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O Sistema Carcerário

5 de setembro de 2001

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SITUAÇÃO PENITENCIÁRIA NO BRASIL
O sistema punitivo estatal tem como cerne três fatores indissociáveis para a explicação do fundamento da pena como delegação social ao Estado,  que atuam como instrumento de proteção de relevantes bens e interesses: a retribuição, a prevenção e a ressocialização.
Aviva-se, dia a dia, entretanto, em sentido contrário a todas as teorias da criminologia com relação à punição criminológica, o efeito devastador do confinamento do homem sem respeito às suas necessidades básicas e sem qualquer proteção do Estado. Ademais, o fenômeno da assimilação dos padrões vigorantes na penitenciária, estabelecidos, precipuamente, pelos internos mais endurecidos, mais persistentes e menos tendentes à recuperação, mormente na atitude sintomática de aquilatar as maestrias do criminoso habitual, desenvolvendo o perfil delinqüente e os denominados fatores universais da prisionização, impingem a situação paradoxal da ressocialização por intermédio da reclusão carcerária.
A PENA DE MORTE VERSUS VIOL NCIA E IMPUNIDADE
O direito de punir não pode ser a mola propulsora capaz de transformar o Estado em cometedor de ação cuja ética e a moral reprovam e repudiam os cidadãos. Ademais, apesar da natureza representativa da Casa Congressual, o Estado não pode impor indiscriminada e genericamente a todos os cidadãos o ônus de conviverem com o carma de serem o carrasco que executa a morte de um homem. A democracia de representação tem limites sociais.
Porém, o engodo do recrudescimento da punição é latente. Essa solução é imediatista, porquanto fruto da resistência enfraquecida da sociedade em  digladiar contra o terror da insegurança, cujo fôlego já se expirou,  gerando anseio de não admitir postergações e remédios de solução a médio ou longo prazo.
E então concluímos, não será a pena de morte suficiente! E então, outro movimento político se levantará: a pena de morte ao condenado por crime hediondo e também extensiva a seus filhos, e depois a seus ascendentes e assim por diante. É só alterar mais uma cláusula pétrea, aquela que garante aos cidadãos que nenhuma pena passará da pessoa do condenado! E a seqüência condenatória será infindável no sentido contrário às conquistas públicas, sociais e individuais.
IMPUNIDADE: RAZÕES E FORMAS
O Legislativo não estuda a causa de falência do sistema punitivo, com o objetivo de eliminar problemas conjunturais e estruturais, satisfazendo-se com soluções paliativas que, no fundo, transformam mais impraticável o escopo da ressocialização. É o caso, por exemplo, da lei de crimes hediondos que vem, tão-só, atender a reclamos setoriais da sociedade, com o fito de lhe dar uma satisfação imediata, com persistência do modelo político-criminal de tendência  paleorepressiva, cujas notas marcantes são endurecimento das penas, a supressão dos direitos e garantias individuais, tipificações novas e o agravamento da execução penal.
No tocante à questão do custo prisional   e o encargo pelo qual o preso onera a população, em especial a brasileira, cujo índice salarial é um dos mais baixos do mundo, se não for a menor renda per capita, levam notórios juristas e administradores a realçar sobremaneira a adoção de penas alternativas.
DESEMPREGO E VIOLÊNCIA
O Direito recorre a outras ciências para explicar a violência. Políticos insistem no argumento de que, quanto mais um criminoso seja mantido na prisão, tanto mais seguros estarão os homens livres. Estatísticas americanas demonstram que, em estados de sistemas penais diferentes, os índices de aprisionamento não são proporcionais aos de criminalidade. A estatística deixa evidente que mais prisões não diminuem nem criminalidade e nem violência. Dos sistemas existentes para lidar com criminosos, a prisão é o mais caro e seu preço recai sobre o povo. Além de tudo, é injusto em si mesmo. Pune os pobres mais que os ricos; os negros mais que os brancos. Adota dosagens de pena que variam sem critério científico, mas mudam freqüentemente ao sabor de fatos isolados.
Os números do Censo Nacional já anteriormente mencionado trazem dados sobre o grau de instrução dos penitentes, sendo que 74,55% são analfabetos ou possuem o primeiro grau incompleto; 12,67% possuem o primeiro grau completo; para 5,42% que possuem o 2º grau incompleto e 5,98% completo, com apenas 1,38% na faixa do 3º grau, com a população total de 95% de pobres. Coincidência mundial…?
A REDUÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL COMO MEIO INIBIDOR DA VIOLÊNCIA
Não nos parece caminho mais aconselhável o movimento anti-criminalidade, capitaneado pela corrente que imprime batalha na adoção, pelo conjunto sistêmico penal, da redução da imputabilidade penal para os dezesseis anos, e até menos, ao revés dos dezoito anos hoje predominante. A Parte Geral do Código Penal Brasileiro, ainda quando Projeto, teve como justificativa a manutenção da inimputabilidade penal ao menor de dezoito anos, o desenvolvimento biológico e social incompleto desses agentes,  como opção de política criminal.
Um questionamento se impõe: qual a modificação da política criminal que se pretende atualmente através da redução da idade para a responsabilidade penal ? O internato do menor, assim como o cárcere do criminoso adulto, como medida  eficiente e vital para a redução da criminalidade e da impunidade, é premissa falsa. As causas devem ser, portanto, atacadas: Repressão eficaz ao tráfico de drogas e a redução da violência familiar.
Uma resma de papel, onde estão inseridas leis rigorosas e sentenças destituídas de qualquer sentimento de condescendência com os delinqüentes, não passarão de papel.
O que se propõe é o recrudescimento punitivo incrementado por política de eficiência corretiva que filtrem condutas atípicas, cuja potencialidade violem ou ameacem a segurança pública e que venha, ipso facto, a corres-pondente reprimenda. É a ligação das idéias que forma a base de todo o edifício da razão humana…As leis e as sentenças que possuam efetividade já terão, por si só, a dureza capaz de gerar a prevenção pelo medo de sua real aplicação e a retribuição capaz de comprovar à sociedade que quem comete crimes é encarcerado.
NOVAS FORMAS DE SANÇÃO: PENAS ALTERNATIVAS
No Brasil, a política do recrudescimento das leis não vem acertando. É hora de recuar. É hora de, como um estrategista, bater em aparente retirada para que o inimigo abra o flanco.
A adoção das penas alternativas, em especial a prestação de serviços comunitários ou similar, o contato direto do delinqüente com problemas sociais de profundidade incontestável, fariam desabrochar seu sentimento de utilidade para a sociedade na qualidade de bem-feitor, sensibilizando-o para os percalços das vidas de outréns, amenizando a introspecção ao seu mundo violento e marginalizado, despertando-o para o fato de que se o problema vivencial de sua vida é nefasto, de certo há piores.
Assim, vivenciando o despautério da existência de pessoas solitárias, carentes, deficientes e de crianças órfãs e abandonadas ou privadas da convivência familiar por ato abusivo dos pais, a extensão de sua cosmo visão da realidade alargar-se-ia e inquestionavelmente, a reciprocidade dos laços emocionais entre a sua pessoa e os seus assistidos fariam aflorar sentimentos adormecidos no seu ser por força de sua realidade delinqüente.
A lei de Execuções Penais faculta ao juiz da execução determinar o cumprimento da pena em comarca diferente daquela em que se deu a condenação. É, entretanto, uma simples faculdade, que não é usada na prática, vez que a regra é a da competência jurisdicional, isto é, que o apenado cumpra a pena no local da prática do crime. Não é o que se vê, entretanto, sobretudo em razão direta da jurisdição descentralizada do sistema penitenciário que não obriga um determinado governo estadual a receber preso condenado por outro estado. E aí, a nosso juízo, está, a curto prazo, a solução não só do problema da superlotação carcerária, impeditiva da realização da melhor política penitenciária, como também do ideal da ressocialização do preso. Consciente dessa nova regra, as pessoas teriam um freio inibitório maior na perpetração do crime, pelo juízo de censura que ele teria no local onde nasceu, cresceu e está situada a sua base familiar.
OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Para ditar novos rumos para o clássico modelo processual-penal atinente à ação penal pública, foi editada a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995,  informada de diretriz primordial da celeridade processual, com o fim precípuo da conciliação, da transação e da descarcerização, ou seja, prima em evitar a prisão cautelar.
Apesar da real política criminal de recrudescimento da penalização, que atualmente é praticada pelos congressistas, demonstrada por edições legais recentes, cujo exemplo mais significativo é a lei de crimes hediondos, foi implantada um paradigma de justiça criminal, fundado no consenso, reservando, entretanto, pouco espaço para a denominada forma de “barganha penal”, em que pese haver uma espécie de transação que leva à aplicação imediata da pena, longe, porém, do “plea guilty” (declarar-se culpado) e do “plea bargaining” (que permite amplo acordo entre o acusador e o acusado sobre os fatos, a qualificação jurídica e a pena), continuando o Ministério Público vinculado à obrigatoriedade da instauração da ação penal, desde que assim formada a sua opinio delictii, dentro do princípio da discricionariedade regulada ou regrada.
