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Verdade e mentira nos regimes políticos sob a perspectiva do pensamento arendtiano

30 de maio de 2017

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1. Democracia e verdade no jogo político

“O perigo dos representantes do povo é que com frequência se limitam a representá-los em seus defeitos”. Albert Guinon

Em tese, a democracia seria uma forma de governo onde o poder seria exercido pelo povo através de mecanismos legítimos de participação na tomada das decisões políticas.Um conceito adequado, porém, deve refletir uma realidade plausível: uma meta que se pode alcançar. Quando buscamos uma definição, portanto, não trabalhamos somente em um plano semântico, mas desejamos que sua clareza explicativa facilite sua compreensão e, no Direito, sua aplicação. Podemos dizer que as expressões partem da realidade e da racionalidade. Não são nem totalmente arbitrárias nem independentes, pois vinculam-se a um mínimo de sentido comunitário, ainda que analógico. Uma definição lexicográfica é um princípio orientativo, já que delimita certas bases para um determinado conceito[1].

Por outro lado, tendo o Direito vida própria, não pode estar congelado no âmbito conceitual[2], porém, tão pouco pode depender excessivamente do social e do moral latu sensu. Nesse sentido, os conceitos e definições que servem à sua atividade podem progredir prudentemente ao longo da história, como é o caso, por exemplo, do termo democracia. Giovanni Sartori sublinha que “existe uma relação especial entre a política e a adulteração da linguagem”, que leva até à manipulação de conceitos. Cabe ainda destacar que a busca de um conceito ideal não é mera linguística, retórica, lógica ou gnosiologia, mas visa uma prática adequada, ou seja: conexão entre a concepção e a efetiva consecução. Os ingleses referem-se a eles como palavras operacionais[3].

Ainda que possamos dizer que o Direito apresenta conceitos claros e naturezas delineadas com relação a diversos dos seus institutos, parece-nos que o significado da tão desejada democracia se mostra ainda opaco e longínquo mesmo entre filósofos do Direito[4]. Alguns optam por uma redução a um determinado aspecto como a representatividade; outros frisam o império da soberania popular ou do Rule of Law. Porém, o que abrange efetivamente esse conceito em sua versão teórica e em sua aplicação prática com o desgaste dos séculos e os abusos totalitaristas vivenciados por nossa autora? É o que procuraremos evidenciar nos próximos tópicos.

Para tal, pensamos primeiramente delinear a concepção a partir de sua origem. Etimologicamente a palavra democracia tem raiz grega e se compõe dos termos demos, entendido como povo e kratos que significa poder.

Seu berço efetivamente foi a Grécia antiga, buscando a conjugação do poder político, da vida boa ou felicidade, da justiça e da economia. Nesse sentido, a questão se colocava no plano da gestão eficaz desses elementos, o que desembocou na noção de um regime democrático, onde o povo seria melhor representado em suas aspirações com relação à construção da polis e à manutenção de seus valores éticos.

Aristóteles será o artífice do regime, estruturando-o conceitualmente em sua obra “A Política”[5]. De qualquer forma, o autor não concebia a democracia como o regime ideal, mas sim como a pior das formas boas mas a melhor entre as variedades más, pois em tese abrangeria a liberdade e a igualdade em oposição à oligarquia. Por outro lado, o estagirita não atribuía a ela um caráter universal, destacando que os diferentes povos são vocacionados a diferentes regimes[6].

Classificava ainda a democracia em quatro modalidades: a de igualdade plena, a censitária, a constitucional e a popular, da qual desconfiava, equiparando-a a um tirano de mil olhos e mil braços, onde os demagogos controlam e imperam[7].

Conclui, por fim, que mesmo em uma democracia as leis deveriam governar em geral, dedicando-se os magistrados aos casos particulares[8], o que nos leva a destacar como caso central a democracia constitucional.

Esse termo foi também equiparado na modernidade com a democracia liberal, que se embasa no exercício da cidadania para chegar a sua plenitude, ou seja, o Estado Democrático de Direito. Por essa razão, Alexis de Tocqueville[9] ressalta a necessidade de uma educação que se projete à excelência e uma orientação política embasados na ética e na liberdade para sua consecução.

