O Supremo Tribunal Federal e sua importante missão de guardião da Ordem Econômica Constitucional

28 de abril de 2014

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Amanda_1. Breve introdução à temática central do julgado
São muitos os estudiosos que enaltecem a relevância das normas integrantes da “Constituição Econômica”1 ou da “Ordem Econômica Constitucional” para o atingimento da finalidade de busca de desenvolvimento nacional. De fato, as normas constantes da Constituição e que disciplinam o fenômeno econômico constituem instrumentos decisivos para o bom funcionamento da economia de mercado, modelo econômico consagrado no texto de 1988.

Assim, a Ordem Constitucional Econômica posta no texto de 1988 constitui-se, na vida brasileira contemporânea, em balizadora e fundamento do capitalismo por ela eleito como modelo econômico. Por outro lado, é de se reconhecer que as normas que integram a Constituição Econômica se inserem no contexto global de reconhecimento e proteção de direitos fundamentais que perpassa toda a Carta de 1988 e devem ser, portanto, assim interpretadas2.

Em um modelo de economia de mercado, preponderam as atividades desenvolvidas pela iniciativa privada e, como agente econômico, destaca-se o papel das empresas. Nesse contexto, o princípio da livre iniciativa alcança status de fundamento da República (artigo 1o, CR/88) e da Ordem Econômica e Financeira (art. 170, CR/88). Ao Estado, a Constituição dedica-lhe função relevante de regulador e regulamentador do fenômeno econômico (art. 174, CR/88) e, excepcionalmente, de empresário (art 173, CR/88).3

As bases e os limites para a intervenção do Estado na economia encontram-se dispostos no texto constitucional. Os dispositivos que dela cuidam articulam-se, como não poderia deixar de ser, com os demais artigos constitucionais informadores da ação do Estado, entre eles aqueles que cuidam da disciplina da responsabilidade civil estatal.

O presente artigo pretende enaltecer a postura que vem adotando o Supremo Tribunal Federal (STF) no que concerne aos limites impostos pela disciplina consti­tucional da intervenção estatal na economia desde o julgamento, pela Segunda Turma, em dezembro de 2005, do Recurso Extraordinário 422.941/DF, e que teve como relator o eminente Ministro Carlos Velloso. A posição ali firmada vem prevalecendo em julgamentos de casos semelhantes mais recentes, a exemplo das decisões profe­ridas no RE 598.537-AgR/PE, Rel. Min. Dias Toffoli, 1a Turma, j. 1a/2/2011; e do RE 648.622-AgR, 1a Turma, Rel. Luiz Fux, j. 20.11.2012.

2. RE 422.941/DF: o STF e a responsabilidade civil do Estado pela política econômica que desenvolve
Muito já se discutiu no STF acerca dos limites e da evolução da responsabilidade civil do Estado no ordenamento jurídico brasileiro. A propósito, em relação à temática da responsabilidade civil do Estado, destaca–se a importância da jurisprudência constitucional, que vem construindo, pela atuação protagonista do STF, os contornos do instituto pela apreciação sistemática dos casos à luz do disposto no art. 37, parágrafo 6o, da Constituição de 19884.

A questão posta em julgamento no âmbito do RE 422.941 pode ser assim brevemente descrita:

• em conformidade com a Lei no 4.870/1965, os preços dos produtos sucroalcooleiros eram fixados pelo então Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA);

• o artigo 9o da referida lei dispunha sobre o levantamento dos custos de produção para vigorar no triênio posterior, a ser realizado pelo IAA;

• o IAA contratou, para fins de apuração dos custos, a Fundação Getulio Vargas;

• a Fundação apurava os valores anualmente, mas os preços fixados eram sistematicamente estabelecidos pelo IAA em valores inferiores, que não cobriam os custos de produção;

• os preços fixados para os produtos sucroalcooleiros não correspondiam aos custos apurados pela fundação no período entre março de 1985 a outubro de 1989;

• foram constatados, por perícia, os prejuízos (danos) incorridos pelo setor em razão dessa prática.

