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Superpopulação carcerária no Brasil

8 de dezembro de 2022

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O que se pretende demonstrar é que o modelo penal brasileiro, com a ampliação dos contingentes carcerários e, mais ainda, do número de pessoas submetidas a penas e medidas alternativas, parece ser insustentável.

Certo é que, na história brasileira, apesar de um conjunto de regras protetivas dos direitos da pessoa presa oriundos de cartas internacionais, da Constituição Federal e da legislação penal e de execução penal, o Estado não está sendo capaz de modificar a realidade penitenciária.

Têm-se fatores internos e externos ao sistema jurídico criminal e de execução penal determinantes para a superlotação carcerária brasileira, que culminou no reconhecimento do estado de coisas inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por entender que a superlotação carcerária, por si só, já seria situação fática caracterizadora para o reconhecimento da ofensa à dignidade da pessoa humana.

As taxas de encarceramento e suas flutuações decorrem de uma interação complexa de vários fatores e mecanismos. Estudo realizado por Nagel analisando dados dos estados norte americanos nos anos de 1974 e 1975 não encontrou qualquer correlação entre índices de criminalidade e encarceramento.

A pesquisa foi ampliada para incluir Austrália e Canadá e os resultados apresentaram uma correlação positiva entre os índices de criminalidade e as taxas de encarceramento. Entretanto, o autor advertiu que a correlação positiva apontada não implicaria uma relação de causa e efeito, podendo-se extrair da análise dos dados duas conclusões distintas, quais sejam: as taxas de encarceramento constituíram fruto da reação do sistema penal aos índices de criminalidade; o encarceramento seria criminogênico, ou seja, os índices de criminalidade seriam impulsionados pelas taxas de encarceramento.

De qualquer forma, a pesquisa invalidaria a tese segundo a qual o aumento nos índices de encarceramento reduziria os índices de criminalidade. Sendo certo que nenhuma correlação significativa foi encontrada entre índices de criminalidade e taxas de encarceramento.

No âmbito da economia política da pena, diversos estudos empíricos corroboraram a tese da ausência de correlação entre índices de criminalidade e taxas de encarceramento, na medida em que os índices de criminalidade foram utilizados como variável de controle na investigação da influência de fatores sociais sobre as taxas de encarceramento.

Como observa Nagin, ao analisar a relação entre índices criminais e taxas de encarceramento, deve-se estabelecer como premissa que taxas de encarceramento não são variáveis por si próprias, mas produtos de outros fatores, como a probabilidade de apreensão de criminosos e do grau de severidade das sanções, ou seja, o resultado de políticas criminais determinará “quem vai para prisão e por quanto tempo”.

Em suma, não há como determinar com razoável grau de exatidão o nível de associação entre taxas de encarceramento e índices de criminalidade, ou seja, não é possível, no atual estado do debate, responder se, e em que medida o encarceramento contribuiria para reduzir a criminalidade.

Numa concepção mais ampla, porém, o crescimento das taxas de encarceramento resultaria da interação complexa entre múltiplos fatores, que variam conforme as características locais de cada configuração social, sendo inviável a indicação de uma única causa ou origem para o fenômeno.

Nessa perspectiva, Snacken propõe uma classificação dos fatores que contribuiriam para um aumento da população carcerária em três tipos: a) fatores externos, isto é, aqueles que não tem relação com o sistema penal, como, por exemplo, demografia populacional e economia; b) fatores internos, ou seja, aqueles que dizem respeito às decisões e atitudes adotadas no âmbito do sistema penal em relação à criminalidade; c) fatores intermediários, que consistem em reações políticas públicas e midiáticas aos dois primeiros fatores.

No que se refere aos fatores externos ao sistema penal, as evoluções demográficas (como alterações na estrutura etária da sociedade e movimentos migratórios), composição étnica, entre outros, são frequentemente associadas às estatísticas criminais, tanto no que tange aos índices de criminalidade, quanto aos de aprisionamento.

No Brasil, a questão do racismo estrutural, a desigualdade social-econômica e a grande concentração demográfica nas regiões metropolitanas do País devem ser consideradas fatores externos que explicam o aumento da população carcerária e os altos índices de criminalidade.

As condições econômicas tradicionalmente vinculadas às teorias criminológicas clássicas da criminalidade passaram também, a partir da década de 1970, a ser consideradas fator externo com influência na flutuação das populações prisionais, independente das variações nos índices de infrações penais. Demonstrou-se um vínculo entre desemprego e o aumento da prática de crimes.

