O direito de greve dos agentes públicos e o poder normativo da Justiça comum

28 de maio de 2015

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Valter_Shuenquener1. O direito de greve no ordenamento jurídico brasileiro

Não é de hoje que, no Brasil, agentes públicos realizam greves como um instrumento legítimo para a concretização de suas pretensões. A insatisfação com o padrão remuneratório, as condições de trabalho e as opções políticas dos dirigentes públicos situam-se entre as principais causas do movimento paredista.

Sobre a temática, o texto constitucional prevê, em seu art. 37, inciso VII, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) no 19/1998, que o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica. Em um primeiro momento, o STF vislumbrou, no dispositivo, uma norma de eficácia limitada, isto é, que não poderia produzir efeitos até que fosse regulamentada. Esse posicionamento pode ser identificado, a título de ilustração, no Mandado de Injunção (MI) no 20 da relatoria do Ministro Celso de Mello, de cuja ementa devem ser destacados os seguintes trechos:

MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO – DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL – EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO – MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO – PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) – IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR – OMISSÃO LEGISLATIVA – HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO – RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL – IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE – ADMISSIBILIDADE – WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO: O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em consequência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta – ante a ausência de autoaplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição – para justificar o seu imediato exercício. O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. […] Precedentes e doutrina.

(MI 20, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 19/05/1994, DJ 22-11-1996 PP-45690 EMENT VOL-01851-01 PP-00001)

A despeito da compreensão originária do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o alcance normativo do art. 37, inciso VII, da Constituição da República Federativa do Brasil isso não impediu que diversas categorias de agentes públicos deflagrassem greves, especialmente porque o referido fato social poderá ocorrer independentemente de autorização expressa do texto constitucional. Diante dessa realidade, e, também, da inércia do Poder Legislativo na aprovação de uma lei que discipline o direito de greve dos agentes públicos, o STF avançou e passou a reconhecer que o direito de greve pode ser exercido por servidores públicos, nos termos do que dispõe a Lei no 7.783/1989.

São, deveras, conhecidos os Mandados de Injunção no 670, no 708 e no 712 julgados pelo STF, mormente porque foi neles que a referida Corte decidiu pela aplicabilidade da Lei de Greve aos trabalhadores da iniciativa privada. Da ementa do MI no 712, por exemplo, podem ser extraídos os seguintes trechos que sintetizam o atual entendimento do STF a respeito do tema:

EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. ART. 5o, LXXI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À NORMA VEICULADA PELO ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEGITIMIDADE ATIVA DE ENTIDADE SINDICAL. GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL [ART. 9o DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL No 7.783/1989 À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ATÉ QUE SOBREVENHA LEI REGULAMENTADORA. PARÂMETROS CONCERNENTES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS DEFINIDOS POR ESTA CORTE. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO ANTERIOR QUANTO À SUBSTÂNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO. […] INCUMBE AO PODER JUDICIÁRIO PRODUZIR A NORMA SUFICIENTE PARA TORNAR VIÁVEL O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS, CONSAGRADO NO ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. […] 2. A Constituição do Brasil reconhece expressamente possam os servidores públicos civis exercer o direito de greve – artigo 37, inciso VII. A Lei no 7.783/1989 dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, afirmado pelo artigo 9o da Constituição do Brasil. Ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis. […] 5. Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tribunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. 6. A greve, poder de fato, é a arma mais eficaz de que dispõem os trabalhadores visando à conquista de melhores condições de vida. Sua auto-aplicabilidade é inquestionável; trata-se de direito fundamental de caráter instrumental. […] 16. Mandado de injunção julgado procedente, para remover o obstáculo decorrente da omissão legislativa e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil. (MI 712, Relator(a): Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007, DJe-206 Divulg 30-10-2008 Public 31-10-2008 Ement Vol-02339-03 PP-00384)

Por sua vez, a lei de greve da iniciativa privada, Lei no 7.783/1989, a ser aplicada, por analogia, aos servidores públicos é dotada de algumas características nucleares, que podem ser assim resumidas:

a)Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembleia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços; b) As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa; c) A Justiça do Trabalho, por iniciativa de qualquer das partes ou do Ministério Público do Trabalho, decidirá sobre a procedência, total ou parcial, ou improcedência das reivindicações, cumprindo ao Tribunal publicar, de imediato, o competente acórdão; d) Serão mantidas em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento; e) Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. Na greve, em serviços ou atividades essenciais, ficam as entidades sindicais ou os trabalhadores, conforme o caso, obrigados a comunicar a decisão aos empregadores e aos usuários com antecedência mínima de 72 (setenta e duas) horas da paralisação.

