Violência doméstica e de gênero

31 de janeiro de 2009

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Iniciam-se estas análises observando o alcance do significado da violência, podendo-se observar que, no seu sentido literal, trata-se de ato violento, agressivo ou constrangedor (BUENO, 2000). No sentido acadêmico, a discussão da violência associa-se à teoria do abuso com suas manifestações amplas e complexas, que incluem palavras, atitudes de ironias, desqualificações, arbitrariedades, agressões e diversas formas de exclusão social, movidas, entre outros fatores, por estigmas e preconceitos (RANGEL, 2003).
Assim, “quando se discute violência, como fator de ameaça à vida, não se pode omitir ou dispensar a discussão de estigmas e preconceitos que podem gerá-la” (RANGEL, 2003, p.67). Estigmas são fatores de preconceitos e ambos promovem e justificam discriminações e desrespeito pela condição de ser humano e ser cidadão.
Portanto, é preciso compreender, mais ampla e profundamente, as expressões do processo violento, seus fatores e seus resultados, sem limitá-los aos atos físicos, mas entendendo-os nas diversas formas de origem e construção histórica, social, econômica, política, filosófica, psicológica, existencial e cultural.
Sabe-se que a violência não se define somente no plano físico; apenas a sua visibilidade pode ser maior nesse plano. Essa observação se justifica quando se constata que violências como a ironia, a omissão e indiferença não recebem, no meio social, os mesmos limites, restrições ou punições que os atos físicos de violência. Entretanto, essas “armas” de repercussão psicológica e emocional são de efeito tão ou mais profundo que o das armas que atingem e ferem o corpo, porque as “armas brancas” da ironia ferem um valor precioso do ser humano: a auto-estima (RANGEL, 2003, p.68).
Portanto, para pensar a violência doméstica e de gênero são requeridas duas premissas essenciais: a sua compreensão ampla e contextualizada e o entendimento de que suas manifestações sociais inserem-se na análise dos diversos aspectos da dominação e da falta de princípios éticos de orientação de conduta, que influem na falta de limites.
A palavra “limites” pode estar sujeita a interpretações que a associam a cerceamento da liberdade, a controle externo (de uns sobre outros), ou à imposição de condutas. Entretanto, a compreensão ética dos limites tem um sentido mais amplo e mais essencial de parâmetros, definições, critérios, valores que orientam a vida pessoal e as relações sociais.
Os limites, decididos e assumidos por princípios éticos de conduta, traduzem os interesses de cada pessoa, afinados com os interesses sociais; esse é um dos princípios do pertencimento a um coletivo no âmbito da família e da sociedade, estabelecendo-se relações construtivas e emancipadoras.
Os limites – contornos éticos das relações – representam valores, com significativo conteúdo humano, político, existencial. Assim, é preciso e possível reafirmar a relevância dos limites para a vida pessoal e coletiva.
Os limites demarcam os espaços de liberdade individual, de modo a preservar os espaços coletivos. Os limites aproximam as pessoas em seus grupos familiares e sociais, e constituem referências de condutas que as qualificam, respeitam e compreendem em seus direitos e deveres.
Os limites favorecem a superação de interessismos auto-centrados por interesses partilhados; de individualismos solitários, por individualidades solidárias; da inconseqüência do autoritarismo, pela competência da autoridade; da inconsciência da arbitrariedade, pela consciência da liberdade.
A importância dos limites é a importância de critérios de justiça, ética, equidade, dignidade humana; é a importância da “lei” da vida e do “viver com”, de criar laços que fortaleçam os valores de cidadania e a preservação da dignidade humana, respeito à pluralidade e atitude de inclusão, preservação e realização desses valores. Com essas considerações, chega-se à análise de elementos significativos da abordagem da violência doméstica e de gênero.
Nesse âmbito de análise, é especialmente importante considerar o avanço, no sentido de proteção e segurança, proporcionado pela criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM), em janeiro de 2003, com status de Ministério. Sem dúvida, a SEPM é uma instância significativa de elaboração e execução de políticas em favor da igualdade de gênero e prevenção, assistência e combate à violência contra a mulher.
Ressalta-se, entre as várias produções da SEPM, a publicação do “Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional” (BRASIL, 2003). Os diálogos sobre violência doméstica e de gênero, que se apresentam nessa publicação da SEPM, merecem uma atenção especial, pelos subsídios que oferecem à discussão desse problema que tensiona a sociedade. A ministra Emília Fernandes ressalta que:
O fenômeno da violência de gênero, também chamada violência contra a mulher, acontece no mundo inteiro e atinge as mulheres, em todas as idades, graus de instrução, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. A violência de gênero, em seus aspectos de violência física, sexual e psicológica, é um problema que está ligado ao poder, onde de um lado impera o domínio dos homens sobre as mulheres, e de outro lado, uma ideologia dominante, que lhe dá sustentação. (FERNANDES, 2003, p. 10).