Por sua vez, a concepção de democracia na teoria arendtiana parece ser questionada pelas distintas tradições do pensamento político, pois é efetivamente difícil classificar a autora de acordo com as tradicionais categorias. Porém, aprofundando em seus escritos poderíamos encontrar uma certa proximidade à preocupação aristotélica com relação à conjugação de “político” e “social”, ainda que não seja abordada como tal nem sistematizada pela autora. A experiência vivenciada e tão bem narrada dos regimes totalitários levaram-na a temer a confusão que pode ocasionar uma “ditadura popular” manipulada, utilizando-se o povo para aumentar o próprio poder. Nesse sentido, por exemplo, Arendt enfatiza mais a autoridade e legitimidade para a autêntica ação política do que qualquer sentimento social compartilhado[10].

Seria ainda injusto afastá-la da tradição liberal por suas críticas à possibilidade de uma democracia representativa. De fato, Hannah Arendt foi uma defensora do constitucionalismo, do Estado Democrático de Direito e dos direitos humanos fundamentais. Porém, sua consecução tem uma profunda raiz filosófica, ou seja, a fundamentação a partir da ação humana que nesse plano será considerada desde o exercício pessoal de cidadania; de uma vontade pluralizada através de uma identidade coletiva e da efetiva prática (agency) das funções políticas[11].

Há, porém um elemento constante na teoria arendtiana com relação à factibilidade do político, de raiz antropológica[12], que é a veracidade. Como expõe o eminente Professor Celso Lafer, que bebeu na fonte a teoria da autora, sendo um discípulo direto dela, a mentira parece fazer parte pressuposta do jogo político fundamentando no conflito daqueles que o encaram como o confronto entre amigo-inimigo: “Neste contexto, política é guerra e como diz o provérbio, em tempos de guerra, mentiras por mar, mentiras por terra”[13].

Sob esta perspectiva, a veracidade é sinônimo de ingenuidade ou falta de estratégia, precisamente onde deveria servir como fundamento da confiança necessária para a interação humana democrática[14].

Essa é a ótica de Hannah Arendt ao filosofar sobre a verdade no jogo político, que parte da experiência da mentira produzida através da manipulação de fatos, linguagem e narrativa, já que estes “são mais frágeis do que axiomas”[15]. Quando se refere ao totalitarismo, a autora o define como o regime da mentira institucionalizada[16]. Esse tipo de regime doentio se nutre da simulação, do segredo e da criação de inimigos fictícios a serem combatidos sob a proteção do soberano-tirano, seja qual for sua “máscara” política.

De fato, a mentira é a forma intelectual do roubo. Arendt entende o quanto um regime que a alimente pode confiscar o respeito devido ao cidadão. Se efetivamente se quer governar democraticamente, o primeiro sinal de respeito é não enganar. Autores, como por exemplo, o Professor Luis Fernando Barzotto, consideram a verdade como um bem básico em teoria política[17].

Como afirma o Professor Lafer:

(…) a democracia pressupõe o respeito pela cidadania e o controle e a responsabilidade do poder, requer o direito dos governados a uma informação exata e honesta. A palavra dos governantes que mascara e esconde põe em questão o chão da vida política democrática(…) levando à apatia, ao cinismo, à indiferença que minam a confiança exigida pela democracia[18].

Porém, o que deveria ser pressuposto pela prática, parece de fato utopia. Como afirma Arendt em sua obra “Entre o Passado e o Futuro”, referindo-se à dificuldade em incluir a sinceridade entre as virtudes políticas:

Sempre se consideraram as mentiras como ferramentas necessárias e justificáveis ao ofício não só do político ou do demagogo, como também do estadista. Por que é assim?[19]

A partir dessa questão, a autora explica que efetivamente a verdade filosófica pode distanciar-se na prática da verdade factual, já que esta está sujeita à interpretação. Por outro lado, exemplifica ainda a partir do mito da caverna de Platão, que o ser humano prefere a ilusão à verdade.

Porém, ainda que a política possa depender de fatos e de suas interpretações, a autora rompe com o relativismo que poderia acarretar a manipulação justificada destes, o que a seu ver seria a anulação dos próprios fatos tais quais. Para Arendt, manusear a verdade, como mostra a experiência histórica totalitarista, por exemplo, através de sua ideologiza­ção é mentir descaradamente.

