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Defesa Legal das Ações Afirmativas

31 de maio de 2007

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Considerações Gerais

Intuitiva é a noção de que o ser humano não se basta por si próprio.

O fenômeno gregário é característico da espécie humana, e, sendo assim, a sociedade, como é do conhecimento das ciências jurídico-sociais, surge simultaneamente com a norma, com a regra de conduta, consubstanciada em norma de direito, tanto que se afirma ubi societas, ibi jus; ubi jus, ibi societas (onde há sociedade, há direito; onde há direito, há sociedade).

A regra de direito, por sua vez, deriva de consenso de aceitação de valores admitidos como necessários para a existência social, valores estes que resultam da criação humana, ou seja, são valores culturais.

Como valores culturais, não são perenes e, também, não são universais. Valem para uma determinada sociedade, em uma determinada época, podendo sofrer mutação e até mesmo serem revogados, seja pelo desuso, seja pela substituição por outros que se mostrem consentâneos com os anseios daquela sociedade.

O vocábulo direito comporta diversas acepções, todas elas, contudo, gravitando em torno de uma mesma idéia comum, a de retidão, de retitude, de ser reto, escorreito. Trata-se de um vocábulo análogo, que tem diversos sentidos, todos eles relacionados à idéia central de correção, de retidão.

Dessa forma, pode-se falar em direito como conjunto de regras impostas ao corpo social para observância geral e compulsória, com o escopo de expressar e alcançar um ideal de justiça, como também pode-se falar em direito como prerrogativa de alguém em face de outrem, sendo que seu reverso é a obrigação daquele que se põe em face de quem ostenta a prerrogativa. E, por isso, já se dizia  jus et obligatio, sunt correlata (direito e obrigação são correlatos), ou, para melhor compreensão, a todo direito corresponde uma obrigação.

Ainda se pode falar em direito, em suas especializações,
como direito constitucional, direito civil, direito penal, bem como em especificações institucionais, como em direito a alimentos, direito de visitas, direito de propriedade, direito à honra, direito à educação.

A sabedoria popular, derivada de arguta observação, expressa o conceito do vocábulo direito, no dizer simples e direto do comum das pessoas, como sendo: “direito é aquilo que não é torto”.

Para a geometria, ciência exata, diz-se que reta é a menor distância entre dois pontos.

A teoria da relatividade de Einstein veio demonstrar que a linha reta, contudo, nos confins do Universo, torna-se uma elipse.

Dessa forma, uma reta não seria assim absolutamente retilínea, senão que, no plano maior do Universo, comporia parte de uma elipse.

Estas digressões são aqui feitas para realçar que, se mesmo na rigidez das ciências exatas, há relativismo, o que dizer, então, em relação às normas de direito, pois na seara das ciências culturais, de que as ciências jurídicas e sociais são delas representativas, porque os conceitos que as norteiam são frutos da criação humana, suscetíveis a balizamentos de tempo e de espaço, tanto que, uma regra jurídica vigente em determinada época, em um mesmo país, pode tornar-se obsoleta e pode ser revogada; e, da mesma forma, conduta ou comportamento proscritos em determinada sociedade, podem em sociedades vizinhas, numa mesma quadra temporal, serem perfeitamente admissíveis.

Com estas considerações, o que se pretende realçar é a relevância da interpretação da norma de direito.

Igualdade como direito fundamental

A igualdade como direito fundamental é um dos pilares do constitucionalismo moderno, estando intrinsecamente vinculada à idéia de liberdade.

No dizer de John Rawls: “Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com o sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (in “Uma Teoria da Justiça”, 2002, Ed. Martins Fontes, São Paulo, pág.64).

No sentir de Norberto Bobbio, “os dois valores, liberdade e igualdade se enraízam na consideração do homem como pessoa humana, como ser que se distingue ou pretende se distinguir de todos os outros seres vivos. Liberdade indica um estado: igualdade, uma relação. O homem como pessoa deve ser, enquanto indivíduo em sua singularidade, livre; enquanto ser social, deve estar com os demais indivíduos em uma relação de igualdade” (in “Igualdade e Liberdade”, Ediouro, Rio de Janeiro, 2000, 4a ed., pág.7).

A acepção, em sentido comum, dos vocábulos igualdade e liberdade, isoladamente considerados e relacionados à pessoa humana, enquanto indivíduo, não acarreta maior dificuldade, pois, em uma consideração singela, diz-se igualdade quando não constata diferenças, estando presente a noção de uniformidade; diz-se liberdade quando se relaciona a conduta ou comportamento isento de peias, restrições, amarras ou grilhões.

Este significado comum e singelo, decorrente de mera interpretação literal, não possibilita adequada compreensão do fenômeno sócio-jurídico da convivência social, na qual seres humanos são atores e coadjuvantes no palco da sociedade, atuando segundo as regras de conduta que, ao mesmo tempo em que lhes asseguram o uso e fruição dos direitos, também estabelecem limites para que o exercício regular não se converta em abuso ou mal uso.

A igualdade comporta três angulações que devem ser consideradas para sua adequada interpretação, em visão tridimensional, todas centradas no eixo do respeito à dignidade humana.