É importante lembrar que a violência doméstica é contemplada pela Constituição Federal do Brasil, no seu artigo 226, parágrafo 8º, que assume o valor e o compromisso da segurança: “O Estado assegurará a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações”.
Violência, pobreza, discriminação étnica e racial compõem o cenário do desrespeito, da desqualificação e do abuso. Sueli Carneiro assinala, fazendo referência a Ruffino, que:
A violência doméstica atinge mulheres de todas as raças, mas há um agravamento da violência doméstica quando a mulher é negra, pelo racismo que gera violências adicionais. Estatísticas americanas revelam que a taxa de homicídios para mulheres negras é de 12,3 para cada 100 mil assassinatos, enquanto que a taxa para mulheres brancas é de 2,9 para 100 mil. Mulheres negras, entre 16 e 24 anos, têm três vezes mais possibilidades de serem estupradas que mulheres brancas. (RUFFINO, apud CARNEIRO, 2003, p. 11-12).
Os dados que se apresentam no artigo de Carneiro (2003, p. 18) revelam indicadores expressivos que merecem ser destacados pelos aspectos que informam sobre as mulheres negras do Brasil. Exemplificam-se os índices apresentados pela Fundação Seade, que apontam a estimativa de vida para as mulheres brancas em 71 anos, enquanto as afro-descendentes têm essa estimativa em 50 anos.
O estudo de Carneiro informa também, entre outros dados, que, “quando empregadas, as mulheres negras ganham, em média, metade do que ganham as mulheres brancas e quatro vezes menos do que ganham os homens brancos (Ibid, p.18).
Benedito Medrado e Jorge Lyra (2003) também auxiliam a perceber a dimensão da violência doméstica, informando percentuais alarmantes:
Em diferentes países da América Latina, estudos apontam um número significativo de mulheres que afirmam terem sido vítimas de violência física exercida por seu parceiro. Em alguns países, o percentual de mulheres que afirmou ter sido agredida fisicamente por um homem chegou a 50%. O menor percentual foi de 20%. No Brasil, particularmente, um número estimado em 300.000 mulheres relataram terem sido agredidas fisicamente por seus maridos ou companheiros a cada ano. Mais da metade de todas as mulheres assassinadas no Brasil foram mortas por seus parceiros íntimos (HEISE, apud MEDRADO; LYRA, 2003, p.21).
Estudos realizados com homens também evidenciam uma situação preocupante. No Rio de Janeiro, pesquisa publicada em 2003, em que foram entrevistados 749 homens, com idade entre 15 e 60 anos, destaca que 25,4% afirmaram terem usado violência física contra a parceira, 17,2% informaram terem usado violência sexual e 38,8% afirmaram terem insultado, humilhado ou ameaçado pelo menos uma vez a parceira. Em Recife, no ano de 2002, foi aplicado um questionário a um total de 170 recrutas das Forças Armadas. Na questão “Há momentos em que mulher merece apanhar?” 25% responderam que “sim”; 18% disseram que “depende”. Além disso, 18% afirmaram que “já usaram agressão física contra uma mulher” (ACOSTA; BARKER, apud MEDRADO; LYRA, 2003, p. 21-22).
Medrado e Lyra descrevem, então, a Campanha Brasileira do Laço Branco:
Neste sentido, uma importante estratégia de ação tem sido a Campanha Brasileira do Laço Branco (www.lacobranco.org), que tem o objetivo geral de sensibilizar, envolver e mobilizar os homens no engajamento pelo fim da violência contra a mulher, em consonância com as ações dos movimentos organizados de mulheres e de outros movimentos organizados por equidade e direitos humanos, através de ações em saúde, educação, trabalho, ação social, justiça, segurança pública e direitos humanos. Mais especificamente a campanha nacional pretende:
− sensibilizar homens jovens e adultos sobre as implicações resultantes da violência cometida contra as mulheres em suas próprias vidas e a de outros homens e oferecer propostas que visem mudar suas atitudes e comportamentos frente às mulheres;
− integrar homens jovens e adultos na Campanha, transformando-os em participantes ativos e capazes de difundir as metas da mesma para outros homens;
− divulgar, da forma mais abrangente possível, a Campanha e os recursos existentes para lidar com a violência cometida por homens contra as mulheres;
− integrar formadores de opinião através da mídia, para incentivar a divulgação da Campanha;
− estimular a formação de políticas públicas nos municípios, que fortaleçam o desenvolvimento e a sustentabilidade das ações. (MEDRADO; LYRA, 2003, p. 25).
