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A polícia judiciária e a redução da criminalidade no sistema de justiça criminal

20 de setembro de 2016

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Fernando VelosoA redução nos índices de criminalidade é uma meta permanente na pauta das políticas públicas, assim como um anseio perene de qualquer população.

Na definição das metodologias e estratégias voltadas ao alcance das metas de redução de criminalidade, não raro, observamos um grande enfoque, quando não uma limitação, exclusivamente focada nos programas políticos-criminais de policiamento ostensivo/preventivo. De certo, que a disposição de viaturas e o patrulhamento de policiais fardados nas ruas provocam uma sensação individual de segurança ao cidadão. Trata-se de uma construção mental de conforto. Deve-se, entretanto, frisar que esse estado de tranquilidade psíquico nem sempre se traduzirá na conquista objetiva de ordem, paz, redução de impunidade e aprimoramento da segurança pública.

De se ver que as políticas criminais de cunho ostensivo de per si não resolvem a questão sistêmica da delinquência funcional, nem tampouco neutralizam perenemente os saqueadores do domínio público através do cárcere. Isso porque o policiamento ostensivo opera como uma espécie de coeficiente de inibição da delinquência local, apostando na probabilidade do desestímulo ao desvio, exercido sobre a pessoa do criminoso ante a presença da força policial. Quando muito, o criminoso é surpreendido in ipso actu maleficii e conduzido à Delegacia de Polícia Civil/Federal para a análise jurídica do fato pelo Delegado de Polícia, que lavrará ou não, em decisão motivada, a prisão em flagrante delito do conduzido, privando-o de sua liberdade em caráter provisório.

A expressão “caráter provisório” se impõe, porque, não obstante o esforço analítico-interpretativo do Delegado de Polícia em razão da primeira intervenção punitiva do Estado na esfera de liberdade do cidadão rebelde ao direito penal, com a nova sistemática introduzida pela Lei no 12.403/2011, parte da doutrina processual, por todos Aury Lopes Jr., passou a sustentar a natureza pré-cautelar da prisão em flagrante. Seria a prisão em flagrante um prelúdio a uma medida cautelar.

Nesse sentido ora exposto, ninguém poderá continuar preso em estado flagrancial indefinidamente, senão pelo tempo necessário à apreciação do fato punível pelo magistrado.

De mais a mais, com a implementação das audiências de custódia, nas quais o preso é impreterivelmente conduzido no prazo de vinte e quatro horas à presença de um juiz de direito, resta ainda mais acentuado o caráter de precariedade da prisão em flagrante. Não será demasiado afirmar, que o infrator detido na véspera pela prática do injusto penal poderá, transcorrido menos de um dia, fazer uma escolha por retornar ao universo do crime despertando alarido social ante a sensação de impunidade.

Nessa toada, nos parece ser estreme de dúvidas que discutir a pauta da segurança pública e a redução de criminalidade em uma perspectiva lógica de puro policiamento ostensivo converter-se-á em produzir estatísticas de política criminal simbólicas, ilustradas por números de intervenções policiais jamais traduzidos em números de redução de índices de criminalidade. Explicando o paradoxo, os dados sempre conduzirão a uma aparente ausência de correlação entre o trabalho policial e o seu impacto na redução da criminalidade.

O enfretamento da criminalidade através de políticas de policiamento preventivo, desacompanhadas da investigação e elucidação de delitos pela polícia judiciária repressiva, jamais acarretará sozinho uma redução estrutural (real) da violência. Desacompanhado do trabalho das Polícias Judiciárias o patrulhamento da Polícia Militar mesmo com toda a sua infraestrutura (efetivo de policiais, cavalos, viaturas, blindados, helicópteros, Upps, etc), não inibirá a criminalidade, correndo o risco de apenas rearranjá-la no espaço. Acabar-se-á empurrando o vulto dos criminosos através de deslocamentos e migrações para outras regiões menos favorecidas pelo aparato policial, o que consistiria em uma política alegórica de enfrentamento.

Não nos custa reforçar a ideia, mesmo sob risco de cometer o pecado da redundância. Nas hipóteses de captura e posterior documentação da prisão em flagrante delito mesmo daqueles delinquentes desenfreados, que ignoram o fator inibitório decor­rente do policiamento ostensivo, a durabilidade da prisão em flagrante e de sua segregação social, com a implementação das audiências de custódia, poderá não ultrapassar o prazo de vinte e quatro horas.

Conclusão: à vista das premissas acima estabel­e­­cidas, a capacidade de controle da criminalidade e delinquência social por meio de políticas criminais que priorizem o policiamento ostensivo será contraproducente. Ou apenas redistribuirá a criminalidade no território, tal qual um esfregão ineficiente, que mais espalha água que enxuga, ou, capturando-se o criminoso durante ou logo após a prática da infração penal, em grande parte dos casos observá-lo-á ter a sua liberdade restituída em um espaço brevíssimo de tempo.