A igualdade formal, que pode ser resumida no enunciado “todos são iguais perante a lei” e que corresponde ao enfoque linear, abolindo-se privilégios e castas; a igualdade material, que corresponde ao ideal de justiça social e distributiva, fundamentando a igualdade pelo critério socioeconômico; e, a igualdade substancial, correspondendo ao ideal de justiça com o reconhecimento da diversidade de identificação individual relacionados à gênero, raça, etnia, orientação religiosa ou orientação sexual, entre outros critérios.

Sob estes enfoques, ao reverso do reconhecimento do direito à igualdade, há o correspondente reconhecimento do direito à diversidade que, também como direito fundamental, integra o patrimônio de direitos individuais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, introduz a chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, cujos marcos referenciais são a universalidade e a indivisibilidade desses direitos, de modo que eles tenham extensão abrangente e universal, bastando tão só a condição de pessoa para que se preencha o requisito de obtenção de sua titularidade e, ademais, não se podendo dissociar dos direitos civis e políticos a que faz jus à pessoa os direitos econômicos, sociais e culturais.

Na evolução desta concepção contemporânea, assim inaugurada, lembramo-nos de Allan Rosas, para quem “o conceito de direitos humanos é sempre progressivo…O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente” (apud Piovesan Flávia, in Cadernos de Pesquisa, v.35, n.124. abril 2005), e, nessa esteira, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela ONU, em 1965, foi ratificada por 167 Estados e, dentre estes, o Brasil, em 1968.

O artigo 1° desta Convenção define a discriminação racial como: “…qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade dos direitos humanos e liberdades fundamentais”.

A discriminação significa sempre desigualdade, ocorrendo quando se tratam iguais em situações diferentes, e como diferentes, em situações iguais.

Daí a adequada interpretação isonômica da igualdade: deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam.

Nas palavras de Rui Barbosa: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade cultural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Tratar desigualmente os iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade aparente, e não igualdade real” (in “Oração aos Moços”, Ediouro, Rio de Janeiro, 18ª ed. 2001, pág.55).

Postos assim o binômio igualdade e diversidade como inerentes à condição dos participantes do pacto social, por meio do qual edificou-se o universo social, não nos devemos olvidar que o próprio vocábulo universo, etimologicamente, é composto das idéias de unidade e diversidade (“uni”+“versum”=“universum”) e, sendo assim, no núcleo do conceito “sociedade” há de se considerar-se a figura do “eu” como um e do “outro” como o diverso, todos, contudo, integrantes da grei.

Sendo assim, é de se indagar de que modo pode a discriminação, tal como enunciada na Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ser enfrentada e combatida?

Flávia Piovesan, em elucidativo estudo publicado nos Cadernos de Pesquisa, vol.35, jan/abril 2005, com o titulo “Ações Afirmativas – Da Perspectiva dos Direitos Humanos”, bem focaliza a questão ao estatuir que, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacam-se duas estratégias para se enfrentar a problemática da discriminação: pela via repressiva punitiva, cujo objetivo é coibir a discrimina-ção pela imposição de pena, e pela via promocional, por meio
da qual há de se promover, fomentar e dar avanço à igualdade.

Estas estratégias merecem simultânea oportunidade de aplicação, pois não basta apenas proibir ou reprimir a discriminação, pena de imposição de medida punitiva. Necessário se faz que, ao lado da repressão legal, políticas promocionais de inserção e inclusão de grupos discriminados sejam promovidas.

Estas estratégias promocionais hão de levar em conside-ração sua natureza compensatória, a fim que no espaço de tempo de algumas gerações, possa-se apurar a igualdade/desigualdade dos grupos até então não inseridos.

Ao mesmo tempo, as ações afirmativas preenchem os anseios democráticos da sociedade, porquanto aliada à participação política, sem dúvida, essencial para a consoli-dação do projeto societário, na igualdade substancial repousa, em última análise, a finalidade do Estado que deve velar pelo progresso e bem estar da população.

As ações afirmativas constituem-se, assim, verdadeiros instrumentos de inclusão social, porque, sendo medidas concretas, viabilizam o direito à igualdade, caracterizada pelo respeito à diferença e à diversidade.

São medidas de conteúdo concreto, eficaz e imediato que viabilizam o direito de reconhecimento da diversidade, corolário que é da igualdade.

Na sugestiva dicção de Piovesan, por meio das ações afirmativas transita-se da igualdade formal para a igualdade material e substancial.

A adoção das ações afirmativas, como instrumentos para a obtenção do equilíbrio das diversidades, permite a visão tridimensional do preceito do respeito à dignidade humana.

O fundamento para a adoção imediata das ações afirmativas reside na necessidade de acelerar-se o processo de inclusão de grupos excluídos da igualdade material e substancial devido à força latente da herança cultural atávica, caracterizada por séculos de exacerbada opressão de grupos étnico-raciais, diferenciados principalmente pela cor da epiderme, de modo a excluí-los do acesso aos bens da vida, bem como a qualquer meio de obtenção de escolaridade mínima, situação que se repetia por várias e sucessivas gerações, até mesmo após a abolição da escravatura.