A Rede de Cidadania também é uma construção significativa em favor do enfrentamento do problema e inclui serviços e propostas como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, que têm o papel de investigar, apurar e tipificar o crime, constituindo-se numa primeira instância da busca de proteção; Corpo de Bombeiros e Unidades Móveis da Polícia Militar, que prestam o primeiro socorro às mulheres; Instituto Médico Legal – IML, onde se realiza a coleta de provas que serão necessárias ao processo judicial e condenação do agressor; o Centro de Referência, onde se fazem os encaminhamentos da Rede e o acompanhamento psicológico e social à mulher em situação de violência; os Serviços de Casas Abrigo, que oferecem, em nível sigiloso e temporário, o atendimento integral à mulher em situação de risco de vida iminente, devido à violência doméstica; as Defensorias Públicas e as Defensorias Públicas da Mulher, que oferecem assistência jurídica, orientação e encaminhamento às mulheres em situação de violência, constituindo-se em órgãos dos Estados, responsáveis pela defesa e oferecendo suporte jurídico às mulheres; o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência contra a Mulher, que se constitui em um Plano Nacional, que tem como meta a implementação da Rede, articulando os serviços, nos campos federal, estadual e municipal, como também serviços oferecidos pela sociedade civil e os movimentos sociais, particularmente os movimentos de mulheres e feministas.
Ainda, como parte integrante dessa rede de auxílio, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM está implantando um sistema de Ouvidoria, que tem como objetivo incentivar e apoiar a participação da mulher, consciente de seus direitos, constituindo-se em mais uma instância de enfrentamento de arbitrariedades e violência doméstica e de gênero.
Para que o enfrentamento da violência seja efetivo é necessário que essa extensa Rede de Cidadania funcione articulada e com apoio do Estado e da sociedade, e que, a cada dia, outros setores e organizações a ela se incorporem, fazendo do enfrentamento da violência contra as mulheres um dos centros de suas políticas e ações.
Para a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM, o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher é meta prioritária, e todos os esforços e recursos serão mobilizados para que esta Rede se estruture adequadamente e acolha as mulheres em situação de violência, dando a elas todo o suporte necessário (BRASIL, Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2003, p. 51-53).
Considerações finais
A publicação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SEPM sobre o Programa de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher – Plano Nacional (BRASIL, 2003) apresenta dados de significativa relevância para a compreensão do alcance e complexidade do problema e informa também as iniciativas e instâncias de proteção, oferecendo subsídios que enfatizam o reconhecimento da importância da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Por suas definições e alcance, ressalta-se a importância da Lei nº 11.340, 2006, pela criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, e pelas suas disposições sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Observam-se também os avanços na alteração do Código de Processo Penal, do Código Penal e da Lei de Execução Penal.
A Lei considera como formas de violência as que se apontam no capítulo II, artigo 7º, incisos de I a V: violência física, violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial, violência moral. Essa compreensão ampla favorece, significativamente, o entendimento da extensão e variedade de abusos domésticos e de gênero.
Sem dúvida, acredita-se que, tanto os estudos e pesquisas de gênero, como os estudos, publicações e ações da SEPM, como a Lei nº 11.340 de 7 de agosto de 2006, representem marcos significativos na compreensão e realizações em favor do enfrentamento de uma situação que afeta, sobretudo, direitos de cidadania e de dignidade humana.
Além dos postulados legais, é importante que se consi-derem aspectos da cultura e da psicologia social referentes à formação de preconceitos e estigmas que circulam na sociedade, provocando e naturalizando discriminações e processos de exclusão, que atingem as pessoas “classificadas”, por essas matrizes excludentes, como “menores” e “piores”.
Paulo Freire (1999) discute, com muita propriedade, as categorias de “ser mais” e “ser menos”, que justificam a dominação e as arbitrariedades. Essas categorias são, sobretudo, justificadoras da violência, da desqualificação, da opressão.
Uma sociedade inclusiva é aquela na qual as diferenças são respeitadas e acolhidas, de modo que não se transformem em desigualdades.
Finalizam-se essas considerações reafirmando-se que o movimento atual em favor do respeito à diversidade e suas ações, no plano legal e social, representam uma mobilização relevante em favor da dignidade humana e da cidadania. A Lei nº 11.340, de agosto de 2006, é parte significativa desse movimento.