Assim, com a exceção de algumas categorias específicas de agentes públicos, os servidores públicos, estáveis ou não, estão autorizados a exercer o direito de greve nos termos da Lei no 7.783/1989, não podendo o exercício desse direito ser considerado fato desabonador da conduta do servidor e ensejar punição disciplinar.

Quanto ao tópico, ressoa equivocada a exegese que conclua pela ampliação da proibição do exercício direito de greve, de modo a alcançar categorias profissionais que não foram contempladas, expressamente, pela vedação do texto constitucional, tal como ocorreu com os militares. A greve é direito fundamental do trabalhador, previsão universalmente assegurada a quem trabalha como um instrumento de resistência e mudança social. E o direito encontra limites e busca referências nos fatos sociais. Nunca é demais rememorar as lições de Giorgio de Vecchio que, assim, pontificou:

Uma já milenária experiência mostra que a tentativa de desconhecer as prerrogativas naturais da pessoa humana por parte do ordenamento jurídico positivo, inevitavelmente conduz a resistências e a sublevações. (VECCHIO, Giorgio del. Lições de filosofia do direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1972. p. 265, vol. 2.)

Quanto ao tema, deveras relevante para a Sociologia do Direito, a definição de fato social plasmada por Émile Durkheim é a que segue:

[…] toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais.

A greve resulta de uma manifestação exterior à deliberação individual do servidor; surge como fenômeno exterior ao indivíduo e dotado de um poder de coerção que lhe é imposto. A prova disso é que, quando a categoria delibera pela greve, o indivíduo a ela contrário não terá, considerado isoladamente, forças para impedi-la. Na arguta percepção de Durkheim sobre o que deveríamos compreender como fato social, o consagrado sociólogo predica que “não deixa o ar de ser pesado, embora não lhe sintamos mais o peso”. Há, assim, uma profunda imbricação entre o Direito e os costumes, assim como entre o ordenamento jurídico e, no dizer de Reinhold Zippelius, a “participação viva, activa e constitutiva por parte dos indivíduos”.

Nesse diapasão, de nada adiantará uma interpretação que proíba o exercício do direito de greve, se a categoria profissional não tiver outros instrumentos de convencimento à sua disposição além do poder resultante da paralisação. O Direito não pode querer ser mais realista que a própria realidade e a necessidade, inerente a todo e qualquer ser humano, de recompor o que é justo. No dizer de John Rawls, “não podemos, pelo menos em certas ocasiões, querer um mundo social no qual os outros ficassem sempre indiferentes à nossa sorte em tais situações”. A título de ilustração, a conclusão de que Auditores Fiscais integram uma carreira típica de estado e que, portanto, não poderiam deflagrar uma greve, não surtirá o efeito desejado, se a categoria não for ouvida com seriedade pelo Poder Público nas suas reivindicações.

2. Da competência para o julgamento da legalidade do direito de greve

Além de ter permitido a incidência da Lei de Greve da iniciativa privada para os agentes públicos, o STF, também, decidiu a respeito da competência para o julgamento dos dissídios coletivos em que servidores públicos sejam partes quando do julgamento do MI no 670. No referido writ, determinou-se a aplicação analógica da Lei no 7.701/1988, que cuida da competência para o julgamento dos referidos conflitos no âmbito das relações privadas. Seguem abaixo os principais trechos da ementa do MI no 670, julgado em que restou assentado o referido posicionamento, verbis:

EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. […] DEFINIÇÃO DOS PARÂMETROS DE COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL PARA APRECIAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA FEDERAL E DA JUSTIÇA ESTADUAL ATÉ A EDIÇÃO DA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA PERTINENTE, NOS TERMOS DO ART. 37, VII, DA CF. […] MANDADO DE INJUNÇÃO DEFERIDO PARA DETERMINAR A APLICAÇÃO DAS LEIS Nos 7.701/1988 E 7.783/1989. […] 5.3. No plano procedimental, afigura-se recomendável aplicar ao caso concreto a disciplina da Lei no 7.701/1988 (que versa sobre especialização das turmas dos Tribunais do Trabalho em processos coletivos), no que tange à competência para apreciar e julgar eventuais conflitos judiciais referentes à greve de servidores públicos que sejam suscitados até o momento de colmatação legislativa específica da lacuna ora declarada, nos termos do inciso VII do art. 37 da CF. 5.4. […] 6.2. Nessa extensão do deferimento do mandado de injunção, aplicação da Lei no 7.701/1988, no que tange à competência para apreciar e julgar eventuais conflitos judiciais referentes à greve de servidores públicos que sejam suscitados até o momento de colmatação legislativa específica da lacuna ora declarada, nos termos do inciso VII do art. 37 da CF. 6.3. […] Assim, nas condições acima especificadas, se a paralisação for de âmbito nacional, ou abranger mais de uma região da justiça federal, ou ainda, compreender mais de uma unidade da federação, a competência para o dissídio de greve será do Superior Tribunal de Justiça (por aplicação analógica do art. 2o, I, “a”, da Lei no 7.701/1988). Ainda no âmbito federal, se a controvérsia estiver adstrita a uma única região da justiça federal, a competência será dos Tribunais Regionais Federais (aplicação analógica do art. 6o da Lei no 7.701/1988). Para o caso da jurisdição no contexto estadual ou municipal, se a controvérsia estiver adstrita a uma unidade da federação, a competência será do respectivo Tribunal de Justiça (também por aplicação analógica do art. 6o da Lei no 7.701/1988). As greves de âmbito local ou municipal serão dirimidas pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal com jurisdição sobre o local da paralisação, conforme se trate de greve de servidores municipais, estaduais ou federais. […] Nesse contexto, nos termos do art. 7o da Lei no 7.783/1989, a deflagração da greve, em princípio, corresponde à suspensão do contrato de trabalho. Como regra geral, portanto, os salários dos dias de paralisação não deverão ser pagos, salvo no caso em que a greve tenha sido provocada justamente por atraso no pagamento aos servidores públicos civis, ou por outras situações excepcionais que justifiquem o afastamento da premissa da suspensão do contrato de trabalho (art. 7o da Lei no 7.783/1989, in fine). 6.5. Os tribunais mencionados também serão competentes para apreciar e julgar medidas cautelares eventualmente incidentes relacionadas ao exercício do direito de greve dos servidores públicos civis, tais como: i) aquelas nas quais se postule a preservação do objeto da querela judicial, qual seja, o percentual mínimo de servidores públicos que deve continuar trabalhando durante o movimento paredista, ou mesmo a proibição de qualquer tipo de paralisação; ii) os interditos possessórios para a desocupação de dependências dos órgãos públicos eventualmente tomados por grevistas; e iii) as demais medidas cautelares que apresentem conexão direta com o dissídio coletivo de greve. […] 6.7. Mandado de injunção conhecido e, no mérito, deferido para, nos termos acima especificados, determinar a aplicação das Leis no 7.701/1988 e no 7.783/1989 aos conflitos e às ações judiciais que envolvam a interpretação do direito de greve dos servidores públicos civis. (MI 670, Relator(a): Min. Maurício Corrêa, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 25/10/2007, DJe-206 Divulg 30-10-2008 Public 31-10-2008 Ement Vol-02339-01 PP-00001 RTJ Vol-00207-01 PP-00011) (Grifamos)

Em razão do que decidido pelo STF, se uma paralisação for deflagrada por servidores públicos federais, e o seu âmbito territorial ficar adstrito a uma única região da Justiça Federal, a competência originária para o julgamento da sua legalidade será do respectivo Tribunal Regional Federal. Se ela for realizada por servidores federais e tiver um âmbito que ultrapasse uma região da Justiça Federal, ou tiver um caráter nacional, será julgada originariamente pelo STJ. Por outro lado, se os servidores grevistas forem estaduais ou municipais, a competência originária para o julgamento do referido dissídio será do respectivo Tribunal de Justiça.