A título de ilustração para melhor compreensão do que representa a força da herança cultural, veja-se o instituto do reconhecimento de firma, tão próximo à realidade brasileira, que, como prática cartorial, é imprescindível para dar validade jurídica documental e que vem dos tempos coloniais. Justificava-se a necessidade do reconhecimento de firma para validar certidões de que a extração de ouro das bocas das minas correspondia à verdade e que seu atestador, por gozar de fé pública, assim legitimava a produção.

Correspondendo às gradações hierárquicas dos agentes atestadores, eram necessários novos reconhecimentos das assinaturas sucessivamente lançadas para chegar-se ao destino final, a Coroa Real. Esta prática secular vem persistindo, mesmo a despeito de, durante o Governo Militar, na década de 1970, ter-se criado o Ministério da Desburocratização, com o objetivo de livrar a sociedade de entraves supérfluos que atravancavam o desenvolvimento nacional. E uma das bandeiras principais desse Ministério era o de acabar com o reconhecimento de firma.

O desfecho da história todos sabemos: o Ministério foi extinto e o instituto do reconhecimento de firma acha-se ainda bem fortalecido, a ponto de, em transação de automóveis, por exemplo, exigir-se que o certificado de transferência seja assinado na presença do cartorário.

O tema das ações afirmativas, estando diretamente ligado a mudanças de comportamento cultural, há de provocar, como já está provocando, intenso debate, com a exposição de teses radicalmente opostas.

A Constituição Brasileira de l988 consagra a igualdade formal no artigo 5°, quando estatui que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

A igualdade material é prestigiada, como se lê no artigo 7°, inciso XX, quando trata da proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, bem como no artigo 37, inciso VIII, quando determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para pessoas portadoras de deficiência.

No tocante à igualdade substancial, a própria elevação da dignidade humana como um dos pilares constitucionais do Estado Democrático de Direito está a demonstrar sua plena aceitação.

Além do mais, tendo o Brasil ratificado em 1968 a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, aprovada pela ONU em 1965, tem-se que suas disposições acham-se internalizadas no Brasil.

Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei 73/1999, que dispõe sobre o ingresso nas universidades públicas federais e estaduais, reservando 22,5 % de suas vagas para serem preenchidas mediante seleção de alunos nos cursos de ensino médio, a “chamada lei de cotas raciais”.

Também o Projeto de Lei nº3198/2000, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem preconceito em função de sua etnia, raça e/ou cor.

Por se tratar de questão relevante, que implica mudança cultural, os debates legislativos hão de abordar e enfocar múltiplos aspectos, sendo salutar à consolidação democrática que assim seja, com a participação de todos quantos se preocupam com temas concernentes à cidadania.

As Universidades Públicas brasileiras, por sua vez, já em antecipação à própria produção legislativa estão adotando o sistema de “cotas raciais” para afro-descendentes, ressaltando-se que se trata de critério de admissão e não de conclusão, como resultante da autonomia universitária.

Inconformada com a não admissão, após ter sido aprovada em exame vestibular, com média final superior à fixada para os beneficiários de cota racial, determinada estudante impetrou mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pleiteando assegurar sua vaga. A segurança foi-lhe denegada e ela, então interpôs recurso extraordinário.  Mas, por ter sido indeferida sua admissibilidade, deste indeferimento interpôs recurso de agravo de instrumento perante o Supremo Tribunal Federal, objetivando a admissão do recurso extraordinário.

O Ministro Sepúlveda Pertence, contudo, negou provimento ao agravo, por não ter sido analisada no
Tribunal de origem, a constitucionalidade da Lei Flumi-nense nº. 3.708/2001 (AI 547555/RJ, julgamento em 14 de julho de 2005, publicado no DJ de 22/6/2005, p.00103).

A questão das ações afirmativas há de merecer detido exame, até que venha a ser pacificada, podendo-se dizer que está in fieri, ou seja, em plena construção, dela participando não só entidades representativas de grupos étnico-raciais, como também de toda a sociedade em geral, por meio de diálogos, estudos e debates acadêmicos, de pesquisa de direito comparado e de discussões parlamentares que possam levar à formulação legislativa.

Mapa da Legislação e projetos legislativos sobre ações afirmativas  

Lei do Estado do Rio de Janeiro n.º 4151, de 04 de setembro de 2003, que determina a reserva de vagas nas universidades públicas estaduais para estudantes carentes oriundos da rede pública de ensino público, negros e pessoas com deficiência, nos termos da legislação em vigor, e integrantes de minorias étnicas, revogando as disposições em contrário, especialmente as Leis 3.524, de 28 de dezembro de 2000, 3.708, de 09 de novembro de 2001, e 4.061, de 02 de janeiro de 2003.

Projeto Legislativo n.º 3.627/04 – Reserva de vagas nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES).

Projeto Legislativo n.º 73/99 – Lei de Quotas – Reserva 22,5% das vagas das Universidades Públicas.

Projeto Legislativo n.º 6.912/02 e Projeto Legislativo n.º 3.198/2000  – Estatuto da Igualdade Racial.