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Interferência indesejável Saneamento básico e a atuação do Poder Judiciário

10 de setembro de 2018

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1. A vontade do legislador

Saneamento é o conjunto de medidas que visa preservar ou modificar as condições do meio ambiente com a finalidade de prevenir doenças e promover a saúde, melhorar a qualidade de vida da população e à produtividade do indivíduo e facilitar a atividade econômica. No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição da República e definido pela Lei no 11.445, de 5/1/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico.

Nesse contexto, o legislador federal previu, como uma das possibilidades para a melhoria e expansão dos serviços de esgotamento sanitário, o modelo de concessão, cabendo ao ente público a elaboração de plano de saneamento, abordando princípios e diretrizes, objetivos, metas, programas, projetos e ações a serem realizados, nos termos do artigo 19 da referida lei.

Desse plano, decorrerão as metas progressivas e graduais de expansão dos serviços, de qualidade, de eficiência e uso racional de águas, energia e outros recursos naturais, sempre em conformidade com as condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços. Em outras palavras, o marco legal, ao prever a possibilidade de prestação do serviço por particular (art. 10), determina que o contratado deverá sempre atender às metas e aos objetivos da concessão.

Importante notar que o licitante, no certame que dá origem a uma concessão, leva em conta justamente as metas estabelecidas pelo Poder Concedente para elaboração da sua proposta e do planejamento dos serviços que virá a prestar caso se sagre vencedor. Desse modo, o contratado considera, no cálculo dos indicadores contratuais relacionados aos investimentos que tem que honrar e às metas que tem que cumprir, a população sujeita a atendimento, excluindo do seu planejamento de obras as áreas inelegíveis (em geral, áreas proteção de mananciais, faixas lindeiras aos rios e córregos ou invadidas ilegalmente) e as áreas de baixa densidade.

Além de definir os sistemas necessários à implantação e/ou expansão do sistema de esgotamento sanitário, a concessionária deve definir a sequência de implantação, levando-se em consideração a densidade demográfica, elementos conjunturais, como demandas regionais, dentre outros fatores de natureza diversos, tudo de modo a atender os usuários da forma mais eficiente possível.

2. Judicialização de políticas públicas e o papel do Poder Judiciário

Feitas essas considerações acerca de um dos modelos de expansão e melhoria dos serviços voltados para o saneamento básico, deve-se atentar para o crescente número de medidas judiciais, movidas pelo Ministério Público, entidades de classe, associações, etc., que, deixando de lado a natureza técnica dos serviços e dos projetos, bem como as metas estabelecidas pela Administração e o cronograma delas decorrentes, buscam compelir o Poder Concedente e as concessionárias a implantar, em um dado prazo, o sistema de esgotamento sanitário em uma determinada região.

A natureza da intervenção remete à discussão em torno da judicialização de políticas públicas e do papel do Poder Judiciário dentro do sistema jurídico-constitucional vigente. Dessas balizas não poderá dissociar-se a discussão.

Não se desconhece que a atividade administrativa e a atividade legislativa não são imunes ao controle judicial. Mas, a interferência do Poder Judiciário nas atividades tipicamente outorgadas aos outros Poderes, ainda que sob o pretexto de concretizar a Constituição, há de ser exercida sempre com parcimônia e dentro das demarcações da razoabilidade.

Em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga princípios que apontam em direções diversas, que não raras vezes geram tensões entre eles. Ao contrário das regras, que são aplicadas sob a lógica do tudo ou nada, os princípios são mandados de otimização, que devem ser realizados na maior intensidade possível, em vista dos elementos jurídicos e fáticos presentes na hipótese. Assim é que os direitos fundados em princípios constitucionais poderão ser exercidos, em princípio e na medida do possível, conforme a ponderação que a autoridade competente – seja o legislador, seja o administrador, seja ainda o intérprete judicial – fará dos princípios em colisão.

A partir do momento em que se reconheceu força normativa às normas constitucionais, o Poder Judiciário passou a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição, muitas vezes adentrando na esfera de atuação institucionalmente outorgada a outros poderes, na busca da realização de direitos com assento constitucional.

A primeira reflexão que se põe ao ativismo judicial desenfreado diz respeito à legitimidade democrática. Numa democracia, a prerrogativa de decidir o modo de aplicação dos recursos públicos e de eleger prioridades no gasto público é da vontade popular, condensada na voz de seus representantes democraticamente eleitos. Nesse aspecto, o Judiciário tem papel fundamental para repelir a possibilidade de redefinição das medidas a serem priorizadas, sob pena de restar violada a legitimidade democrática, que deu origem ao modelo legal vigente.