Considerando-se agora o argumento do fator econômico do policiamento ostensivo, constata-se que, para conferir-se uma aparência de segurança, gastam-se enormes somas de recursos, que poderiam ser aproveitadas de forma mais eficiente com outras medidas. (A título de ilustração foi noticiada na data de 3/7/2015 a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Ministério Público, que obrigava o Governo do Estado do Rio de Janeiro a investir R$ 4 bilhões em UPPs, sendo R$ 1 bilhão entre 2016 e 2018.)

Destacado e negritado o fato de a adoção de uma política criminal pautada exclusivamente no policiamento ostensivo não se mostrar a melhor escolha para que se chegue a uma eficiente redução dos índices de criminalidade, resta analisar o problema do controle da criminalidade sob o prisma do policiamento repressivo, que priorize ações de coordenação de inteligência e investigação.

Não seria exagero algum afirmar que a população assiste atualmente a uma luta das forças de segurança pública contra a escalada da criminalidade. Nesse escopo, se o Estado relegar a um segundo plano as mais modernas e eficazes armas para a construção de uma política criminal eficiente falhará na missão constitucional de garantir o direito fundamental à segurança pública. Que armas seriam essas e operadas por quem?

Não estamos falando, por óbvio, de armas de fogo, instrumentos de letalidade violenta, carros blindados, helicópteros, etc, mas de papel, caneta e atividade intelectual. Não existe instrumento atual mais capaz de controlar a criminalidade que as prisões cautelares, que apresentam a “garantia da perenidade”, concedidas pelo Poder Judiciário em decorrência de representações formuladas por Delegados de Polícia através do esforço da investigação policial, na qual já se encontra assegurada a participação de advogados.

É precisamente o traço da durabilidade da medida cautelar que a transforma em um instrumento eficiente para a garantia da ordem pública, econômica e para a redução da criminalidade. A partir de ações de polícia judiciária, estudadas, planejadas e pensadas é que efetivamente se alcançará a neutralização do(s) criminoso(s) e o decréscimo da probabilidade de novas reiterações criminosas. Saliente-se ainda que, por terem as ações decorrentes de investigações planejamento prévio, minimizados acabam por ser os riscos de danos colaterais à sociedade na sua concretização.

Segundo Romeu Pires de Campos Barros as medidas cautelares podem ser classificadas em: 1) cautelas pessoais: prisões cautelares; 2) cautelas patrimoniais: arresto, sequestro, busca e apreensão, apreensão de coisas e hipoteca legal; 3) cautelas referentes aos meios de prova: depoimento ad perpetuam rei memoriam ou produção antecipada de prova, exame de corpo de delito, perícia complementar, exame do local do crime etc. (PIRES DE CAMPOS BARROS, Romeu. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense)

Pois bem, é justamente sobre as duas primeiras classificações – cautelares pessoais e reais – que vislumbramos os meios mais eficientes de conter o avanço das práticas criminosas, estabilizar a segurança pública e reduzir os índices de delinquência. Diferentemente da prisão em flagrante delito, ápice do trabalho do policiamento ostensivo, que é marcada pela precariedade da custódia, as medidas cautelares são instrumentos judiciais com o vínculo da durabilidade e permanência, que verdadeiramente promovem o afastamento dos infratores de suas empresas criminosas, desarticulando máquinas do crime, e, consequentemente, concretizando o Direito Fundamental à segurança pública e proteção estatal do cidadão diante do abuso de outros. Estar-se-á a bater de punho fechado no ponto sensível da impunidade, qual seja, afastar-se a permanência dos criminosos recorrentes e praticantes dos delitos de maior gravidade das ruas, sem tampouco que se olvide um prévio e pleno controle judicial. Controle e colaboração na busca da verdade dos fatos ainda aprimorada pela louvável ampliação da participação do advogado na fase pré-processual, introduzida pela Lei 13.245 de 12 de janeiro de 2016, que alterou a redação do Estatuto da OAB.

As cautelas patrimoniais são dirigidas, sobretudo, para subsidiar a atividade dos órgãos de polícia judiciária no enfrentamento das associações criminosas, verdadeiros cartéis com estruturas profissionais (negócios empresariais), com influência na política, na mídia, na administração pública, etc., que praticam os mais variados crimes tributários, econômico-financeiros, lavagem de capitais, corrupção, tráfico de drogas, armas, rufianismo e tráfico de pessoas, etc.

Como combater essa crescente criminalidade econômico-corporativa manejada por pessoas altamente qualificadas e instruídas, que se vale de notas de cem reais como armas, em vez de fuzis e pistolas, para praticar desvios de recursos públicos? Como assegurar a confiança da sociedade na integridade moral da economia de mercado, que reflete e flui diretamente na questão da segurança pública? Através do patrulhamento nas ruas?

