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A aponsentadoria compulsória à luz de alguns princípios constitucionais

31 de dezembro de 2005

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É manifesta a incompatibilidade da prescrição normativa contida no art. 93, inciso VI, c/c o art. 40, § 1º, inciso II, da Carta Cidadã de 1988, com alguns dos princípios fundamentais em que se assenta a República Federativa do Brasil. O que chamamos de incompatibilidade, difere do que entendemos por inconstitucionalidade formal. O inconstitucional é exógeno, enquanto a incompatibilidade é uma incongruência endógena, inserta na estrutura ôntica do texto constitucional. Ela pode ser sutilmente inconspícua, quase inaparente, pouco discernível ou flagrante e absurda, como a que determina a aposentadoria compulsória do magistrado aos setenta anos de idade, incompatível com os princípios da isonomia, da dignidade da pessoa humana, da impessoalidade e do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais estabelecidas pela lei.

O Poder Constituinte de 1988, ao instituir o Estado brasileiro, como organização político-jurídica soberana, incumbido de buscar a consecução do bem comum, objetivo-síntese de todo e qualquer país civilizado, prescreveu, no artigo 1º da nossa Carta Magna: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:

a soberania;

a cidadania;

a dignidade da pessoa humana;

os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

o pluralismo político”.

No seu art. 3º, expressamente dispõe:

“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

No capítulo dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, precisamente no caput do seu art. 5º, diz in verbis:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, inscrevendo, no inciso XII, ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais legalmente estabelecidas”

A transgênica e preconceituosa norma, além de se incompatibilizar, de forma nada sutil e habilmente casuística, com alguns dos princípios nucleares da Carta Política em vigor, opera em flagrante dissenso com os princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, pondo em dúvida o próprio Estado Democrático de Direito, por estabelecer tratamento desigual e discriminatório, em favor de agentes políticos de dois dos três poderes da República, sob alguns aspectos e em determinadas situações.

O problema “é delicado, antes de tudo político, independentemente de ser antidemocrático e antiideológico”, como afirma o juiz alagoano Manoel Hermes de Lima, ao examinar, de modo semelhante, o casuísmo da norma inserta no art. 94 da mencionada Constituição, em artigo publicado na Edição Especial do 7º Aniversário da Revista IN VERBIS.

A norma em comento não só fere direitos fundamentais do cidadão, como preceito administrativo indispensável à governabilidade do Estado. Refiro-me ao princípio da impessoalidade, que não admite a individualização de pessoas, instituições e entidades. Sobre tal princípio, Celso Antônio Bandeira de Melo, às páginas 68, do seu Curso de Direito Administrativo, preleciona:

“Nele se traduz a idéia de que a administração tem que tratar a todos os administradores sem discriminação, benéficas ou detrimentosas. Nenhum favoritismo nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, facções ou grupos de qualquer espécie. O princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia”.

Agride, igualmente, o princípio do controle de economicidade, que consoante o sempre abalizado magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, envolve também questão de mérito, pela necessidade de se verificar se o gestor público, ao realizar as despesas de que estava encarregado, procedeu de forma mais econômica e vantajosa.

Com a aposentadoria compulsória de um magistrado maduro e experiente, jogado ao olvido e à inatividade, quando ainda se encontra prestante e na plenitude de seu ofício e de sua capacidade pessoal, seríssimo e irreparável prejuízo funcional e econômico é causado ao Estado, que se vê na contingência de dobrar as suas despesas, pagando ao substituído, que continua ganhando, e a quem o substituir para que a sua inafastável função jurisdicional não venha a sofrer solução de continuidade.

O ministro Nelson Jobim, do STF, após cuidadoso e percuciente estudo, chegou à conclusão de que, com a elevação da aposentadoria compulsória para os 75 anos, o Estado brasileiro, só no âmbito do Poder Judiciário, com magistrados, economizaria sete milhões de reais.

Por ocasião de audiência pública de que participou, recentemente, na Comissão de Constituição e Justiça na Câmara dos Deputados, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, defendeu, com fundamento em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, da Organização das Nações Unidas, e em argumento de ordem econômica, a dilatação da aposentadoria compulsória não só para magistrados, mas para todos os servidores públicos, civis e militares, afiançando: “com a ampliação do limite de idade para aposentaria de todos os servidores estaremos reduzindo as verbas de custeio, especialmente aquelas que dizem respeito à Previdência Social, hoje um dos fatores da falência do Estado”.

Analisando, com idéia de conjunto, o conteúdo do aludido texto constitucional, somos forçados a reconhecer, que a aposentadoria compulsória do magistrado só tem uma finalidade: servir a interesses restritos, arvorando-se na falácia bem constituída de um dispositivo com preceito político social-democrático, multiplicador mitogênico das oportunidades de participação do cidadão nos altos cargos públicos.

Repete-se no gesto do poder constituinte originário de 1988, responsável pela criação da nossa atual configuração político-jurídica estatal, os mesmos vezos da Assembléia Nacional Constituinte de 1937, que creditou como atos políticos, insuscetíveis de apreciação judicial, ligados aos interesses superiores do país, verdadeiras “pústulas legais”, frontalmente lesivas aos direitos individuais e coletivos dos cidadãos. Hoje, graças ao progresso alcançado, já se pacificou o entendimento de que, até mesmo os atos exclusivamente políticos, capazes de afetar direitos fundamentais do ser humano, podem e devem se submeter ao crivo da atividade jurisdicional.

