Tributação do IPI sobre o roubo e o princípio da moralidade pública

31 de janeiro de 2010

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Disse um Ministro do tempo de exceção que o Estado é necessariamente aético. Quando da promulgação da Constituição para contestar a afirmação, colocou o constituinte, como primeiro e fundamental princípio da Administração Pública, o princípio da moralidade.

As autoridades tributárias federais, todavia, não se especializaram em ler a Constituição, nem as leis tributárias redigidas pelo Congresso acompanharam o desiderato da Lei Maior, pois decidiram, em paupérrima interpretação do direito, cobrar IPI sobre mercadorias roubadas nas estradas, sem que se tenha completado a operação mercantil, por força da omissão do Estado em dar segurança pública aos cidadãos, nada obstante a confiscatória carga tributária do país.

Assim é que, entendendo que o artigo 46, inciso II, do CTN declara que a saída da mercadoria é o fato gerador do tributo, concluem que a incidência decorre de um fato isolado (saída) e não da operação mercantil a que se refere, razão pela qual para o governo pouco importa se a mercadoria é roubada ou chega às mãos do seu verdadeiro destinatário.

À evidência, fingem desconhecer o artigo 47, inciso II, letra ‘a’, do referido Código, onde se declara que “o valor da operação de que decorrer a saída da mercadoria” é a base de cálculo do IPI, o que vale dizer que a “operação mercantil” é que constitui base de cálculo do tributo. E, à evidência,
não se pode considerar o “roubo” uma “operação mercantil”.

Por outro lado, a Lei 7.798/1989, em seu artigo 2º, § 1º, declara que: “o valor tributável” do IPI é “o preço normal da operação de venda”, o que importa reconhecer que, nitidamente, não há qualquer venda no roubo. Em outras palavras, a mercadoria roubada que não chegar às mãos do comprador não completa uma operação de venda, que deixa de existir por não ter sido o produto entregue ao destinatário.

Na mesma lei, o artigo 3º repete expressamente que o tributo incidirá sobre o “valor tributável numa operação normal de venda”; e o artigo 15, que o valor tributável, quanto aos produtos nacionais, deve corresponder “ao valor total da operação”, acrescentando o § 1º que o valor da operação “compreende o preço do produto, acrescido do valor do frete e das demais despesas acessórias, cobradas ou debitadas pelo contribuinte ao COMPRADOR OU DESTINATÁRIO”!!!
Nitidamente, não se pode debitar ao assaltante, ao ladrão tais valores, apesar de no roubo serem eles os destinatários das mercadorias. Roubo bem sucedido, por exclusiva omissão  do Estado aético em garantir a segurança pública.

É de se lembrar que nos produtos sujeitos ao IPI sob o Código 24.02.02.99, o DL 1593/77 prevê que o “valor tribu­tável” incidirá sobre o “preço de venda no varejo” (art. 4º, inciso I), em clara demonstração de que a operação mercantil — e não a consagração das operações de meliantes – constitui o fato gerador do IPI.
É de se lembrar ainda que a palavra operação está na própria Constituição, ao cuidar do princípio da não-cumulatividade aplicado ao IPI (art. 153, § 3º, inciso II).

Acresce-se que o RIPI faz menção, no seu artigo 3º, ao fato de que “o produto industrializado é o resultante de qualquer operação” e, principalmente, o artigo 174, inciso V, declara que:
“Art. 174 – Será anulado, mediante estorno na escrita fiscal, o crédito do imposto:

(…)
V – relativo a matérias-primas, produtos interme­diários, material de embalagem e quaisquer outros produtos que hajam sido furtados ou roubados, inutilizados ou deteriorados ou, ainda, empregados em outros produtos que tenham tido a mesma sorte.” (grifamos)
O aspecto, portanto, que mais choca é que, ao cobrar o IPI sobre o roubo, a lei exige que o crédito de IPI sobre mercadorias seja estornado, com o que o industrial assaltado, por omissão do governo:

a) perde a mercadoria;

b) paga o IPI sobre a mercadoria roubada; e

c) ainda é obrigado a estornar o crédito de IPI dos insumos usados nas mercadorias roubadas!!!

Se receber o valor de venda do comerciante, no qual já está embutido o tributo, cumpre com suas obrigações fiscais e, por fim, ainda mantém o crédito!!! Se for roubado, perde tudo e ainda é obrigado a pagar o tributo E ESTORNAR O CRÉDITO POR FORÇA DO ARTIGO 174, INCISO V, DO RIPI!

Creio que tal “raciocínio jurídico” faria inveja a qualquer agente da SS de Hitler!
Para mim, não só é pobre a leitura de que para a concretização da operação de venda bastaria a mera saída da mercadoria bem como fere, dramaticamente, o princípio da moralidade, consagrado no “caput” do artigo 37 da Constituição Federal como sendo aquele que deve nortear toda a Administração Pública.
O IPI, sendo um tributo translativo de propriedade, só pode ser cobrado se a operação se completar com a entrega da mercadoria ao destinatário.

Neste sentido, já se manifestou Humberto D’Avila em excelente parecer na Dialética (RDDT nº 171, dez/2009), bem como, nesta própria revista, Sacha Calmon Navarro Coelho fulminou a mesquinha inteligência que vem sendo conferida ao artigo 46 do CTN, que não honra a tradição de um Estado Democrático de Direito em busca da justiça tributária.