Teletrabalho no Judiciário Tecnologia do Século XXI, ideologia do Século XIX

4 de maio de 2023

Carlos H. B. Haddad Juiz Federal do TRF6

Compartilhe:

O Poder Judiciário brasileiro pode ser visto sob dupla ótica: AP e DP, isto é, antes da pandemia e depois da pandemia. Em razão da pandemia, criaram-se os Núcleos de Justiça 4.0, o Balcão Virtual e o Juízo 100% Digital. Esses mecanismos contribuíram para o desenvolvimento do “serviço judicial digital” ou da “prestação jurisdicional virtual”, expressões empregadas para representar a prática de atos processuais por meio eletrônico e remoto, por intermédio da rede mundial de computadores. Nenhuma tecnologia foi inventada, o Judiciário apenas se apropriou daquilo que já existia e que, provavelmente, passaria a integrar o sistema de Justiça daqui a alguns anos.

À medida que as pessoas começaram a voltar aos fóruns, os presidentes de tribunais se viram entre servidores e magistrados que querem continuar trabalhando em casa e aqueles que desejam regressar às secretarias e aos gabinetes. Sempre se equiparou o fórum ao trabalho, mas agora que se provou que o trabalho pode acontecer em qualquer lugar, qual é o atual papel do prédio do tribunal? Como afirma Richard Susskind, o Judiciário não é um local, mas sim uma prestação de serviço.

Muitas organizações, tal como o Judiciário, têm incentivado o retorno das pessoas aos escritórios, mas o que não tem sido claro é o porquê. Esse retorno, determinado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 481/2022, limitou o teletrabalho a 30% do quadro permanente de servidores. Além disso, passou-se a exigir a presença do juiz no fórum ao menos três vezes na semana; a meta de desempenho estipulada aos servidores em regime de teletrabalho deve ser superior; e haverá quantitativo mínimo de dias por ano para o comparecimento do servidor à instituição, a fim de que não deixe de vivenciar a cultura organizacional.

Será que o CNJ encontrou a melhor forma de lidar com a tensão entre trabalho remoto e retorno presencial? Será que, a despeito da tecnologia do Século XXI, o trabalho tem sido visto com a ideologia do Século XIX?

As pessoas que voltam aos fóruns não são as mesmas que de lá saíram em março de 2020. As expectativas mudaram muito, e estes últimos anos deixaram marca duradoura que será sentida nos próximos lustros.

Primeiramente, vale descobrir o que está motivando as preocupações daqueles que insistem no retorno ao trabalho presencial. Talvez duvidem de que as pessoas estão levando o trabalho remoto a sério. Há quem se ofenda com a ideia de pessoas trabalhando de pijama e chinelos, pois vê isso como algo preguiçoso e que banaliza a importância do trabalho. Podem estar preocupados que os servidores não estejam colaborando o suficiente do interior da casa deles. Acreditam que o home office traz muitas distrações ou que o distanciamento afeta a união e o trabalho conjunto da equipe. É possível que pensem que o atendimento à população precarizou-se e que a presença dentro do fórum “é absolutamente imprescindível para o oferecimento da prestação jurisdicional qualificada”. No fundo, pode-se ter a sensação de que é muito mais difícil coordenar e controlar os trabalhos de pessoas que estão fora dos gabinetes e secretarias do que quando estavam todas presencialmente trabalhando nos prédios dos tribunais. E, assim, entre confiança e controle, prefere-se a segunda opção.

Ainda será preciso desenvolver a consciência de que trabalho remoto deve ser compreendido como a possibilidade de trabalhar onde a pessoa se sente mais feliz e produtiva. Se a satisfação é maior quando se está no fórum, o magistrado talvez não tenha nascido para o teletrabalho. Não é preciso trocar a obrigatoriedade do escritório pela obrigatoriedade da casa, mas se deve procurar o local que permita o trabalho realizado com satisfação. Por que não dar o poder de escolha às pessoas? Obviamente, preservando-se o atendimento ao público, haja vista que o Judiciário não é um fim em si mesmo, pois existe para atender a população.

Não há vantagem em estar em casa ou no prédio da Justiça, nem desvantagem. É uma questão de opção e de opção pela igualdade, sem discriminar quem está em casa ou quem está no escritório. Feita a escolha, a bússola será a produtividade. Onde o colaborador mostrar maior produtividade, provavelmente é nesse local que fica mais satisfeito no desempenho do trabalho.