Em seu voto no Recurso Extraordinário em referência, o Ministro Relator, Carlos Velloso, destacou os limites existentes à prerrogativa estatal de intervir na economia e expressos nos princípios e fundamentos da Ordem Econômica, nos termos do artigo 170 da CR/88. O autor afirmou que “a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção estatal na economia (…) não autoriza a violação do princípio da livre iniciativa”. E destacou que:

o estabelecimento de regras bem definidas de intervenção estatal na economia e sua observância são fundamentais para o amadurecimento das instituições e do mercado brasi­leiros, proporcionando a necessária estabilidade econô­mica que conduz ao desenvolvimento nacional.

A política econômica estatal para o setor restou bem delineada no voto do eminente Relator: a) o Estado elaborou legislação definindo parâmetros para a fixação de preços do setor; b) o Estado celebrou convênio com instituição privada para fins de levantamento de custos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços; c) o Estado determinava ao setor, por anos, a prática de preços em valores inferiores aos custos por eles enfrentados.

Ao final de seu voto, concluiu o Ministro Relator, para julgar devido o direito de indenização ao setor por parte da União:

A ausência de regras claras quanto à política econômica estatal, ou, no caso, a desobediência aos próprios termos da política econômica estatal desenvolvida, gerando danos patrimoniais aos agentes econômicos envolvidos, são fatores que acarretam insegurança e instabilidade, desfavoráveis à coletividade e, em última análise, ao próprio consumidor.

3. Os institutos jurídico-econômicos: desafios ainda postos ao sistema jurídico brasileiro e o acerto da decisão do STF no RE 422.941
É de se destacar ser a disciplina adequada do fenômeno econômico um desafio ainda posto ao sistema jurídico brasileiro. Muitas incompreensões ou equívocos em relação aos institutos jurídico-econômicos ainda se fazem presentes, inclusive no senso comum, com repercussões nas decisões dos Tribunais.

Assim é que também se verificam preconceitos ou resistências em se compreenderem certos conceitos econômicos juridicizados pela Constituição de 1988, com consequências nefastas à finalidade última de busca da dignidade da pessoa humana. São exemplos dessas “confusões” a incompreensão, por vezes formalizada ou oficial, de fenômenos econômicos como o monopólio, o lucro, o poder econômico, entre outros.

Acerca desses institutos (outros poderiam ser mencio­nados), impõe-se esclarecer definitivamente: não há como se verificar, em qualquer dispositivo constitucional do texto de 1988, referência à proibição da existência do poder econômico ou do lucro das empresas. Há que se compreender, de uma vez por todas, que, de forma objetiva, a atividade econômica desenvolvida pela iniciativa privada é prioritária, em conformidade com a Constituição Econômica de 1988. Em sendo assim, surge o poder econômico privado, assim compreendido como os agentes econômicos privados (empresas) responsáveis pelo desenvolvimento do mercado brasileiro. A alteração constitucional posterior, realizada por Emenda, e que permitiu privatizações de setores econômicos antes conduzidos por empresas públicas corrobora essa interpretação. O que a Constituição de 1988 desautoriza, e o faz explicitamente, é o abuso do poder econômico, como, de resto, o ordenamento jurídico, de forma global, não permite o exercício abusivo de direito. Portanto, deter poder econômico, em conformidade com o texto de 1988, lido este de forma objetiva e livre de ideologias, não constitui algo reprovável.

O mesmo se diga do lucro. O lucro, e isso é assente na economia, constitui o fim último de qualquer atividade econômica privada. O lucro representa a própria razão de ser das empresas5. Por isso, impedi-lo importaria em impedir o próprio exercício do direito de iniciativa privada. Igualmente, não se verifica no texto constitucional qualquer referência à proibição de lucros, em qualquer patamar, nem mesmo os altos lucros. O que se proíbe, isso, sim, é o lucro obtido à custa do uso abusivo do poder econômico em detrimento de nobres valores constitucionais, entre eles a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, o mercado concorrencial, etc.6 O alto padrão de lucro obtido à custa de eficiência econômica é de ser mantido, porque a eficiência econômica empresarial gera inúmeros benefícios à coletividade igualmente relevantes (importa em padrões menores ou ausência de desperdícios de recursos ou decorre de inovação tecnológica, por exemplo, tudo isso, com ganhos sociais indiscutíveis).

