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É necessário entender a audiência de custódia

8 de março de 2016

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Esmar Custódio Vencio FilhoA natureza humana normalmente tem resistência e até mesmo repulsa pelo novo ou diferente. Tal oposição nem sempre se justifica.

Popularmente, a justiça criminal se presta para prender (e manter preso) quem cometeu algum crime. Sem conhecimento da pena aplicada ou de outros dados e elementos técnicos, a sede popular abebera-se tão somente da pena corporal – a prisão.

Tal sentimento é plenamente compreensível, tanto é que, em tempos remotos da teoria absolutista, o princípio ou finalidade da pena residia na simples retribuição, ou seja, pune-se por que pecou. Mesmo após a evolução relativista e mista, ainda hoje a maior satisfação social é a prisão do criminoso e sua manutenção.

Paralelamente a isso, temos os direitos e as garantias fundamentais, que a todos resguarda, inclusive os autores de crimes, preservando o contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, princípio da subsidiariedade da prisão processual/cautelar entre outros.

É cediço que a prisão processual é excepcional e somente deve ser decretada nos estritos casos previstos em lei com amparo dos fundamentos e pressupostos da garantia da ordem pública e a aplicação da lei penal, quando presentes indícios de autoria e prova do crime. Acontece que não raras vezes essa prisão processual vem sendo decretada excessivamente e geralmente sem necessidade.

No Brasil, a prisão processual em média está acima de 41% da população carcerária, ou seja, quase a metade ainda não foi submetida a julgamento. No Tocantins, já foram realizados três mutirões carcerários, todos em razão do alto índice de presos provisórios, sendo que o último ocorreu no mês de abril do ano passado.

Coordenei os mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio Grande do Norte e Tocantins. A experiência adquirida nesses projetos foi enriquecedora e serviu para comparar as deficiências do sistema prisional nacional, suas peculiaridades e, especialmente, sua ineficácia.

Nesses mutirões inspecionei mais de 200 unidades prisionais e entrevistei mais de 2.000 presos e normalmente deparava-me com a confirmação dos números daquela época e hoje ainda mais presentes, do desnecessário encarceramento provisório, desaguando em uma infinidade de nefastas consequências como a superlotação, rebeliões, mortes, ou seja, sem qualquer proveito ressocializante.

A audiência de custódia, garantia prevista no Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, do qual o Brasil é signatário, já se encontra implementada em vários países do continente americano. No Brasil, o Ministro Ricardo Lewandowski institucionalizou o programa da Audiência de Custódia, implantado na quase totalidade dos estados e com previsão de ser instituído em todo o País antes do final do corrente ano.

Essencialmente, a audiência de custódia visa detectar eventuais práticas de tortura ou abuso físico no momento da prisão em flagrante e verificar sua necessidade. Não se trata de esvaziar presídios, CPPs (Centros de Progressão Penitenciária) ou cadeias, mas apenas manter presa a pessoa que não tenha condições subjetivas e objetivas de responder ao processo em liberdade.

A possibilidade de se converter a prisão em flagrante em preventiva não foi suprimida. Quem cometer crimes graves e/ou quem não possua perfil para ser beneficiado com liberdade provisória em razão, por exemplo, de antecedentes ou reincidência, poderá ser mantido preso, se presentes também os fundamentos da prisão preventiva.

No entanto, a audiência de custódia irá permitir que o juiz, promotor de justiça, defensor público ou advogado verifique, logo após a prisão em flagrante, se esta pessoa presa deve ou não ser mantida nesta condição durante a tramitação do processo. Muitas das vezes, considerando a natureza do crime e a pena prevista, em possível condenação, sequer seria imposto regime fechado.

Mesmo que não seja a essência da audiência de custódia, é inegável que esta verificação prévia logo após a prisão em flagrante, certamente (e os projetos já implantados têm demonstrado isso) reduzirá a entrada no sistema carcerário, diminuindo a superpopulação, auxiliando a gestão e baixando os gastos.

