Edição

Um Juiz Constitucional

30 de junho de 2017

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A Revista Justiça & Cidadania alcança o número 202 com a qualidade que lhe é tradicional, apresentando a seu seleto público artigos da mais alta qualidade sobre temas atuais do direito. Em períodos conturbados como os nossos, a função cumprida pelos meios de comunicação no regime democrático é da mais elevada importância. Ao promover o debate saudável de ideias, a J&C contribui à difusão de conhecimento e à tolerância para com o outro.

Todavia, a presente edição traz aos seus leitores uma matéria em específico que lhe torna mais especial. Cuida-se do artigo de autoria do Ministro Enrique Ricardo Lewandowski, Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça de 2014 a 2017.

O Ministro Lewandowski atuou como advogado militante por dezesseis anos, participando da defi­nição dos rumos da advocacia como Conselheiro da Ordem dos Advogados da Seccional de São Paulo antes de tomar posse como juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo pelo Quinto Constitucional dos Advogados. Posteriormente, foi promovido por merecimento ao Tribunal de Justiça.

A variedade dos cargos exercidos e das carreiras trilhadas confere ao Ministro a sabedoria e a técnica características dos juristas de grande estirpe. Sua atuação qualifica a discussão sobre a interpretação constitucional quando extrai da Lei Fundamental o máximo respeito à dignidade da pessoa humana, ao princípio democrático e aos valores republicanos. Especialmente atenta à necessidade de garantir aos jurisdicionados o devido processo legal, sua jurisprudência faz-se exemplo a ser seguido no atual quadro de intolerância – em que julgamentos definitivos e apressados são feitos a partir de preconceitos e estereótipos.

Face à criminalização da política, que deturpa para empobrecer o significado de democracia, o Ministro posicionou-se com a serenidade e prudência que são esperadas de um Justice, ciente de que não há salvação para a democracia fora da política.

Há mais de dez anos na judicatura do Supremo Tribunal Federal, o Ministro relatou processos paradigmáticos, a exemplo das ações que levaram ao reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais no ensino público (ADPF no 186 e RE no 597.285), à competência do Poder Judiciário em determinar reformas nos presídios (RE no 592.581) e a proibição do nepotismo (RE no 579.951). Por proposta do Ministro Lewandowski, foi editada a Súmula Vinculante no 13, que proíbe o nepotismo em todos os Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Junto ao Tribunal Superior Eleitoral, sua atuação foi decisiva para o sucesso da Lei da Ficha Limpa.

No dia 10.9.2014, após oito anos como Ministro do Supremo Tribunal Federal, tomou posse na Presidência da mais elevada instância do Poder Judiciário nacional. Em seu discurso, soube evidenciar seu compromisso para com a celeridade da prestação jurisdicional e efetividade do texto constitucional de 1988. A prática não desmentiu o discurso: foi o Presidente do STF e do CNJ que garantiu conquistas memoráveis para a advocacia e a cidadania brasileiras, como a Súmula Vinculante da natureza alimentar dos honorários advocatícios, o escritório digital e a audiência de custódia.

Para Ricardo Lewandowski, o Século XXI simboliza a entrada na era do direito, em que cabe ao Poder Judiciário o protagonismo não apenas na resolução de conflitos interindividuais, mas sobretudo na concreção dos direitos fundamentais. A jurisprudência do Ministro comprova o potencial emancipador da jurisdição constitucional.

O compromisso inarredável do Ministro com os direitos fundamentais remete às perquirições de Ricardo Lewandowski enquanto acadêmico. Professor Titular de Teoria do Estado e Livre-Docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, seu trabalho de doutoramento na USP simbolizou uma nova fase nas investigações sobre a eficácia das normas de proteção aos direitos humanos nas ordens interna e internacional. O crescente afrouxamento dos laços de interdependência e de integração entre os Estados-Nações exige que maior reflexão sobre o futuro dos direitos humanos – e, em particular, dos mecanismos internacionais de proteção.

A preocupação de Ricardo Lewandowski com o tema dos direitos fundamentais fora apontada por seu orientador de doutorado no Largo São Francisco, o Professor Dalmo de Abreu Dallari, que lhe dispensou as merecidas palavras no prefacio de sua principal obra: “Por sua formação humanística livre de preconceitos ideológicos, enriquecida por uma experiência profissional que lhe tem permitido conhecer de perto o sentido das novas demandas sociais, Enrique Ricardo Lewandowski se coloca entre os representantes do novo pensamento jurídico”.

Pensamento esse muito bem ilustrado pela decisão que, em sede do habeas corpus no 126.107/SP, concedeu a ordem para determinar a liberação de presa grávida para cumprir a pena em domicílio. Para tanto, o Ministro valeu-se das Regras Mínimas para Mulheres Presas, aprovadas em dezembro de 2010 pela Organização das Nações Unidas, que preveem o uso de alternativas à prisão para mulheres infratoras em consideração ao “histórico de vitimização de diversas mulheres e suas responsabilidades maternas”.

Na decisão, consignou que tais regras “são inspiradas por princípios contidos em várias convenções e são dirigidas às autoridades penitenciárias e agentes de justiça criminal, incluindo os responsáveis por formular políticas públicas, legisladores, o ministério público, o judiciário e os funcionários encarregados de fiscalizar a liberdade condicional envolvidos na administração de penas não privativas de liberdade e de medidas em meio comunitário”.

Com a proficiência que lhe é típica, soube aliar dispositivos domésticos e internacionais a fim de salvaguardar as liberdades e garantias fundamentais, mormente dos menos favorecidos, em verdadeira lição aos atores refratários que resistem à aceitação das alternativas penais. O desejo de que os membros do Poder Judiciário brasileiro observem e apliquem entendimentos dos Tribunais Internacionais de Direitos Humanos era vocalizada pelo Ministro desde a posse na Presidência do Supremo.

Em tempos de desglobalização, evidenciada pela recente decisão do Reino Unido em deixar a União Europeia e pela eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, há que se mirar no exemplo de Ricardo Lewandowski. Em suas lições doutrinárias e jurisprudenciais são encontrados o liberalismo, igualitarismo e mundialismo necessários para iluminar as trevas do nacionalismo, da xenofobia e da intolerância. O artigo que abrilhanta a presente edição assim comprovará a todos que se aventurarem na leitura.