Vacinação compulsória e seus limites

5 de novembro de 2020

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Recentemente o Presidente da República declarou “que ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, embora tenha o próprio sancionado a Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, entre elas, a possibilidade de adoção de “determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas” (art. 3º, inciso III, alínea “d”).

A vacinação compulsória não é novidade da Lei nº 13.979/2020. Diversos diplomas normativos já previam a imunização compulsória e respectivas sanções. O Plano Nacional de Imunizações (PNI) foi formulado em 1973 pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de coordenar as ações de imunização que, até então, se caracterizavam pela descontinuidade, pelo caráter episódico e pela reduzida área de cobertura. A Lei nº 6.259/1975 regulamenta o PNI e faz referência à obrigatoriedade da vacinação. Em 1990 foi editada a Lei nº 8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e prevê, em seu art. 14, parágrafo primeiro, que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. O art. 249 do ECA prevê como infração administrativa o descumprimento, dolosa ou culposamente, dos deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes da tutela ou guarda, a qual poderá ser sancionada com pena de multa de três a vinte salários, aplicando-se em dobro em caso de reincidência. Posteriormente, a Portaria 597/2004 instituiu o calendário nacional de vacinação, com previsão de algumas sanções de natureza administrativa, como a impossibilidade de realização de matrícula em creches ou em instituições de ensino sem a apresentação do comprovante de vacinação.

Em que pese o indiscutível sucesso das diversas campanhas de vacinação que erradicaram doenças como a rubéola, a poliomielite, a difteria e o sarampo – que hoje ameaçam voltar a atingir os brasileiros – cresce no País o movimento contra a vacinação compulsória. Seus adeptos argumentam que o direito à liberdade individual e à proteção da família seriam violados com a imposição de tal medida pelo Poder Público e que esta intervenção teria se originado em legislação produzida durante o regime militar e refletiria a ação de um Estado autoritário e, portanto, violador de direitos consagrados na Constituição da República. Alegam ainda que existe uma fundada desconfiança sobre possíveis efeitos colaterais e eficácia das vacinas.

A matéria está na pauta do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso. O Pleno (Repercussão Geral, Tema 1103, ARE 1267879) vai dar a última palavra sobre o direito de pais e responsáveis decidirem não submeter seus filhos à vacinação compulsória ou, se agindo assim, estarão violando norma legal e sujeitos a sanções.

A ação civil pública que deu origem à discussão do Tema 1103 foi proposta contra os pais de uma criança para obrigá-los a regularizar a vacinação de seu filho. No curso do processo, os pais demonstraram que são bem informados sobre questões de saúde e sustentaram que por motivos ideológicos não vacinaram seu filho.

Segundo o ministro relator, “de um lado, tem-se o direito dos pais de dirigirem a criação dos seus filhos e a liberdade de defenderem as bandeiras ideológicas, políticas e religiosas de sua escolha. De outro lado, encontra-se o dever do Estado de proteger a saúde das crianças e da coletividade, por meio de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas, como é o caso da vacinação infantil”.

Não é de hoje que o Supremo depara-se com a matéria e via de regra reconhece a preponderância dos interesses coletivos sobre o interesse privado. A liberdade é um direito fundamental do indivíduo, garantido na Constituição da República; no entanto, a liberdade individual possui limite.

Embora a vacinação aparente ser uma decisão unicamente individual, é necessário considerar que a imunização em massa é uma importante medida de saúde pública, com contribuição inquestionável no controle e na erradicação de diversas doenças e, consequentemente, na diminuição da mortalidade e no aumento da expectativa de vida. Para que a vacinação tenha efeito coletivo, é necessário que um grande número de pessoas se vacine, até que seja atingida a chamada imunidade coletiva.

A aparente decisão individual quanto a tomar ou não uma vacina contra uma doença infectocontagiosa terá um impacto significativo no coletivo. Diante do conflito existente entre liberdade individual e saúde pública, deverá preponderar a supremacia do interesse público, cabendo ao Estado, detentor do poder de polícia, intervir e impor um limite.

É certo que tal limite jamais deve ultrapassar os umbrais administrativos de modo a alcançar a esfera penal e promover novas incriminações, como anunciam os discursos punitivistas veiculados em redes sociais ou embutidos em projetos de lei destinados a criminalizar condutas que podem ser combatidas no âmbito administrativo. Não há necessidade de se recorrer a ultima ratio, como sugere, por exemplo, o PL nº 3842/2019.

As sanções administrativas, como a possibilidade de aplicação de multa (ECA), a necessidade de apresentação de comprovação de vacinação para efeito de matrícula em creches e instituições de ensino, para alistamento militar, para recebimento de benefícios sociais concedidos pelo governo e para contratação trabalhista (Portaria 597/2004), entre outras, surtem o efeito desejado para alcançar resultados satisfatórios ao longo dos anos, como revelam dados do Ministério da Saúde.

O limite da intervenção do Direito Penal nesta seara já está definido no art. 268 do Código Penal: “Infringir determinação do Poder Público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro”. Não há qualquer justificativa plausível para a criação de novos tipos penais. Na perspectiva de um direito penal mínimo, cumpriria promover uma interpretação restritiva da norma, reduzindo seu alcance. In casu, a boa serventia do Direito Penal é a sua não aplicação.

Notas_________________________________

1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em 11/10/2020.

2 http://pni.datasus.gov.br/apresentacao.asp#:~:text=Em%201973%20foi%20formulado%20o,pela%20reduzida%20%C3%A1rea%20de%20cobertura. Acesso em 30/09/2020.

3 O Decreto nº 78.231/1976 regulamentou a Lei nº 6.259/1975, em seu art. 29, que “é dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória”.

4 https://portal.fiocruz.br/noticia/vacinas-ainda-sao-uma-das-armas-mais-eficazes-para-prevenir-doencas, acesso em 17/10/2020.

5 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44706026, acesso em 16/10/2020.

6 https://www.camara.leg.br/noticias/691091-proposta-retira-vacinacao-compulsoria-da-lista-de-medidas-de-combate-a-covid-19/#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%204506,da%20pandemia%20de%20Covid%2D19 e https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/09/o-supremo-deve-deixar-sob-a-responsabilidade-dos-pais-a-decisao-de-vacinar-seus-filhos-sim.shtml

7 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=451552&ori=1#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,%2C%20religiosas%2C%20morais%20e%20existenciais. Acesso em 11/10/2020.