Este contato do juiz, do Ministério Público e da defesa com a pessoa presa permite, na maioria das vezes, análise extremamente real, firme e segura da necessidade da manutenção da prisão, o que não seria possível se feito tão somente com base no auto de prisão em flagrante. Certamente a expertise dos participantes da audiência de custódia, advinda não somente das fontes formais do direito, mas especialmente da experiência profissional e convivência social comum a todos nós, emerge a adequada percepção de sua conveniência (aqui não somente da instrução processual, mas também de sua função social)

É sabido que a manutenção da prisão processual, imposta àquele que poderia responder em liberdade, especialmente quando seus requisitos subjetivos permitem e se se tratar de crimes menos graves acaba por expor a pessoa presa ao recrutamento de facções e/ou outros presos mais perigosos e com penas maiores, impondo-lhe, não raras vezes, pela violência e ameaça, a prática de crimes especialmente voltados ao tráfico de drogas.

Percebe-se, portanto, que, além da imperiosidade legal da prisão processual, deve-se sopesar seu reflexo social, como um possibilitador do avanço do crime organizado e fracasso da justiça criminal, invertendo a já não eficaz finalidade ressocializadora da pena, graduando os reeducandos na criminalidade.

A audiência de custódia no estado do Tocantins, implantada por resolução, elaborada com a participação de juízes, promotores, defensores, advogados, Polícias Militar e Civil e Secretaria de Defesa e Proteção Social, começou a ser efetivamente realizada a partir do dia 10 de agosto passado.

O sistema processual do Poder Judiciário do Tocantins é todo eletrônico (E-PROC), seja ele criminal ou cível, de primeira ou segunda instância. Desde de 2012 toda entrada é eletrônica e todo o acervo físico já foi devidamente digitalizado e inserido no sistema. Esta fantástica peculiaridade tem possibilitado inúmeros projetos tendentes a, especialmente, agilizar e otimizar os processos e a prestação da atividade jurisdicional fim.

Sobretudo em relação ao projeto da audiência de custódia, o processo eletrônico se destaca na facilidade de comunicação da prisão em flagrante e da realização das audiências de custódia. Como todos os órgãos e instituições estão habilitados no sistema, a autoridade policial, após lavrado o auto de prisão em flagrante também dentro do próprio sistema E-PROC, o envia eletronicamente ao magistrado plantonista da semana.

Este envio também é feito automaticamente ao Ministério Público e à defesa (defensor ou advogado) os quais já ficam cientes do horário da realização das audiências, as quais ocorrem todos os dias, inclusive finais de semana, feriados e recessos, ou seja, o prazo máximo para a apresentação da pessoa presa na audiência de custódia será de 24 horas da comunicação da prisão em flagrante, podendo o juiz, dependendo da necessidade, designar audiência com prazo menor.

Desde de sua implementação, há pouco mais de 30 dias, os números mostram que a soltura nas audiências de custódia tem atingido de 50 a 60% das prisões, o que tem impactado positivamente a rotina das varas criminais, a superlotação e as condições da pessoa presa, assim como diminuição sensível no gasto de verba pública no sistema prisional.

Ainda é cedo para maiores diagnósticos, mas podemos afirmar que, talvez com algumas adaptações, a audiência de custódia deixou de ser tão somente uma garantia aos direitos humanos da pessoa presa, para se tornar efetivamente uma política da justiça criminal.

Portanto, como ressalvado pelo ilustre amigo Alexandre Morais, Juiz de Direito da 4a Vara Criminal de Florianópolis/SC:

Evidentemente que a cultura encarceradora não se muda por mágica, nem pela audiência de custódia, mas podemos, ao menos, mitigar a ausência de impacto humano. O futuro nos dirá, talvez, com menos medos imaginários […]

De se observar que se encontra em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei no 554 de 2011, que em breve irá regulamentar a audiência de custódia, levando-nos a concluir que sua inserção em nosso sistema de justiça criminal será definitiva.

Logicamente que serão necessárias adequações próprias de cada estado e até mesmo dentro dos próprios estados, já que temos algumas unidades federativas extremamente extensas e com locais de difícil acesso, além de contarmos com deficiências estruturais nas instituições e nos órgãos participantes desse processo, inclusive no próprio Poder Judiciário.

No entanto, a positividade da audiência de custódia certamente nos fará buscar meios de possibilitar que seja alastrada e aperfeiçoada, talvez recuperando algo que nunca funcionou, o sistema prisional brasileiro.