Equívocos ou incompreensões semelhantes também podem ser observados no tocante à disciplina jurídica do preço. A decisão proferida no julgamento do RE 422.941 foi precisa, é de se sublinhar, no tratamento dado à questão. É que ao chancelar a prática em questão, de fixação de preços ao setor abaixo do preço de custo, o Estado incorreu em grave dano ao setor, com consequências, nos médio e longo prazos, altamente lesivas aos consumidores. Uma leitura superficial dos fatos, no entanto, poderia conduzir à ideia errônea de que o consumidor foi favorecido com o padrão de preços (abaixo do custo) fixado. Essa interpretação seria simplista e ausente de fundamento econômico.

A disciplina adequada do mercado, pelas normas ou pelas decisões judiciais, não pode se ater aos efeitos jurídico-econômicos exclusivamente diretos dela decor­rente. Há que se refletir sobre o impacto das normas e das decisões no mercado7 e se esse impacto atende aos princípios constitucionais de desenvolvimento nacional equilibrado e de dignidade da pessoa humana, que passa, este último, pelo inafastável pressuposto de se assegurar acesso ao consumo pelas pessoas. O mercado, instituição que detém status constitucional de opção escolhida para a economia do país, é estrutura dinâmica e que responde a estímulos. Os resultados sólidos que proporciona não são produzidos como reações imediatas a ações públicas e privadas. Sua solidez, sua estabilidade e uma concorrência sadia entre os agentes econômicos é que são elementos hábeis a gerar benefícios concretos à coletividade.

4. Relevância do julgamento do RE 422.941: o amadurecimento das instituições econômicas no Brasil e o respeito aos direitos fundamentais e econômicos
Em artigo doutrinário a respeito do tema da “intervenção estatal na Ordem Econômica”, o Ministro Carlos Velloso destacou a importância de Emendas posteriores à promul­gação da Constituição de 1988 para a adequada disciplina da economia no Brasil. Segundo o ministro e professor, a Constituição de 1988, embora tenha adotado a economia de mercado como modelo econômico, nasceu, sob esse aspecto, antiquada, e as mencionadas Emendas foram essenciais para a sua modernização, “tornando competitiva a economia brasileira, inclusive no campo internacional.”8

De fato, embora consagrasse, desde o texto original, a economia de mercado e a livre iniciativa como valores, a Constituição de 1988, tal como previa o texto inicialmente promulgado, cometia graves inadequações ao modelo. Podem ser citados, a título de exemplo dessa inadequação, o tratamento originalmente mais favorável para empresas brasileiras, conforme previsão originária do art. 170, IX, e do artigo 171, assim como a fixação do limite da taxa de juros reais em 12%, prevista no artigo 192, parágrafo terceiro. Muitos outros exemplos se faziam presentes e foram gradualmente superados pelo texto mais consentâneo com as realidades brasileira e mundial presente em Emendas Constitucionais supervenientes.

É de se ressaltar, nesse cenário, o papel de destaque exercido pela Corte máxima da República. Alinhando-se ao propósito de garantir a existência de normas disciplinadoras da atividade econômica capazes de responder aos anseios da sociedade contemporânea, o Supremo Tribunal Federal cumpriu fielmente sua missão de guardião da Ordem Econômica Constitucional e preservou direitos legítimos.

O julgamento do Recurso Extraordinário em questão converge nessa intenção. Guido Alpa, debruçando-se sobre a Análise Econômica do Direito, já se manifestou pela função da intervenção pública na economia, segundo ele, responsável por procurar reduzir ao máximo possível os custos de transação no mercado9.

