O STF e as leis (in) constitucionais

23 de junho de 2013

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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1. Preliminares

O papel do Supremo Tribunal Federal – STF, no contexto da evolução do constitucionalismo brasileiro, não teve um desenvolvimento linear, mas suas inovações absorveram modificações jurídicas significativas. Superada a fase de criação do Supremo Tribunal de Justiça (1828), no Império, quando ficaram constitucionalmente resguardados apenas os seus poderes para decidir conflitos de jurisdição e alçada nas Relações, podemos dividir a evolução das competências do STF, para tratar de constitucionalidade de leis, em 5 (cinco) períodos republicanos marcados por situações jurídicas e políticas continuadas e diferenciadas, demonstrando cada vez maior complexidade, permitindo afirmar que qualquer negação das conquistas constitucionais qualitativas de 1988 é uma negação da própria institucionalização democrática no Brasil.

2. Evolução histórica

O primeiro período, influenciado pelo movimento republicano e federalista, resultou na implantação do Supremo Tribunal Federal – STF, na forma da Consti­tuição de 1891, permeada pelo liberalismo e pela ação nacional-unitária de Rui Barbosa. Essa Constituição definiu explicitamente suas competências para processar e julgar casos concretos (de inconstitucionalidade) em que os fundamentos da ação ou defesa se apoiassem em dispositivos constitucionais, assim como nas demandas para rever processos findos, bem como em contestações à Constituição sobre a validade de leis e de atos dos governos dos estados e tribunais. Estes propósitos, essencialmente comprometidos com a defesa dos direitos individuais, indicam o compromisso embrionário da ação indireta (ou controle difuso) de inconstitucionalidade com a garantia casuística dos direitos individuais ameaçados, mesmo com a ausência de instrumentos processuais próprios.

O segundo período de natureza social-liberal, com forte marca corporativista, pode ser estudado em duas fases distintas, sendo que a Constituição de 1934, presidida por Antonio Carlos Ribeiro de Andrade, de profunda base anti-oligárquica, ampliando as garantias individuais e indicando garantias sociais e corporativas, criou a Corte Suprema, definiu as garantias da Magistratura e inovadoramente, se referiu à competência da Corte Suprema para processar e julgar na forma de Recurso Extraordinário, sua base processual originária, situações concretas que envolvessem a vigência ou validade de lei, assim como a validade de lei ou atos de governos locais ou lei federal, em face da Constituição, ou mesmo decisões de tribunais que viessem a se negar a aplicar os seus acórdãos. Nessa linha, coube também a esta Constituição, de pouca durabilidade, criar, efetivamente, o controle difuso de constitucionalidade, a partir de casos concretos, nunca em tese, cuja fundamentação de defesa ou acusação estava relacionada a dispositivos constitucionais.

Interessantemente, nesta mesma fase, entendeu a Constituição, já procurando resguardar a supremacia dos poderes políticos aos poderes judiciais, que competia ao Senado Federal suspender a execução de qualquer lei ou ato, de liberação ou regulamento, quando fossem declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. Esta medida, como se percebe, embora inovadora, ficava restrita a decisões originárias do controle difuso (até porque ainda não estava na pauta das discussões constitucionais o problema do controle direto de constitucionalidade, qualitativamente de natureza diferenciada) e a deliberações, não apenas da Corte Constitucional, mas de qualquer instância do Judiciário. Em 1937, indicando uma segunda fase, com a ascensão do social trabalhismo, a Constituição outorgada do Estado novo, que sofreu forte influência de Francisco Campos, restaurou o Supremo Tribunal Federal – STF, sem que fizesse alterações de natureza substantiva ou processual nas suas competências. Resguardou, todavia, a ação indireta (controle difuso) de inconstitucionalidade através do Recurso Extraordinário, para apreciação de situações concretas frente à Lei Maior, não restando qualquer referência à competência do Senado para suspensão de qualquer deliberação do STF, até porque o Senado Federal ficara reduzido na sua representatividade e competência, como um corpo de coordenação.

O terceiro período, cuja natureza política era liberal democrática, na verdade, redimensionou as situações embrionárias das fases anteriores: na sua primeira fase, evoluiu com a retomada liberal democrática da Constituição de 1946, destacando-se Fernando de Mello Vianna na Presidência, sendo, curiosamente, o 4o Secretário da Mesa, Carlos Mariguella, membro do partido Comunista Brasileiro, e futuro (1968/69) comandante guerrilheiro. A Constituição liberal de 1946 não rompeu com as conquistas anteriores, institucionalizou a forma processual do Recurso Extraordinário para apreciação de questões concretas que tivessem referencia (in) constitucional, ficando, todavia, visível que a evolução das competências constitucionais se desse através de instrumentos jurídicos endógenos de natureza processual, internamente próprios da ordem jurídica, sem qualquer natureza autônoma ou específica.