3. Das medidas judiciais a serem tomadas pelo Tribunal competente no julgamento da legalidade do direito de greve

3.1 Da decisão sobre o corte de ponto dos grevistas

Quando uma greve é deflagrada, presume-se, tal como reconhecido na ementa acima transcrita, a suspensão do contrato de trabalho, o que enseja, via de regra, o não pagamento dos dias paralisados. Trata-se da primeira e mais usual providência adotada pela Administração Pública, medida que acaba, na maioria das vezes, contendo a força da paralisação.

No âmbito do STF, o tema, deveras polêmico, da possibilidade de corte do ponto dos grevistas está pendente de julgamento em sede de repercussão geral no AI 853.275/RJ da relatoria do Ministro Dias Toffoli.

Por seu turno, o projeto de lei que tramita no Senado para disciplinar o direito de greve dos servidores (PLS no 710/2011) estampa, em seu artigo 11, que um dos efeitos imediatos da greve é a suspensão do pagamento da remuneração correspondente aos dias não trabalhados. De modo a demonstrar como o tema é delicado, é preciso registrar que outro projeto de lei em tramitação no Poder Legislativo federal, o PL no 4.497/2001 que tramita na Câmara dos Deputados predica, sobre o mesmo tema, regra distinta no seu art. 9o, qual seja:

[…] os dias de greve serão contados como de efetivo exercício para todos os efeitos, inclusive remuneratórios, desde que, após o encerramento da greve, sejam repostas as horas não trabalhadas, de acordo com o cronograma estabelecido conjuntamente pela Administração e entidade sindical ou comissão de negociação.

Em relação ao corte do ponto, parece-nos mais apropriado permitir o que previsto no art. 9o acima transcrito. De um lado, admite-se o desconto, com fulcro na lógica de que o contrato de emprego fica suspenso durante a paralisação, mas, por outro, a perda salarial deixará de existir, no caso de reposição das horas não trabalhadas, medida eficaz para viabilizar o fim da greve e atender os interesses do poder público e dos servidores. Sob outro enfoque, não é razoável que a Administração desconte os dias não trabalhados pelo servidor que não aderiu à greve, mas que ficou impossibilitado de exercer suas atividades por ato dos grevistas. Por isso, a Administração Pública deverá, ao início e durante o período de greve, manter em seus assentamentos o registro dinâmico de quem está participando da greve.

3.2. Das medidas visando à preservação da continuidade do serviço público e para coibir a violência e a ocorrência de danos durante as greves

A autoridade judicial competente para decidir sobre a legalidade do direito de greve, também, tem competência para determinar, até mesmo de ofício e com lastro no seu poder geral de cautela, providências necessárias para o restabelecimento da ordem pública, continuidade dos serviços públicos e medidas destinadas a evitar a prática de atos violentos.

Nesse contexto, e à semelhança do que previsto no National Labor Relations Act norte-americano, uma greve deve ser considerada ilegal, por exemplo, quando: i) os grevistas impedirem fisicamente as pessoas de livremente transitar no local de trabalho; ii) os grevistas ameaçarem com violência os trabalhadores que não aderirem à greve e quando os grevistas atacarem os representantes dos empregadores. Nessas circunstâncias, incumbirá ao Poder Judiciário fazer preservar os bens jurídicos tutelados pela Constituição da República, em especial o princípio da continuidade dos serviços públicos, o direito à livre iniciativa e o direito de propriedade.

4. O papel de mediador do Poder Judiciário

Assim como ocorre no âmbito da Justiça especializada do Trabalho, a Justiça comum terá de, na atual quadra histórica, estimular e conduzir o processo de mediação visando à extinção do dissídio coletivo que tenha como uma das partes os servidores públicos. As partes não podem se recusar a participar – com honestidade de propósito – de uma negociação coletiva, mormente quando determinada judicialmente. Nos Estados Unidos da América, verbi gratia, a Seção 8 da National Labor Relations Act predica que configura uma prática laboral desonesta (unfair labor practice) a recusa do empregador ou da entidade sindical representante dos empregados a participar de uma negociação coletiva (bargain collectively).