A postura recorrente do STF de admitir a indenização por danos causados aos agentes econômicos pelo Estado por meio da política econômica por ele desenvolvida dota os agentes públicos de um grau ainda mais agudo de compromisso no momento de elaboração e implementação dessas políticas. A segurança econômica advinda da estabilidade institucional constitui elemento essencial para o sadio desenvolvimento do mercado brasileiro. Por outro lado, pelo menos no âmbito das normas constitucionais de 1988, apenas o mercado sadio será capaz de se conduzir ao efetivo desenvolvimento nacional, que gera distribuição de riqueza e acesso a essas mesmas riquezas.

Tudo isso é muito caro para um país que, embora possua uma Constituição generosa em direitos fundamentais, ainda padece dos males de um dos piores níveis de distribuição de renda mundiais.

Nesse sentido, enaltecem-se a firmeza e a coerência da Suprema Corte do Brasil, esta grande e nobre instituição, responsável por conceder a última palavra em relação aos mais elevados valores republicanos.

Notas _____________________________________________________________________

1 O mestre Washington Peluso Albino de Souza, reconhecido como o “criador” da disciplina Direito Econômico no Brasil, afirmava ser a “constitucionalização do econômico” o elemento caracterizador da “Constituição Econômica”. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 16.
2 Gérard Farjat, ilustre estudioso do Direito Econômico, assinala ser o sistema jurídico “portador e produtor de valores”. FARJAT, Gérard. Por un droit économique. Paris: Presses Universitaires de France, 2004, p. 34 (tradução livre da autora).
3 André de Laubadère discorre sobre os dois sentidos que o princípio da liberdade de iniciativa apresenta no contexto francês. O mesmo raciocínio é válido para o Brasil. Segundo o autor, o primeiro e principal significado do princípio informa que ele “constitui o fundamento de direitos que os particulares podem fazer valer contra a administração para o exercício das actividades económicas e limita assim os poderes da administração relativamente a essas actividades”. O segundo refere-se às limitações das condições em que o próprio Estado pode se dedicar à atividade econômica direta. LAUBADÈRE, André de. Direito Público Económico. Coimbra: Almedina, 1985, p. 238.
4 É essa a opinião do professor Carlos Horbach, ele próprio ex-assessor de Ministro no STF. HORBACH, Carlos Bastide. Responsabilidade do Estado: 25 anos de aplicação da Constituição de 88. In 25 anos da Constituição brasileira de 1988: Democracia e direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito. Patrícia Henriques Ribeiro e outros (orgs.). Belo Horizonte: D’Placido, 2014, p. 105.
5 Cabral de Moncada afirma que o exercício da liberdade individual tem como consequência, na esfera econômica, o lucro. MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 20.
6 A inserção dos princípios inéditos, nos textos constitucionais brasileiros, da proteção do consumidor e da defesa do meio ambiente, por exemplo, é digna de realce e implica em maturidade econômica inscrita no texto de 1988. Em relação a ambos os princípios mencionados, destaca-se a liderança científica do hoje Ministro Herman Benjamin, do STJ, para sua regulamentação em âmbito legal. Sugerem-se, a respeito das duas temáticas, os inúmeros textos acadêmicos de autoria do ministro, em especial “Meio ambiente e Constituição: uma primeira abordagem”. In 10 anos da ECO-92: o Direito e o desenvolvimento sustentável. Antonio Herman Benjamin (org.). São Paulo: Imesp, 2002, p. 89-102.
7 Essa ideia, de se perquirir acerca dos impactos econômicos das decisões jurídicas, vem sendo, desde a década de 1960, nos Estados Unidos, desenvolvida no âmbito da disciplina Law and Economics. Na última década, esses estudos desenvolveram-se, também, no Brasil. Sobre a disciplina Análise Econômica do Direito e sua inserção nos currículos das Faculdades de Direito, recomenda-se: ARAÚJO, Fernando. Análise Económica do Direito: programa e guia de estudo. Coimbra: Almedina, 2008.
8 VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Da intervenção do Estado na Ordem Econômica: o monopólio e temas conexos. In Estudos de Direito Constitucional. Homenagem ao Professor Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza. Adhemar Ferreira Maciel e outros (orgs.). Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 245.
9 ALPA, Guido. A análise econômica do Direito na perspectiva do jurista. Trad. João Bosco Leopoldino da Fonseca. Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 1997, p. 31.