O político, por partidário, pode ver um aspecto da mesma verdade, visto de forma diferente, por outro, ou tratar de forma distinta aspectos opináveis sobre uma mesma realidade. O que não seria “fair-play” é enganar; tergiversar a verdade conscientemente e tal de forma apregoá-la, que o próprio manipulador já não a distingue. É o que infelizmente temos vivenciado continuamente ao longo da crise ético-política que vem assolando nosso país, onde os protagonistas parecem estar naufragados em uma “convicta” mentira existencial, com ares teatrais ou mesmo esquizofrênicos. Porém, como afirma Arendt, a persuasão no jogo político pode destruir a verdade, mas não substituí-la[20]. Nesse sentido, voltamos à teoria da ação, onde a veracidade deveria ser promovida, vivida e exigida em todos os polos da relação como base do justo político.

2. O papel da mídia

“Quem controla o passado dirige o futuro. Quem dirige o futuro, conquista o passado” (GEORGE ORWELL).

Para demonstrarmos o papel da mídia, o chamado quarto poder, precisamos de um questionamento: quem cria e dissemina as crenças que dominam a população brasileira hoje? A casta dos jornalistas.

Eles criam os valores, as crenças, os critérios de julgamento, a diferença entre o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente. A mídia tem o poder de absolver, condenar, aplaudir, vaiar, etc., induzindo as massas.

A imprensa realiza um papel fundamental no jogo político. Utilizando um exemplo da recente história brasileira: sem a Rede Globo, o ex-presidente Fernando Collor de Mello teria uma dificuldade muito maior de ser eleito para o principal cargo do Poder Executivo.[21]

Para Hannah Arendt, “a raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio é a ação”.[22] Para ser livre e exercer uma ação, no mundo moderno, o ser humano precisa de um mínimo de informação, para poder orientar da melhor forma possível a sua atitude. Sócrates acreditava que se a verdade estivesse do seu lado, a opinião dos homens não valia nada. Passados aproximadamente 2400 anos, a conjuntura modificou deveras.

A mídia impede que a verdade no jogo político realmente emerja, criando um teatro jornalístico, no qual o telespectador/leitor é coberto por um véu de ignorância. Vejamos quais são as consequências imediatas de uma mídia parcial.

Eric Voegelin, contemporâneo de Hannah Arendt, afirmava que as condições para a democracia já não existiam. De um lado, o governo se transfigurou em administração. A máquina estatal cresceu de tal forma e em tal velocidade, que é absolutamente impossível que o cidadão comum consiga apreender o seu funcionamento. Do outro, as novas classes que surgiram (proletários, funcionários públicos, pequenos burgueses, estudantes universitários, etc.) passaram a abrir mão da liberdade individual e acreditar no planejamento coletivo por parte do Estado; uma espécie do “homem-massa”, concebido por Ortega Y Gasset. Diante disso, a liberdade de opinião se tornou a capacidade de reproduzir os jargões narrados pela mídia.

Frases soltas, fora de contexto e interpretadas da pior maneira possível, via de regra, são estampadas nas primeiras páginas dos jornais com manchetes em letras garrafais. Caso seja comprovada a má-fé do veículo de comunicação que noticiou o ocorrido, dificilmente se encontrará um pedido de desculpas, e, caso ocorra, jamais será tão impactante quanto à mentira antes anunciada.

3. O fenômeno da desinformação

“Uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade” (JOSEPH GOOEBBELS).

Importante salientar aqui a diferença existente entre falsa informação e desinformação. A mídia moderna tem operado mais a partir do segundo molde do que do primeiro, provocando um estrago bem maior. Falsa informação, por exemplo, é um jornal de Moscou publicar uma notícia contra o governo americano. A falsa informação é facilmente desmentida, porque vem de um veículo que é notoriamente hostil. [23]

A desinformação ocorre quando uma falsa mentira é proferida por um veículo de comunicação que é da confiança do consumidor. Por exemplo, a história do Papa de Hitler apareceu pela primeira vez no dia 7 de junho de 1945 na Rádio Moscou. Ninguém deu muita importância, considerando que o Papa Pio XII foi um dos poucos governantes que protegeu os judeus durante a guerra. Organizações judaicas avançaram para defender o Papa; Albert Einstein fez declarações favoráveis ao Papa; o rabino-chefe de Roma, Israel Zolli, converteu-se ao catolicismo e adotou o nome de Eugenio em homenagem ao Papa e a mentira foi totalmente desmascarada. Passados 18 anos, a mesma calúnia apareceu na peça “O Vigário”, de autoria de Rolf Hochuuth e, mais recentemente, no livro “O Papa de Hitler”, do John Cornwell. Ou seja, quando a informação foi lançada por Moscou, o Ocidente logicamente identificou que a URSS era inimiga da Igreja Católica e se posicionou de forma contrária à mentira. No entanto, quando a fonte se torna ocidental, os cidadãos tendem a confiar na narrativa.