O estímulo à mediação é, aliás, instrumento de reforço à legitimação democrática das decisões do próprio Judiciário, em especial do STF, dado o seu nítido caráter de órgão estatal contramajoritário. Por meio da mediação, o pronunciamento da Corte será tomado após o necessário e intenso diálogo travado pelas partes e que poderá fazer reluzir o consenso. Cuida-se da aprovação no debate público a que se refere a doutrina como meio para a ampliação da legitimidade na atuação jurisdicional. Nesse cenário, em que colidem princípios e direitos de envergadura constitucional, a participação do Judiciário reforça a democracia.

No âmbito do STF, o Ministro Luiz Fux demonstrou pioneirismo ao convocar, por mais de uma ocasião, servidores e sindicatos para um processo de mediação visando à cessação de greves realizadas por servidores públicos. Tive a oportunidade de, na condição de Juiz Auxiliar do referido ministro, participar do processo de mediação no STF e pude verificar o quanto se revela importante a abertura de um canal de diálogo – também, no âmbito do Poder Judiciário – para que os representantes do Poder Público e dos servidores possam negociar e chegar ao desejado término da paralisação.

Nesse contexto, foi marcante a mediação conduzida para pôr fim à greve dos professores da rede pública do estado do Rio de Janeiro. Em 2013, os professores do município e do estado do Rio de Janeiro encontravam-se em greve pelo maior tempo da história. Os alunos estavam perdendo o semestre letivo e não se chegava a um acordo. Em uma Reclamação ajuizada pelo Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE/RJ), a Rcl no 16.535, alegou-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) estaria inviabilizando o exercício do direito de greve daquela categoria de servidores. Em lugar de, apenas, apreciar se as teses defendidas pelo sindicato Reclamante estavam corretas, o ministro Luiz Fux inaugurou um processo integrado por reuniões e debates visando à cessação do estado de greve. Aberto o canal de diálogo, foi obtido um acordo em que o poder público atendeu grande parte das reivindicações dos servidores do magistério, tal como o abono das faltas durante a greve, e, em contrapartida, os professores se comprometeram a retornar imediatamente ao trabalho. Tenho plena convicção de que, se o processo de mediação não tivesse ocorrido, a greve teria durado muito mais tempo e em profundo detrimento dos interesses da coletividade.

Em 2014, também foi feita uma bem-sucedida mediação pelo Ministro Luiz Fux na greve da Guarda Municipal do Rio de Janeiro ocorrida na Reclamação no 17.320, que, também, tive a oportunidade de acompanhar bem de perto, tendo participado de todas as reuniões e debates. Naquela oportunidade, a Presidência do TJRJ havia reconhecido que a categoria dos Guardas Municipais não poderia realizar greve, dado o seu caráter paramilitar, e fixado uma multa diária de R$100 mil reais, caso os servidores não retornassem ao trabalho. Contra o referido entendimento, o sindicato representante dos guardas municipais foi ao STF para desconstituir a decisão do TJRJ que reconhecera a ilegalidade da greve. Em lugar de se limitar a decidir se a greve dos Guardas Municipais era lícita, bem como se era possível ou não cortar o ponto dos grevistas, o Ministro Luiz Fux conduziu um processo de mediação que levou à extinção da greve dos guardas e permitiu que a Copa do Mundo fosse realizada sem o risco de nova paralisação, porquanto o município atendeu grande parte das reivindicações feitas pelos representantes dos Guardas Municipais.

A negociação coletiva que tem o Estado como parte fatalmente tangenciará matérias de interesse de toda a coletividade, isto é, temas de caráter orçamentário, disciplinar (quando houver, por exemplo, necessidade de extinção de processos disciplinares e abono de faltas), e concernentes ao regime do servidor. Por essa razão, ressoa deveras oportuno que, ao longo do processo de mediação, o Tribunal de Contas do ente da federação em que os servidores se encontram em greve seja ouvido. Não que a aprovação prévia da Corte de Contas das condições aceitas pelo Poder Público no acordo obtido seja uma condição para a obtenção do acordo destinado a pôr fim à greve. Contudo, o Tribunal de Contas tem como uma de suas missões estampadas na Constituição da República, art. 71, incisos I e II, a de opinar sobre as contas anualmente prestadas pelo chefe do Poder Executivo e a de julgar as contas dos demais administradores e responsáveis por recursos públicos. A fim de evitar que o Poder Executivo assuma compromissos com os grevistas capazes de caracterizar uma ilegalidade, é recomendável que a Corte de Contas seja um partícipe desse tão relevante processo de mediação, seja na fase extrajudicial ou judicial. Na precisa definição de Carlos Ayres Britto, “os Tribunais de Contas se assumem como órgãos impeditivos do desgoverno e da desadministração”.