Ela inaugura um novo ciclo que faz emergir modificações benéficas em todas as facetas atreladas ao sistema punitivo desde a perpetração do delito, com passagem na apuração, na persecutio in iudicio e no ius puniendi, repercutindo ao final no sistema penitenciário. Trata-se de assentamento do princípio da intervenção reduzida do Estado.
Por isso, mitigar o poder do Ministério Público na conciliação e na transação acerca dos fatos que fizeram incidir a norma penal e acerca das penas, na verdade, é não propiciar ao Estado a regular, a efetiva, a justa e a necessária reprimenda do crime em favor da sociedade, por meio da jurisdição, cujo controle é efetivado pela homologação.
Para a reversão desse quadro, necessária a reformulação da nascente do processo penal, ou seja, é imprescindível a reformulação da discricionariedade do Ministério Público no desempenho do monopólio do exercício da ação penal. O Ministério Público deveria obter capacidade representativa constitucional para transacionar, processualmente, acerca da culpabilidade dos infratores, evidentemente com o poder fiscalizatório do Poder Judiciário, em mais uma demonstração da efetividade e imprescindibilidade do sistema do check and balances. Todas essas fases completadas pela transação teriam o divino ANTÍDOTO contra a impunidade.
UMA NOVA DEFINIÇÃO PARA OS CRIMES DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO
De efeito, em seara penal, a intervenção mínima do Estado na regulação de crimes é providência inquestionável. Para o atingimento dessa diretriz deveria ser reformulada a noção de crime de menor potencial ofensivo, para regrar a Lei nº 9.099/95 os crimes punidos com penas privativas de liberdade igual ou inferior a 4(quatro) anos.
Dessa forma, para os desideratos propugnados neste trabalho no encaminhamento de proposta para a solução do sistema punitivo, mister a institucionalização dos Juizados Especiais Criminais com atribuições de conciliação e julgamento sumaríssimo dos delitos de menor potencialidade, estes discriminados em lei ordinária (penas inferiores a quatro anos), com poderes ao Ministério Público, de transação e com mitigação da indisponibilidade da ação penal diretamente ligada à personalidade, comportamento social e demais dados afetos ao infrator.
Sem embargo, nos crimes apenados com quatro anos, os delinqüentes, por força da conciliação e da transação, que impediriam o processo judicial no todo, receberiam penas alternativas individualizadas(serviços certos e determinados por convênios à comunidade, multa administrativa revertida ao Estado, reparação do dano  perpetrado etc.), onde as próprias organizações conveniadas seriam fiscalizadores. Assim, apesar do caráter retributivo e intimidativo, teria como escopo a ressocialização do condenado para o fim de assentá-lo em sua cidade-mãe, onde os laços familiares, a fraternidade e a solidariedade da sociedade, em seu aspecto bairrista, tendem a facilitar o acolhimento do egresso ao seu seio, gerando também em seu foro íntimo maior responsabilidade para rever o seu conceito e de sua família, em especial a prole. Em seu município de origem, sede de sua família, e juízo social de censura, inibidor de práticas criminais, funciona com significativa vantagem e maior eficiência, no desencorajamento das reiterações.
CONCLUSÃO
Não acreditamos que reformas setoriais, como aquelas que vêm sendo empreendidas no campo do processo penal,  sejam potencialmente hábeis a dar cabo da insatisfação da cidadania brasileira com o problema punitivo. É preciso retirar o preso do contato com a corrupção do sistema carcerário, dessa indústria do controle do crime como averbou Nils Christie, para que ele tenha utilidade para a sociedade.
Assim, o atual Código Penal e de Processo Penal pouco fornecerão, depois de demolidos, para construção do futuro compêndio normativo regulador da persecução estatal, já que se trata de um ordenamento arcaico no que se refere aos avanços exegéticos das doutrinas da efetividade do processo e de tantas outras elucubradas pela teoria geral do processo, em especial àquela vertente que cuida da sua verdadeira instrumentalidade e não um fim em si mesmo, fazendo o direito material sucumbir em seu proveito, para atender aos dogmas constitucionais implantados pela nova ordem democrática.

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