A política brasileira tem sido rodeada por mentiras e falsas informações, divulgadas pela imprensa e aplaudidas por determinados grupos de interesses. E basta uma opinião divergente para se ter a reputação assassinada e a imagem exposta em praça pública, principalmente se a conduta for íntegra e coerente.

As frases de Celso Lafer a partir da ótica arendtiana a respeito da derrogação da verdade pela aceitação da mentira parecem continuar sendo aplicáveis ao atual contexto brasileiro, ainda que tão sedento de justiça: “a proliferação generalizada da mentira, do segredo, da dissimulação – presentes nas incontáveis ‘versões’ governamentais sobre tantos fatos despropositados (…) instiga uma reflexão sobre a mentira na prática política de nosso país[24]”.

Terminamos também com as palavras finais deste caro professor no artigo mencionado: “Deixo ao leitor a tarefa de qualificar o enquadramento de tantos membros do atual governo e de seus próximos[25]”, não só para julgá-los, mas para buscar soluções para passar a limpo até o fim nosso já tão desrespeitado Brasil.

 

Referências bibliográficas_____________________________

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1988.

________________ Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.

________________ The promisses of politics: edited and with an introduction by Jerome Kohn. New York: Soloken Books, 2005.

ARISTOTLE. Politics. New York: Walter J. Black. 1943

CONTI, Mário Sérgio. Notícias do Planalto: a imprensa e Fernando Collor. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1999.

HART, H. L. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. São Paulo: Elsevier, 2010.

LAFER, Celso. Sobre a mentira. Publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 20/07/2008.

PACEPA. Ion Mihai. Desinformação. São Paulo: Vide Editorial, 2015.

SARTORI. Giovani. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ed. Ática. 1994.

TOCQUEVILLE. Alexis de. Democracy in America and two essays on America. London: Penguin Classics. 2003.

WOLIN, Sheldon. Hannah Arendt: democracy and the political. Salgamundi: n. 60. Saratoga: Skidmore College, 1983.

 

Notas_____________________________

1 Giovanni Sartori, A Teoria da Democracia Revisitada, São Paulo, Ed. Ática, 1994, p. 9 et seq.

2Begriffshimmel x Begriffsjurisprudenz, em HART, H.L. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia, São Paulo, Elsevier, 2010, p. 304 et seq.

3 HART, 2010, p. 311.

4 Ibidem.

5 ARISTOTLE. Politics. New York: Walter J. Black, 1943.

6 Ibidem, livro IV, capítulo IV.

7 Ibidem.

8Ibidem.

9 Tocqueville, Alexis de. Democracy in America and Two Essays on America. London: Penguin Classics, 2003.

10 WOLIN, Sheldon. Hannah Arendt: Democracy and the Political. Salgamundi, n. 60, p. 3-19. Saratoga: Skidmore College, 1983.

11 ARENDT, Hannah. The promisses of Politics. Edited and with an introduction by Jerome Kohn. New York: Schoken Books, 2005.

12 Ibidem.

13 LAFER, Celso. Sobre a Mentira. Publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 20/07/2008.

14 Ibidem.

15 Ibidem.

16 ARENDT, Hannah. As origens do Totalitarismo. São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 1988.

17 Aula UFRGS, 2013.

18 LAFER, 2008.

19 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p. 296.

20 Ibidem, p. 320.

21 “Roberto Marinho aderiu à candidatura de Collor porque era a que tinha mais condições de derrotar Lula e Brizola”. Ver Notícias do Planalto, Mario Sergio Conti.

22 ARENDT, 2001, p. 192

23 Ver Ion Mihai Pacepa; Desinformação, São Paulo, Vide Editorial, 2015.

24 LAFER, 2008.

25 LAFER, 2008.