Lula recupera a paixão política dos brasileiros

5 de novembro de 2002

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O cineasta João Moreira Salles, filmou a campanha de Lula para um documentário dirigido por ele e Eduardo Coutinho. O filho do falecido banqueiro Walter Moreira Salles acompanhou o ex metalúrgico a doze estados e quase vinte cidades, além do Distrito Federal. Em todos os lugares, sem exceção, viu Lula será recebido por uma multidão de pessoas. Homens, mulheres, jovens, idosos, adolescentes, rodos dispostos a sair de casa em nome de um entusiasmo raro nos dias de hoje: o da política.

A seguir, trechos do depoimento do documentarista João Moreira Salles sobre a sua nova experiência:

“O fenômeno Lula só pode ser bem compreendido por quem o vê na rua. Não me refiro apenas aos comícios, as caminhadas ou aos desfiles em carro aberro, mas também as saídas dos hotéis onde se hospeda, aos saguões dos aeroportos por onde passa e aos restaurantes onde pára para comer. Ou seja: tanto nos eventos oficiais da campanha ‘presidencial como nos encontros fortuitos de Lula com seus eleitores, a mesma intensidade está lá. Lula não se deixa decifrar pelos jornais ou pela televisão. Pelo menos, não plenamente. É preciso estar perro dele e testemunhar.

As pessoas que saem de casa para assistir a um comício de Lula não estão apenas indo a um programa divertido. Talvez a presença de Zezé di Camargo e Luciano em vários comícios do primeiro turno possa ter engordado a conta do numero de participantes desses eventos, mas no segundo turno Lula subiu nos palanques sozinho, as vezes tarde da noite. Em Aracaju, depois de ter visitado três outros estados no mesmo dia, s6 conseguiu chegar ao comício as onze da noite. Em Florian6polis, depois de passar pelas cinco regi5es brasileiras num mesmo dia, Lula começou a falar perto da meia noite. E diante dele não houve um palmo de asfalto desocupado. As praças estavam sempre lotadas.

Frente a Lula estavam milhares de pessoas que acreditavam nele, no partido, na possibilidade de mudar o Brasil, na chance de melhorar a própria vida. Não interessa se tinham ou não razão em acreditar. Os próximos quatro anos se encarregarão de responder a essa dúvida. Incontestável é o faro de que Lula exumou das cinzas as velhas idéias do sonho e da utopia, trazendo-as de volta a esfera da ação política. Penso que parte do seu sucesso deve ser creditada a isso. Ambas eram idéias mortas para muitos dos políticos mais honrados das últimas décadas, e vivas demais para alguns dos piores.

Durante pelo menos toda a segunda metade do século passado, a esquerda deteve o monopólio da rua. A direita fazia política de gabinete, enquanto a esquerda enchia as praças. O que mudou? Vendo Lula avançar ao lado de milhares de pessoas pelas ruas estreitas de João pessoa, num espetáculo verdadeiramente fluvial, percebo que a grande diferença não está tanto nas propostas (nesta campanha houve grande convergência no discurso dos quatro candidatos principais), mas na fé aberta, franca, sincera e sem acanhamento com que elas são defendidas. Naquele mesmo dia, Lula repetiu o espetáculo em Natal, Recife e Aracaju. Em todas essas capitais,.o que se viu foi o mesmo: cidades paradas em função de um homem que vinha defender com paixão as suas idéias.

Fazia muito tempo que eu não testemunhava coisa igual. Minha ultima experiência semelhante tem mais de vinte anos, e vem dos tempos da grande campanha pelas eleições diretas. De Iá para cá, as coisas mudaram bastante. Muitos dos melhores quadros do centro e da esquerda deixaram de lado a dimensão utópica e se entregaram a inteligência técnica. O problema da técnica é que ela pode ser eficiente, mas jamais terá carisma. A técnica não enche praças e não promove procissões como a de João Pessoa. A técnica deixa uma porção importante da vida desatendida chame-a de imaginação, de espírito, de alma, tanto faz. Foi sempre um erro supor que as pessoas se contentariam com a técnica. Não se contentam. Se apenas e1a, fica a sensação de uma vida encolhida.