Pode ser que a pragmática do governo veja na vigência da supracitada norma, algo de conteúdo democrático, por multiplicar as oportunidades de participação do cidadão na vida nacional. Todavia, restam sem respostas inquietadores questionamentos. Primeiro, como compatibilizar os valores supremos de uma sociedade justa, fraterna e pluralista, preocupada em preservar a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos, sem  distinção de qualquer natureza, o livre exercício do trabalho, ofício ou profissão com que se comprometeu de forma geral e abstrata o constituinte brasileiro de 1988, quando um dispositivo constitucional alienígena à propositura das exortações preambulares que, antes de tudo, visa a assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais, estabelece a rigidez compulsória para afastar do trabalho uma categoria de agente político, em seu nível, só encontrada em um dos três poderes do Estado? Por que só os agentes políticos do Judiciário? Os do legislativo não entram. Os do executivo nem se fala. Não seria, portanto, um flagrante desrespeito aos artigos 1º, inciso III, 3º, inciso IV e 5º, da referenciada Carta Política, que buscam preservar a dignidade da pessoa humana, a igualdade de todos perante a lei e promover o bem-estar dos nossos patrícios, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação? Segundo, que dizermos da legitimidade de um imperativo constitucional solitário e incongruente, em nada coadunável com a quase totalidade dos princípios constitucionais?

Enfrentando a questão, o professor Ivo Dantas, com a sua inquestionável autoridade, ensina: “Os princípios fundamentais irradiam seu conteúdo sobre a Constituição, como um todo”, enfatizando: “os princípios fundamentais existentes, nos mais recentes documentos constitucionais, implicam que toda interpretação constitucional terá que levar em conta o seu conteúdo. Em outras palavras, só uma interpretação que veja a Constituição como um sistema de princípios e normas, compreenderá o verdadeiro sentido do texto”. A conjunto significativo e não conjunção de vigência simultânea: implica coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; projeta-se em sistema; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor, projeta-se ou introduz em princípios, logicamente anteriores aos preceitos”.

O já reiteradamente citado preceito constitucional, no meu sentir, discrimina o Poder Judiciário, pondo os seus agentes políticos no Leito de Procusto, esticando os pequenos com uma corrente e cortando as pernas dos maiores, para adequá-los ao exato tamanho da cama.

O que pretendemos fazer ver, mesmo de forma superficial é que, ao contrário do que muitos imaginam, não é a colisão dos fatores exógenos contra os consagrados princípios constitucionais, o fantasma que mais ameaça a integridade dos direitos fundamentais dos cidadãos, mas a defectibilidade endógena daquilo que foi deixado, casuística ou desavisadamente, pelo legislador constituinte. O quisto representado pelo artigo 93, inciso IV, c/c o art. 40, § 1º, inciso II, da citada Carta Política, que torna compulsória a aposentadoria do magistrado aos setenta anos de idade, deve ser extirpado para sempre, a fim de que a licitude e a moralidade dos princípios constitucionais, ajudem a cumprir o destino deste País continente e do seu sofrido, mas valoroso e aguerrido povo.

Por outro lado e como é de sabença geral, a expectativa de vida do brasileiro aumentou significativamente nestes últimos anos. Alterou-se, também, de forma substancial e facilmente perceptível, o nosso perfil populacional. Esses fatos, logicamente, ganham consistência com o fenômeno da desordenada urbanização e com a formação de uma nova classe média que, tendo melhores condições educacionais e de trabalho, vem se beneficiando do desenvolvimento econômico e social alcançado pelo nosso País, nestas últimas décadas.

A Constituição Federal, pelo visto, ainda não assimilou, totalmente, tais mudanças demográficas, pois continua, inexplicável e incongruentemente, proibindo que um servidor qualificado possa exercer a sua ingente e nem sempre compreendida missão de julgar, pelo simples fato de haver completado setenta anos de idade. As nossas três últimas Constituições, como se sabe, fixaram em setenta anos a aposentadoria compulsória, ampliando, assim, em dois ano,s a idade limite instituída pelas de 1934 e 1937.

Ocorre, porém, que nos negócios privados ou nas atividades político-partidárias, o mesmo não se verifica. Empresários, intelectuais, juristas e políticos continuam desempenhando normal e proficientemente as suas funções após os setenta anos de idade, sem que isso se constitua em qualquer obstáculo ou dificuldade ao pleno exercício das suas pertinentes atividades.

Com certeza, onde a sociedade e o Estado mais teriam a ganhar se alargássemos o limite de idade para a aposentadoria daquele que quisesse permanecer no serviço público, por satisfação pessoal, seria na magistratura, pois a árdua função jurisdicional não exige, apenas, aprofundado conhecimento jurídico, mas experiência e bom senso inerentes às pessoas provectas, curtidas e calejadas nos embates da vida, pois sabemos que a letra inerme da lei, nem sempre é suficiente à prolação de justas e coerentes decisões.