Esta Constituição, no que se refere às decisões sobre (in) constitucionalidade de lei, manteve a competência do Senado para suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto, declarados inconstitucionais, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, uma posição compressiva sobre o STF. Esta postura demonstra que o texto liberal de 1946 entendia, em primeiro lugar, que prevalecia o poder político sobre o poder judicial, o que, historicamente, se pode entender que o Senado, enquanto patrono da lei geral, estava competente para interromper como efeito geral (erga omnes) declarações de inconstitucionalidade que se desenvolveram a partir de casos concretos individuais.

3. Constitucionalismo nos tempos autoritários

A segunda fase deste período, paradoxalmente, demonstra que o movimento revolucionário que se sucedeu a 1964, invadiu a estrutura liberal-democrática, através da Emenda Constitucional nº 16/1965, reformatando 1946. Esta Emenda dispunha que a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual deveria ser encaminhada pelo Procurador Geral da República, assim como cabia ao STF julgar as prejudiciais de inconstitucionalidade. Neste sentido, pela primeira vez uma Constituição brasileira se referiu à competência do Procurador Geral da República, nomeado pelo Presidente da República, já na fase militar, para provocar a apreciação de inconstitucionalidade de lei pelo STF, no fundo o cerne do controle direto de constitucionalidade de lei ou do que se poderia denominar ação direta de inconstitucionalidade de lei – ADIN. Esta orientação voltara a ocorrer nos tempos futuros, guardadas as indicações modificativas que indicaremos.

O quarto período da evolução das competências do Supremo Tribunal para tratar da inconstitucionalidade de lei, na sua primeira fase definitivamente rompeu com 1946, na forma da Constituição de 1967, onde se destacaram José Bonifácio Laffayette de Andrada e Auro Moura Andrade. Incorporou, todavia, o já tradicional dispositivo que dava competência ao Senado para suspender a execução de lei ou decretos, declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Não fugiu, genericamente, aos parâmetros da Emenda de 1965, mas não teve a força suficiente para resistir à Emenda Constitucional nº 1/1969, outorgada por uma Junta Militar, quando se destacou juridicamente Luís Antonio de Gama e Silva. Esta foi a mais radical das emendas do período militar e inaugurou a segunda fase autoritária da história republicana brasileira.

Esta Emenda nº 1/1969, na verdade uma nova Constituição, e aquelas que lhe sucederam, formataram, na verdade, um quadro jurídico que dificilmente poderia ser compreendido como uma Constituição pelos seus excessos intervencionistas e restritivos dos direitos individuais, mas manteve o Recurso Extraordinário, mesmo que apenas formalmente, como instrumento de declaração de inconstitucionalidade de lei ou de decisão que viesse a negar vigência a tratado ou lei federal, ou qualquer outro ato ou lei que negasse validade à Constituição Federal. A mais radical de suas posições, todavia, adveio com a atribuição de competência ao Procurador Geral da República para representar junto ao STF pedido de declaração por abuso de direito individual ou político, quando identificasse nos atos do agente propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, o que importava na sua suspensão de direitos. Este período, quando foram aposentados os Ministros Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins, evoluiu num contexto de radicalização autoritária que reduzia drasticamente o efeito ou as dimensões jurídicas, mesmo que de natureza processual, das decisões do Supremo (e, por extensão, de todo o Poder Judiciário).

4. Novos rumos do Constitucionalismo Brasileiro

Esses excessos acabaram levando a movimentos de abertura política e constitucional de reestruturação democrática do Estado brasileiro, construído a partir de forças e demandas exógenas à ordem jurídica, que cresceu independentemente das circunstâncias autoritárias. Por isto, ainda, não propriamente comum entre os constitucionalistas brasileiros da época, os ensinamentos de Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito) sobre a teoria da validez das normas constitucionais, tendo como pressuposto a alternância do “juízo lógico transcendental” (norma fundamental pressuposta). Neste mesmo período, ganhou significativo relevo jurídico a doutrina sobre a sociologia constitucional, tendo como indicador de aplicabilidade das normas constitucionalmente válidas a teoria da eficácia normativa, que, analiticamente, desenvolvemos em nossos livros Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário, Teoria e Sociologia do Direito e Hans Kelsen – Biografia e Adaptação Teórica resumida.

A postura Kelseniana influiu decisivamente na orientação adotada pela Constituição de 1988, que, independente­mente de absorver, exclusivamente, os mecanismos referentes à ação indireta de inconstitucionalidade, como controle difuso da Constituição, que marcou os períodos constitucionais anteriores, no quadro dos tradicionais mecanismos processuais endógenos, institucionalizou a profunda mudança juridicamente qualitativa, de força exógena que levou a criar a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei (ADIN) como instrumento de controle direto da Constituição ou ato normativo federal ou estadual, na incorporação coetânea do direito material e processual, evoluindo, ainda, para institucionalizar a declaração de inconstitucionalidade por omissão pelo poder público competente.