Essa conclusão pode não ser suportada por muitas pessoas, inclusive pelo CNJ. É possível que a resistência ao teletrabalho, com a determinação do retorno presencial dos integrantes do Judiciário, encontre explicações no funcionamento da instituição. Sem tirar o mérito de que esteja se tornando preocupação crescente, muitas unidades judiciárias não trabalham em busca de resultados. Afundadas em crenças limitantes, as equipes acreditam que processo não tem prazo para ser finalizado; trabalhar no Judiciário é como enxugar gelo; e o número insuficiente de servidores não permite executar as tarefas diárias. Nessa perspectiva, instala-se o pacto de mediocridade, em que ninguém incomoda para não ser incomodado.

A presença física dos integrantes do Judiciário nos fóruns e tribunais, em mundo no qual a busca por resultados não existe, é a forma mais clara de ocupação do trabalhador. Se o chefe não vê, como saber se o subordinado está trabalhando? A despeito do improdutivo serviço que realiza, a presença no ambiente forense é o meio encontrado para identificar se o magistrado ou servidor está ocupado com o serviço, ainda que permaneça na frente do computador do gabinete por toda a jornada navegando por redes sociais.

A nova mentalidade assenta-se na concepção de que resultados são mais importantes do que horas de trabalho, que são mais importantes do que o local de trabalho. Enfim, resultados são muito mais relevantes do que o endereço de I.P. Horas passadas no ambiente do fórum não são métrica de sucesso. Assim como horas desperdiçadas no ambiente remoto são igualmente inservíveis. Vale usar o conceito de resultados como nova métrica para o trabalho.

A sugestão de se mudar a métrica do trabalho remoto não se limita à substituição de horas de trabalho por resultados. O processo de transformação também atinge a liderança, que precisa substituir “controle” por “confiança”. O segredo do trabalho remoto é liberdade com responsabilidade.

Talvez por causa dessa liberdade, a que se associa irresponsabilidade, o trabalho remoto ainda é visto como privilégio no Judiciário e, por isso, exige-se produção superior daqueles que estão em casa. Mas, em regra, com a mesma jornada de trabalho, a produção tende a ser equivalente. Se um juiz faz cinco sentenças trabalhando oito horas em seu gabinete no fórum, não há matemática que explique por que produziria mais sentenças, com a mesma jornada, quando estivesse em home office. Por isso é equivocada a concepção de que trabalho remoto é privilégio, o que somente contribui para aumentar a desigualdade entre os integrantes das equipes de unidades judiciárias e tribunais espalhados pelo País.

Da mesma forma, recomendar idas eventuais do trabalhador remoto ao fórum, para vivenciar a cultura organizacional, somente vai servir para ele não se esquecer do caminho até o trabalho. Nenhuma cultura organizacional se forma ou se cultiva com visitas esporádicas ao local de trabalho. Na esteira da covid-19, que aprofundou uma epidemia de solidão e desconexão, é preciso liderar com compaixão e cuidar melhor uns dos outros. A liderança deve preocupar-se, tal como acontece no serviço presencial, em criar sentimento de pertencimento da equipe com a instituição, independentemente de ser trabalho presencial, remoto ou híbrido. Pequenas ações contribuem para que isso aconteça. Fazer da conexão ao local de trabalho um ritual é uma delas. Por muito tempo, a conexão ocorria como algo que surge durante o dia de trabalho, seja por meio de conversas no corredor, momentos de beber água ou tomar café. No ambiente remoto, os momentos espontâneos de conexão humana são mais desafiadores para se recriarem.

Enfim, a gestão do trabalho remoto encontra muitos desafios: a equipe não criar o hábito de utilizar as ferramentas combinadas; saber investir tempo em comunicação e enxergá-la como ponto imprescindível; abrir mão do controle e ter mais confiança no time; entender que trabalhar remotamente não é sinônimo de trabalhar sozinho; ser bombardeado com mensagens e sentir que está trabalhando 24 horas por dia; encontrar a disciplina necessária para bem utilizar o benefício da flexibilidade; substituir o endereço do I.P. e horas de trabalho pela nova métrica de entregas e resultados.

As organizações que conseguirem mais rapidamente se ajustar às características do teletrabalho sairão na frente na obtenção de resultados e no alcance de maior produtividade e satisfação profissional. Por enquanto, o pêndulo normativo do Judiciário brasileiro não chegou ao ponto de equilíbrio. Somente o tempo vai mostrar como isso pode e deve acontecer.