Edição

Freud e a tentação totalitária

20 de maio de 2018

Compartilhe:

A obra de Sigmund Freud não pertence apenas aos psicanalistas. Os tradutores, os estudiosos, os interpretes, hoje, não têm mais necessidade do rotulo psicanálise para ressaltar a obra de Freud.

Nos Estados Unidos uma grande mudança no enfoque da obra data, segundo os estudiosos, dos anos 1980-1990. Em outros países essa mudança se deu depois. Os psicanalistas americanos, com algumas exceções, se ocupam de neurociência e de clinica medica e não muito dos textos de Freud, que são fundamentais para serem lidos, revistos e reinterpretados, tantos anos passados. Os profissionais norte-americanos deixaram o campo da erudição, da língua e da vasta cultura para se interessar pelos neurônios.

Na primeira metade do século XX a oposição a Freud vinha, essencialmente, dos meios religiosos e conservadores, que o repudiavam não somente pela acusação de haver concebido a sexualização da vida humana, como também por ser responsável pela destruição da família, pela emancipação das mulheres e, ainda, pela masturbação das crianças.

A segunda corrente de oposição foi desenvolvida pelos nazistas nos anos 1930 – 1940. Os nazistas decretaram que a psicanálise era uma ciência judia e que, como tal, deveria ser exterminada Não só a psicanálise, mas também seu vocabulário, seus conceitos, do mesmo modo que seus praticantes. Finalmente o freudianismo recebeu a crítica feroz do stalinismo, a partir dos anos 40, que fez da psicanálise uma ciência burguesa, interditando-lhe a pratica na União Soviética.

A partir dos anos 1980 os anti-freudianos articulam a ideia de que a psicanálise não é uma ciência e Freud não é um cientista. A esta critica se agrega uma outra, de natureza moral. Ela vem de países puritanos. Acusa-se Freud não mais de ser responsável pela destruição da sociedade, mas de ser uma sombra reacionária libidinosa e mentirosa, que teria violado seus pacientes e sua cunhada.

Essa desqualificação sobre a vida privada deixa entender que sua teoria seria absolutamente falsa. Freud seria não apenas um guru não científico, mas um tipo de chefe de seita ávido por dinheiro, argentário, violador e mentiroso.

Mas os estudiosos modernos, marcadamente na França, em escritos candentes, têm mostrado que a verdade é mais simples e menos maniqueísta: Freud não era nem um esquerdista libertário, nem um puritano, nem alguém capaz de perversões sexuais, senão um conservador liberal e iluminado. Pensava que o ser humano deveria dominar as suas pulsões, não liberá-las.

Note-se que Freud, Darwin e Marx, além de Einstein, representam os quatro pensadores particularmente visados pela crítica reacionária. E por que isso acontece? Porque eles são os pensadores que colocaram em debate, num momento dado, nosso modo de ver o universo e a sociedade. São pensadores que efetuaram revoluções transformadoras. Eles estão na origem todas as grandes novidades de nosso tempo, o tempo conturbado no qual vivemos, infelizmente em marcha batida para a intolerância e a fascização nascida das angústias das massas.

Os pensadores reacionários – contrários a Freud, Darwin, Marx e Einstein – opõem-se às mulheres, aos estrangeiros, aos homossexuais, aos refugiados, aos imigrantes que, segundo eles, visariam “desfigurar a bela pátria francesa. ” São eles que constituem a revanche dos xenófobos atuais, fascinados pelo discurso propugnado a partir da onda conservadora que fascina o Ocidente, e odiando os cosmopolitas do pensamento. Ficam aterrorizados pela crise econômica, pelas guerras no Oriente Médio e se dirigem então contra o imenso patrimônio intelectual francês, admirado fora da França, como Simone e Sartre, “sempre insultados”, contra Foucault, “responsável pela transmissão do vírus da aids”, contra Althusser, “que seria um assassino marxista”, contra Deleuze, “toxicômano”, contra Barthes e Derrida, “desconstrutores da língua e da escola republicana”, todos eles descritos pelos inconformistas com ranço claramente fascista como monstros, responsáveis que seriam, nessa visão retorcida e maniqueísta, pelo declínio da França e do Ocidente.

O mundo assiste estarrecido uma crescente onda de tentação totalitária, praticada com viés democrático, tal como na Alemanha nazista denunciada por Freud. Choques de insegurança, angustias das populações indefesas – provocadas pelo terrorismo, pelo crime ­organizado ou pela migração – impelem o pendulo da política para a direita intolerante, permitindo que governantes se perpetuem no poder. Basta olhar para a Rússia, a China, a Polônia, a Hungria, a Turquia, a ­vitória da direita na Itália de nossos dias, o Brexit e o separatismo inconstitucional da Catalunha.

No Brasil não é diferente: a onda conservadora arrasta a política, a economia, o comportamento e a visão do mundo pelas pessoas, extasiadas com a ideia desvairada de uma intervenção militar e do uso das Forças Armadas em missões tipicamente policiais, com a ascensão de político comprometido com exaltações nacionalistas pelo uso de uma retórica raivosa, que explora medos e preconceitos, com o uso abusivo e letal das redes sociais, mesmo com irresponsáveis fake news, com o assassinato brutal de Marielle Franco e com ameaças ao Ministro Edson Facchin. E esta virulência nas redes sociais é a sucessora das políticas totalitárias de extermínio do século XX. São pantanosas e deixam explícito que o debate é ganho quando cala o adversário. Uma lastima. Um notável historiador de nosso tempo adverte (Geoffrey Blainey, Uma Breve História do Mundo, Ed. Fundamento, 2ª Ed., p. 302): “Se não tivesse acontecido essa guerra (a de 14-18), Hitler provavelmente seria desconhecido, pois foi da amargura da derrota alemã que ele surgiu, assim como Mussolini surgiu como ditador na Itália, principalmente por explorar a grande decepção pós-guerra de seu povo”. Entre nós, podemos falar na grande decepção pós-redemocratização, pela ação nefasta de plutocratas conduzindo criminosos e produzindo angustias e decepções. E até mesmo no fracasso da geração que combateu a ditadura militar e ajudou a elaborar a Constituição de 1988.

Por isso, impõe-se ressaltar: é preciso lutar bravamente contra esse avanço do novo fascismo, que se utiliza, como aconteceu no passado, da aflição e das angustias das massas.