A Constituição de 1988, cujo Presidente foi Ulisses Guimarães, sendo “relator histórico”, nas palavras do próprio Presidente, Bernardo Cabral, e sub-relatores Fernando Henrique Cardoso, Pimenta da Veiga e Nelson Jobim, na primeira fase do seu quinto e definitivo período, deu um grande passo na modernização do constitucionalismo brasileiro. Os mecanismos processuais endógenos e dogmáticos de avaliação concreta ou casuística da constitucionalidade de leis ficaram restritos ao Recurso Extraordinário e a ADIN, no seu novo formato, adquiriu uma dimensão qualitativa própria e autônoma que evoluiu com a independência prospectiva do próprio STF em relação aos demais poderes.

A Emenda Constitucional de 1993, que caracteriza sua segunda fase, fortalece a proposta originária da ADIN, criando a ação declaratória de constitucionalidade de lei, o espaço do Supremo Tribunal Federal na apreciação de matérias que envolvam constitucionalidade de lei. Ressalte-se, todavia, que a Constituição de 1988, como observamos, seguindo a tradição constitucional brasileira, manteve o dispositivo referente à competência do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, que em princípio alcança a ADIN, mas, no nosso entendimento, exige uma apreciação especial exatamente devido à sua nova formatação qualitativa no contexto da ordem constitucional brasileira, que dá ao Supremo Tribunal Federal, pelo menos em tese, dimensão própria na definição do Direito Constitucional.

Neste sentido, pelo menos em princípio, o dispositivo define a competência do Senado Federal para suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF no quadro do Recurso Extraordinário, no limite das tradicionais competências do controle difuso, suscetíveis à ação do Senado para suspendê-la nos casos de ação direta de inconstitucionalidade de Lei. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN, no entanto, em sua forma constitucionalmente disposta, a decisão do Supremo tem força erga omnes, ou seja, tem efeito para todos os poderes, pré estabelecendo a sua orientação, o que deveria provocar uma reflexão mais profunda sobre a força suspensiva do Senado Federal. Fica evidente, desta forma, que o texto constitucional guarda duas grandes linhas de representação da inconstitucionalidade: aquela que explicita o controle difuso e a orientação expansiva do constitucionalismo brasileiro que tem efeito erga omnes e aquelas que evoluem a partir do contexto casuístico dos recursos extraordinários.

A mais evidente demonstração política desta situação é que não cabe agora apenas ao Procurador da República, órgão interno do Estado, a representação de inconstitucionalidade, mas também a outros poderes instituídos titulares da competência para a promoção da ADIN: o Presidente da República; a Mesa do Senado; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa da Assembleia Legislativa; o Governador do Estado; o Procurador Geral da República; assim como também são titulares desta mesma competência organismos da sociedade civil, como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Partidos Políticos com Representação no Congresso Nacional, Confederação Sindical ou entidades de classe de âmbito nacional. O desconhecimento desta especificidade, havendo a decisão, hipoteticamente poderia ser fulcro referencial de crise, entende, todavia, que o Procurador da República, enquanto órgão interno do Estado, escolhido entre seus pares, deverá ser previamente ouvido nas ações de inconstitucionalidade, mesmo que originárias da sociedade civil, e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal, assim como o Advogado Geral da União deve ser previamente citado, para defender o ato ou texto impugnado.

Esta posição, na verdade, é um indicativo de que a Constituição brasileira é um pressuposto de toda e qualquer discussão sobre a ordem jurídica, mesmo em tese, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal, o que não acontecera na sua história passada, a dimensão de efetivo poder competente para apreciar matéria de relevância jurídica, não apenas da perspectiva da ordem interna e seus recursos processuais, mas também a partir de demandas externas, não necessariamente comprometidas com situações fáticas, a constitucionalidade, e a inconstitucionalidade de leis. Esta posição se firmou como indicativo normativo prospectivo com a criação da figura da arguição de descumprimento de preceito fundamental da Constituição, o que se lhe permitiu que nas decisões definitivas de mérito, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei, os seus atos tivessem eficácia contra todos os efeitos vinculantes relativos aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo.

5. Conclusão

Finalmente, este texto, na forma redigida em que está, aventa a possibilidade de se reavaliar, através dos mecanismos constitucionais próprios, as dimensões de competência do Senado Federal, para apreciar a inconstitucionalidade de lei, declarada pelo STF no seu novo formato, devido à história restritiva do controle difuso, via Recurso Extraordinário, e a proposta expansiva da ADIN. Aliás, a mais evidente demonstração deste argumento deve-se ao fato de que a Constituição redigiu, em dispositivo próprio, a competência do STF para julgar mediante Recurso Extraordinário as causas que sempre decidira, quando a decisão recorrida em dimensões casuísticas e concretas divergirem do texto constitucional, a exata orientação predominante nas Constituições anteriores. Por estas razões especiais, negar ou resistir à implementação das dimensões estruturais, constitucionais da ação direta de inconstitucionalidade, caracteriza, por um lado, a redução dos seus efeitos em relação à prospecção futura de suas decisões ou uma reação negativa à própria história do constitucionalismo brasileiro como expressão consolidada do Estado Democrático de Direito. Na verdade, estamos diante de um especial dilema, reconhecer no Supremo a sua força constitutiva do direito ou a sua limitação para projetar juridicamente as dimensões futuras (e construtivas) do constitucionalismo brasileiro.