Porém, o sistema de justiça criminal constitui fator determinante das variações nas populações prisionais. Veja a experiência no Brasil da atuação junto ao sistema de audiências de custódia. O número de presos provisórios dependerá da atuação determinante do magistrado no ato de realização da audiência de custódia.

Mas não é só. O cumprimento da pena ao longo de sua execução, com a concessão dos incidentes de progressão de regime e saída extramuros dependerá da atuação legislativa, com aumento ou redução do prazo para concessão de benefícios e da própria construção cultural do magistrado, inclusive de suas convicções religiosas, políticas e ideológicas, como fator influente para análise do montante do tempo de aprisionamento.

Já os fatores intermediários decorrem das repercussões dos fatores externos e internos que contribuem para flutuação das populações prisionais, quais sejam, opinião pública, mídia e a esfera das decisões políticas.

Questão importante sobre o tema a envolver a superpopulação carcerária decorrente da política de excesso de encarceramento é a retirada da pessoa presa a condição de cidadão, e, por sua vez, a condição de humano, o que justificaria o tratamento indigno conferido ao preso após a restrição da sua liberdade.

A prova de tal afirmação advém da perda dos direitos políticos da pessoa condenada. A suspensão de direitos políticos prevista no art. 15, inciso III, da Constituição Federal aplicar-se-á, inclusive, no caso de substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.

Quando se perde o principal direito do cidadão, que é escolher os representantes do povo, verdadeiro detentor do poder do Estado, acaba-se por se perder representatividade e importância no cenário político.

Deve-se, assim, descortinar as mazelas inerentes à superpopulação carcerária para que haja o enfrentamento das causas que acarretam o seu reconhecimento e, como consequência, a ofensa aos direitos básicos da pessoa presa, seus efeitos e a solução para o enfrentamento.

Sendo assim, modificações na execução penal e no sistema penitenciário são absolutamente necessárias e urgentes.

Há que se reconhecer como política de Estado, à margem das mudanças de governos, os problemas inerentes à superpopulação carcerária.

Ressalte-se que a situação do Brasil não decorre de nenhuma inevitabilidade estrutural, mas, sim de escolhas nacionais que, provavelmente, só serão realmente modificadas com uma mudança cultural quanto à punição e ao encarceramento.

O futuro da prisão no Brasil depende, para que a realidade carcerária brasileira seja melhor que a atual, de uma atualização, afastando a ideia do “Nothing works” e de que a prisão será sempre péssima, assim como a naturalidade com que se convive com a miséria prisional.

O sistema penitenciário é superlotado e viola direitos humanos desde o seu início. A título ilustrativo, a primeira Constituição Brasileira (1824) prometeu cadeias não só seguras, mas, também limpas e bem arejadas, e prescreveu a separação dos réus conforme as suas circunstâncias e a natureza dos seus crimes.

Diante da disparidade entre o que dispunham a Constituição, o Código Criminal do Império e a realidade carcerária, iniciou-se um movimento no sentido de reformar o aparato prisional herdado da era colonial, sendo tal bandeira empunhada pela Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional já em 1831 e, posteriormente, encampada pelos Poderes Públicos.

A situação pouco se alterou. Ao longo do Século XX, os projetos para o estabelecimento de uma lei penitenciária que disciplinasse a matéria e evitasse as violações aos direitos dos presos se sucederam (Projeto de Lei de Execução Penal/1933, Projeto de Lei de Execução Penal/1956, Projeto de Código Penitenciário/ 1963 e Projeto de Lei de Execução Penal/1970), até a Lei de Execução Penal (Lei no 7.210/1984).

O Brasil tem apresentado um aumento importante do número de pessoas submetidas ao sistema penal, seja pela privação da liberdade, durante o curso do processo penal ou em consequência de condenação criminal, seja pela imposição de penas de longa duração ou medidas alternativas.

Seja como for, no Brasil contemporâneo, a punição é identificada pela imposição de pena privativa da liberdade e, em que pese haver hoje mais pessoas submetidas a penas e medidas alternativas do que encarceradas, isto não mudou a perspectiva social em relação à punição.

Com elevados índices de criminalidade e importante aumento dessas taxas nas últimas décadas, tem-se assistido ao incremento bastante mais expressivo da taxa de encarceramento, além de reformas legais no sentido de tornar mais severa a legislação penal e de execução de penas.

Apesar da oscilação legislativa entre regras menos ou mais encarceradoras, a depender da vontade política e dos crimes de ocasião, o sistema legislativo penal contribui para o incremento da privação da liberdade com normas anacrônicas e marcadas por expressões subjetivas, sem que haja uma modelação, permitindo interpretações não simétricas pelo julgador.

