 milhões de pessoas com o nome inscrito; a Febraban divulgou que em dívidas paradas em discussão tem mais de R$ 1 trilhão. Precisamos pensar a respeito desse assunto”.

A juíza lembrou que para o consumidor endividado o problema vai além de estar alijado do mercado de consumo e das restrições ao crédito, porque, por exemplo, embora seja socialmente condenável, nos processos seletivos muitas empresas deixam de contratar trabalhadores que porventura constem como negativados nos cadastros dos bureaus de crédito. Lembrou também que, com o superendividamento, as empresas e instituições financeiras deixam de receber os créditos que lhe são devidos, e que há ainda “outro lado” frequentemente esquecido, o do Estado, que perde com o não pagamento de tributos, com o aumento da pressão sobre o sistema de assistência social e com o congestionamento do Poder Judiciário.

“Em 2014, o Banco Mundial divulgou recomendações quanto à possibilidade do endividamento em massa dos consumidores provocar um risco sistêmico macroeconômico e já recomendava que os países tratassem disso internamente, mas de lá para cá, pelo menos no Brasil, efetivamente pouco foi feito. Andamos como caranguejos, ministro, e por muito tempo nem andamos, mas agora andamos um pouco de lado”, acrescentou a magistrada.

Nova chance – Na fase dos debates, o diretor jurídico da Febraban, Luis Vicente De Chiara, agregou o ponto de vista do mercado financeiro sobre o assunto. “Desses 70 milhões de negativados, metade das dívidas dessas pessoas não é bancária, é de necessidades de luz, água e gás. São pessoas que nem no sistema financeiro estão. Quando olhamos uma renegociação de dívidas de superendividamento no plano em que isso foi colocado, essa pessoa não tem sequer acesso à informação de que isso pode ser feito e, mais do que isso, não tem luz na casa dela. É um problema estrutural que passa pela educação financeira, pela educação de base, mas também pela forma como mudamos o País com essa visão”, disse.

Ele elogiou o Desenrola, programa de renegociação de dívidas lançado pelo Governo Federal, que até a data da realização do debate já havia “desnegativado” seis milhões de pessoas, com R$ 13 bilhões em dívidas renegociadas. “Os bancos estão muito firmes para trabalhar nisso, até para limpar a frente dessa oportunidade, tirar a negativação e dar nova vida a essas pessoas, mas sinto que isso não vai ser suficiente. Se não passarmos pela questão da educação, vamos limpar isso e amanhã terá que haver uma nova etapa”, observou De Chiara.