Imagino que quando se oferece as pessoas a possibilidade de se sentirem parte de um projeto maior, de um sonho repartido, elas geralmente acorrem. Essa é a grande virtude de Lula. Ele recupera o sentido de comunhão na política. Quando fala, quem houve fica com a impressão de que a possibilidade de fazer história pertence um pouco a todos. Lula provavelmente jamais deu crédito a idéia de que as utopias estavam extintas. Bastava-lhe olhar para a própria biografia. Neste sentido – o da história de sua vida ­ninguém poderia estar mais preparado para acreditar na noção de que é possível reinventar a história. Quando milhares de pessoas em Osasco, Porto Alegre, Aracaju, João Pessoa, Recife, Belém, Macapá ou Florianópolis saem de casa para ouvi-lo, saem em parte por isto: porque diante delas não está apenas um político, mas uma metáfora. Lula é o Brasil que pode ser outro.

Com Lula a idéia do sonho volta para o campo da esquerda. Mas contrariamente a direita européia (e em menor escala, a americana), o seu sonho não está fundamentado na idéia de oposição (aos imigrantes, aos muçulmanos, as minorias em geral), mas de inclusão (dos pobres, dos marginalizados). É uma utopia generosa.

Resta explicar por que Lula conseguiu convencer o pais em 2002 e não em 89, 94 e 98. Naqueles anos de derrota, a intensidade da crença parecia ser a mesma de hoje. Agora as razões conhecidas – a falsa Fúria santa de Collor, o invendável Plano Real, o medo da instabilidade econômica, e agora o desejo de mudança de rota – o discurso mais ameno que Lula adotou nesses últimos anos teve uma conseqüência importante: incluiu os que antes se sentiam rechaçados pela fala daquele que julgavam radical. Os discursos extremos conseguem apaixonar apenas os que estão nas extremidades ou perto delas – pouca gente. Desta vez, Lula conseguiu incluir praticamente todo mundo em seu sonho.

Se a utopia poderá se cumprir, é outra questão. Lula acredita sinceramente que sim, o que faz dele esta criatura rara: um político de palanque que fala as massas sem ser populista. Lula não promete o que não acha que pode cumprir. Não estimula o messianismo. Este é outro aspecto virtuoso de seus comícios: a impressão que se tem é de que as pessoas que ali se encontram não estão dispostas a entregar suas vidas ao líder carismático, para que ele resolva tudo. Até mesmo a oratória de palanque empregada por Lula e instintivamente cautelosa e reticente. Quando determinado raciocínio está prestes a incendiar a platéia, bastando que Lula soque a ultima frase em direção ao céu, ele, contraintuitivamente, inverte a inflexão, abaixando o volume da voz e trazendo a idéia de volta ao chão, num pouso manso. É uma forma de respeitar a platéia, evitando a fácil tentação de enfeitiça-la.

Lula ganhou esta eleição acreditando apaixonadamente nas suas idéias. Mas para governar bem não bastara a intensidade da crença. Se a técnica sem utopia e árida como deserto, a utopia sem eficiência não passa de uma embriaguez. Doce durante, amaríssima depois. É preciso torcer para que Lula saiba operar a síntese difícil.

Poucos conseguiram. Apesar de todas as críticas que, justa ou injustamente, são feitas a JK – o delírio de Brasília, o modelo de desenvolvimento concentrador de renda, a deflagração do processo inflacionário -, talvez e1e tenha sido o último a ter tido algum êxito nessa tarefa. Durante aqueles poucos anos, o Brasil achou que podia ser original. (Quanto a esse critério, estamos bem: Lula e uma novidade planetária. Ele nos coloca no mapa do mundo.). Crescemos bastante, inventamos muita coisa, ganhamos auto-estima. O país foi feliz. Já faz tempo. Estamos com saudade da sensação.

Boa sorte, Lula