A resposta a essas indagações, necessariamente, passa por um conjunto de políticas internas de controle formal e fiscalização, entretanto, a pedra de toque não pode deixar de ser uma política criminal responsável, que também prestigie o policiamento repressivo, privilegiando o investimento em capacitação, técnicas de investigação, e estruturação para as Polícias Judiciárias. São as investigações bem conduzidas que desaguam na descoberta da justa causa madura para a promoção de medidas cautelares pessoais e patrimoniais. São medidas cautelares que fraturam a criminalidade recorrente, a criminalidade de maior gravidade, assim como o capital multiplicado das associações criminosas, interrompendo a continuidade de suas ações delitivas. Para o crime organizado sangra-se no bolso como forma de se neutralizar toda a contabilidade, administração e capital de giro financeiro. Não existe instrumento mais afiado de persecução penal que as medidas cautelares operadas pelas Polícias Judiciárias para tal propósito.

Em uma realidade de audiências de custódia que asseguram a boa parcela dos infratores o direito de responderem em liberdade à persecução penal, as medidas cautelares pessoais, traduzidas nas prisões temporária e preventiva, revelam-se instrumentos cada vez mais imprescindíveis para concretizar o direito fundamental à segurança pública e o rechaço da impunidade, pela manutenção da segregação dos criminosos contumazes e/ou responsáveis pela prática de delitos de maior gravidade.

Pois bem, após esforço analítico-penal da prisão em flagrante, ou da investigação em curso, o Delegado de polícia deve tomar uma “decisão de prognose policial”: representar ou não pela prisão cautelar. Com efeito, respeitados os requisitos e fundamentos de cabimento da prisão preventiva previstos no art. 312 c/c art. 313 do Código de Processo Penal, a decretação dessa medida em contraste com a efemeridade da prisão decorrente do flagrante, representa a mais alta proteção jurídica ao processo penal e à vítima, no sentido da neutralização em caráter perene do infrator, que não voltará ao espaço público brevemente para continuar as suas ações criminosas. Isso sim reflete na diminuição nos índices de criminalidade. Novamente: papel, caneta e atividade intelectual da Polícia Judiciária como ferramentas de contenção e redução dos números de delinquência.

Saliente-se que as investigações conduzidas pelas Polícias Judiciárias, via de regra, iniciam-se por registros de ocorrência, dos quais, no ano de 2015 na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, 84% foram principiados por notitia criminis ofertadas pela população. Tais dados reforçam a importância de estímulos a políticas que reduzam a subnotificação de ocorrências, assim como de investimentos na confecção de registros de ocorrência com a melhor qualidade possível, uma vez que servirão de subsídio às investigações e também ao planejamento adequado para a distribuição do policiamento ostensivo pela Polícia Militar. Por tal razão projetos como a “Delegacia on Line”, o “Portal de Transparência”, etc. assim como a manutenção e uma ampliação de investimentos em T.I. mostram-se essenciais por viabilizarem um incremento na atividade investigativa.

Oportuno também ressaltar, que os reflexos sentidos na queda dos índices de criminalidade acentuam-se, sobretudo, diante do efeito didático da prisão dos líderes e chefes de associações criminosas. Tal qual uma colmeia de abelhas, a estrutura hierárquica e verticalizada do comando das quadrilhas perde-se e divide-se. Fato. Nesse ponto, não se trata como antes de um desfrute de uma sensação psíquica de estado de paz do cidadão, mas de redução objetiva e real de criminalidade/impunidade, e aumento de bem-estar social a partir de ações de polícia judiciária.

A título de ilustração, vale destacar através de números, o implacável trabalho desenvolvido pela Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Somente no segundo semestre do ano de 2015, exemplificativamente, foram realizadas 2.401 representações por mandado de prisão. Trata-se do afastamento do convívio social em caráter perene de mais de dois mil e quatrocentos possíveis delinquentes de maior gravidade. Sobreleva ainda notar que, no referido semestre, foram indiciadas (imputados formalmente pela prática de infrações penais) 8.453 pessoas ligadas a atividades criminosas. Por fim, foram relatados 29.822 inquéritos policiais com êxito. São números realmente muito expressivos, que revelam uma saída eficiente para a problemática questão do controle da criminalidade. Ao revés de se privilegiar o que se vê, as folhas de uma árvore, prioriza-se o que a visão não alcança, mas que nutre todo o sistema, a raiz.

Em linhas de conclusão fiquemos com as sábias palavras proferidas no dia 19/6/2015 pela Exma. Sra. Secretária Nacional de Segurança Pública, Dra. Regina Miki, no Encontro Nacional de Presidentes e Representantes de Entidades de Classe de Delegados de Polícia, em Natal/RN. In verbis: “Enquanto Secretária Nacional estarei à disposição da Polícia Judiciária. Defenderei essa Polícia porque não vejo outra alternativa para a quebra da impunidade se não com o fortalecimento da Polícia Judiciária na investigação.”