Questão determinante para a superlotação carcerária é a banalização da prisão provisória no sistema judiciário brasileiro, por representar cerca de 50% das pessoas encarceradas, sem sequer ter havido o desfecho do processo criminal, o que representa aparente ofensa ao preceito fundamental individual da presunção de inocência.

A questão é que predominantemente apenas os crimes praticados com violência ou grave ameaça e aqueles definidos como traficantes pela lei são presos, e, sob essa ótica, o encarceramento somente atingirá a população pobre e preta da sociedade brasileira.

A formação jurídica acadêmica no Brasil, apesar das luzes garantistas introduzidas com a Constituição Federal de 1988, se dá com base no Código de Processo Penal de 1942, até hoje em vigor, editado sob inspiração do Código de Processo Penal Italiano, de 19 de outubro de 1930 que, inicialmente, previa a prisão preventiva obrigatória, nos termos do art. 312.

Somente após 26 anos a redação original dos artigos 312 e 313 foi alterada (por força da Lei no 5.349/1967), extinguindo-se a hipótese de prisão preventiva obrigatória.

A difícil mudança na construção do ideário sobre a prisão preventiva, como regra, depende da mudança cultural sobre a necessidade de encarceramento como o único viés punitivo de pessoa que praticou um delito.

A prisão cautelar acaba por se prestar como medida de antecipação da pena, como instrumento punitivo e de marginalização, muito por opção política criminal, que se pauta na necessidade da prisão para os crimes que empregam violência ou o emprego de arma de fogo.

Os crimes patrimoniais, de tráfico de entorpecentes e de homicídio representam a maioria esmagadora das hipóteses de encarceramento no Brasil, o que acaba atingindo de forma transversa, como causa determinante para o encarceramento, parcela da sociedade pobre, por estar à margem da sociedade de consumo, que também são pessoas do gênero masculino, pretas e jovens.

A superpopulação carcerária decorre do fato de que há quase o dobro de presos no Brasil do que vagas no sistema penitenciário.

Diante deste quadro, convém questionar se o que acontece no Brasil é inevitável e, ainda que seja, se há alternativas às dramáticas condições do sistema penal brasileiro, para adequá-lo ao Século XXI. O sistema penitenciário brasileiro tem sido objeto de constantes e severas críticas, inclusive internacionais.

Muito se tem relacionado o aumento expressivo do contingente carcerário no Brasil, nos últimos 20 anos, com a adoção de políticas neoliberais, que teriam gerado exclusão social e, por consequência, a criminalização da pobreza.

No Brasil, apesar de posições divergentes sobre a criminalização da pobreza, por se adotar o modelo neoliberal e a opção política pelo encarceramento de crimes praticados com violência, emprego de arma, e por tráfico de drogas, acaba por se atingir a parcela da população mais vulnerável pela pobreza. São jovens, do gênero masculino e pretos.

Notas___________________________

1 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. “Desafios contemporâneos da execução penal no Brasil”. Revista eletrônica Penal AIDP-GB, ano 1, vol. 1, n° 1, jun. 2013.

2 Nagel, William G. “On behalf of a moratorium on prision construction. Crime and delinquency”. Thousand Oaks, vol. 23, pp. 154-172, abr. 1977.

3 FERREIRA, Ana Lúcia Tavares. “Encarceramento e sistema penal”. São Paulo: Liber Ars, 2019.

4 DE GIORGI, Alessandro. “Re-thinking the political economy of punishment”. Hampshire: Ashgate, 2006, p. 19. Citado por FERREIRA, Ana Lúcia Tavares, op. cit., p. 31.

5 NAGIN, Daniel. “Deterrence in the twentyfirst century: A review”. Carnegie Mellon University Research Showcasa, pp. 27-29, 2013. Citado por FERREIRA, Ana Lúcia Tavares, op. cit., p. 31.

6 Op. cit. Item 02.

7 SACKEN, Sonja. “Penal Policy and Practice in Belgium”. In TONRY, Michael. Crime, Punishment, and Politics in comparative perspective. Chicago. The University of Chicago Press. P. 172.

8 Idem, pp. 18-53.

9 Idem.

10 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano; SOUZA, Artur de Brito Gueiros. “Curso de Direito Penal”. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 48 e seguintes.

11 http://dados.mj.gov.br/dataset/f9ebf1f1-8d27-4937-b330-f29b820dca87/resource/225de757-416a-46ab-addf-2d6beff4479b/download/copia-de-dadosformularios-jan-jun2019.xlsx

12 Idem.

13 JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano, op. cit.