Outro relevante fator a pesar na medida da interferência nas concessões reveste-se de cunho financeiro e é usualmente formulada sob a noção de “reserva do possível”. A implementação de uma política pública depende de disponibilidade financeira e investir recursos em um determinado projeto implica deixar de investir em outras áreas. Se recursos públicos devem ser investidos com maior ou menor intensidade em políticas públicas voltadas para educação, saúde, utilidades públicas ou proteção ao meio ambiente consubstancia difícil decisão a ser resolvida pelo Administrador Público.

Em paradigmático pronunciamento a respeito do tema, a decisão proferida na ADPF 45 fixa como balizas a pautar a intervenção do Poder Judiciário no controle de políticas públicas: (a) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; (b) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e (c) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Pode-se dizer, em caráter conclusivo, que se pode postular judicialmente a intervenção em prol de um direito com assento constitucional sempre que a sua falta de efetividade decorrer de uma omissão legislativa ou do Administrador Público. Porém, quando o legislador realiza ponderações em abstrato, ou quando o administrador organiza sua atuação administrativa conforme seu juízo ponderativo dos princípios em jogo, deve o intérprete judicial se abster de sobrepor sua própria valoração à que foi feita pelo órgão de representação popular.

Se o legislador/administrador público tiver ponderado os princípios em jogo e tiver feito escolhas lícitas, conforme o peso atribuído a cada direito extraído dos princípios em colisão, diferentemente de assentir com postulações indevidas, o Judiciário deverá tutelar essas escolhas em respeito ao princípio democrático. Interferir e redefinir as escolhas feitas na implementação de uma política pública põe em risco a própria continuidade dessa política e desorganiza a atividade administrativa e a alocação racional de recursos públicos.

Canalizar os investimentos projetados para a etapa inicial em determinadas regiões, destinando a outras os investimentos previstos para uma etapa subsequente, consubstancia a escolha que a Administração Pública tomou no desafio de implementar, sob uma perspectiva macro, deveres prestacionais impostos pelo direito ao meio ambiente sadio dentro da reserva possível, i.e., dentro das disponibilidades financeiras.

Redesenhar ou modificar cronograma por decisão judicial implica em realocação dos recursos. Na prática, essa reconfiguração coloca em risco o próprio plano de expansão do serviço, na medida em que compele Poder Público e concessionárias a dar às receitas financeiras disponíveis destinação diversa da projetada. E, o que é pior, estrangula o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, já que interfere no fluxo financeiro da arrecadação de receitas, tal como previsto por ocasião da licitação da exploração do serviço público.

Nota__________________

1 Art. 19. A prestação de serviços públicos de saneamento básico observará plano, que poderá ser específico para cada serviço, o qual abrangerá, no mínimo:

I – diagnóstico da situação e de seus impactos nas condições de vida, utilizando sistema de indicadores sanitários, epidemiológicos, ambientais e socioeconômicos e apontando as causas das deficiências detectadas;

II – objetivos e metas de curto, médio e longo prazos para a universalização, admitidas soluções graduais e progressivas, observando a compatibilidade com os demais planos setoriais;

III – programas, projetos e ações necessárias para atingir os objetivos e as metas, de modo compatível com os respectivos planos plurianuais e com outros planos governamentais correlatos

, identificando possíveis fontes de financiamento;

2 Art. 11.  São condições de validade dos contratos que tenham por objeto a prestação de serviços públicos de saneamento básico:

(…)

§ 2o  Nos casos de serviços prestados mediante contratos de concessão ou de programa, as normas previstas no inciso III do caput deste artigo deverão prever:

I – a autorização para a contratação dos serviços, indicando os respectivos prazos e a área a ser atendida;

II – a inclusão, no contrato, das metas progressivas e graduais de expansão dos serviços, de qualidade, de eficiência e de uso racional da água, da energia e de outros recursos naturais, em conformidade com os serviços a serem prestados;

III – as prioridades de ação, compatíveis com as metas estabelecidas;

IV – as condições de sustentabilidade e equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência, incluindo:

3 “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não apenas das possibilidades reais senão também das possibilidades jurídicas. O âmbito de possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos” (Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86 – tradução livre).

4 “Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração – de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Desnecessário acentuar-se, considerado o encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, ausente qualquer desses elementos, descaracterizar-se-á a possibilidade estatal de realização prática de tais direitos.” (trecho da decisão do Ministro Celso de Mello na ADPF 45, 29.4.2004. A decisão foi proferida em caráter doutrinário, já que a ADPF estava já prejudicada em virtude da perda superveniente de seu objeto)