5. O poder normativo da Justiça Comum no enfrentamento de dissídios coletivos

No cenário contemporâneo, em que o Poder Judiciário passa a ser instado a proferir decisões que visam à extinção de dissídios coletivos que tenham servidores públicos como parte, é imperioso reconhecer poderes ao magistrado para o desempenho eficaz desse mister. A resolução de uma greve pode demandar do magistrado a imposição de deveres às partes que não lograram êxito na obtenção de um acordo. Quando o Poder Judiciário tiver de decidir dissídios coletivos promovidos por servidores públicos, o órgão julgador deve ter competência para o exercício do poder normativo, à semelhança do que já ocorre no âmbito da Justiça do Trabalho. No julgamento de dissídios coletivos, a Justiça do Trabalho tem exercido, e com razoável proficiência, o seu poder normativo. Em linhas gerais, esse poder pode ser definido como o poder que o magistrado possui de editar regras gerais, normas de conteúdo normativo para, na definição de Amauri Mascaro Nascimento, “decidir um conflito coletivo fixando normas e condições de trabalho”.

De nada adiantaria entregar ao Judiciário o poder de decidir se uma greve é legal ou ilegal, se ele não tiver meios para, reconhecendo que uma paralisação está em conformidade com o ordenamento jurídico, extingui-la impondo deveres que entenda sejam necessários para restabelecer a justiça e a paz social. Nesse cenário, o magistrado poderá, por exemplo, obrigar os servidores a retornar ao trabalho em determinado prazo e obrigar o estado a conceder alguma ou algumas das pretensões apresentadas pelos trabalhadores. E isso não deixa de fora a possibilidade de o magistrado obrigar o Estado a conceder um determinado reajuste ou benefício pecuniário à categoria em greve, desde que a pretensão seja justa e imprescindível para dirimir o conflito e por fim à greve. A decisão judicial aditaria a lei que cuida do regime jurídico do servidor em greve, tal como, no âmbito privado, o provimento da Justiça do Trabalho também serve de aditamento ao contrato de emprego firmado entre as partes. E cumpre registrar que o aditamento à lei que disciplina o regime jurídico do servidor (e não a um contrato de emprego, como ocorre nas relações privadas) resultante do poder normativo não encontra obstáculos no sistema republicano, e nem mesmo nos princípios basilares da democracia, tendo em vista ser oriundo de uma atuação legítima do Judiciário necessária ao encerramento do dissídio e imprescindível para a concretização de valores maiores estampados na Constituição da República. Aliás, esse tema da possibilidade de exercício do poder normativo no âmbito da Justiça Comum terá de ser enfrentando pelo STF. É que, ao regulamentar o processamento do dissídio coletivo por greve realizada por servidores públicos, o Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) estipulou, em seu art. 245, a possibilidade de exercício do poder normativo pelo Órgão Especial do TJSP para encerrar uma paralisação. O dispositivo foi impugnado em sede de ação direta que tramita no STF (ADI no 4.417). Nada revolucionário quanto a essa previsão normativa, especialmente porque sem este poder, o Judiciário teria muito pouco. Sua atuação seria a de unicamente dizer se a greve é válida ou não. E, se por um lado, o reconhecimento de que uma greve é ilegal, acompanhado da imposição de multa ao sindicato respectivo, não tem solucionado o problema, por outro a mera declaração judicial de que uma greve é válida também não surte qualquer efeito prático que solucione o conflito. É preciso avançar para que o dissídio coletivo envolvendo servidores públicos possa ser dirimido com o emprego das mesmas ferramentas colocadas à disposição da Justiça do Trabalho por meio do seu poder normativo. Dito de outra forma, a regra veiculada pelo art. 114, § 2o da Constituição da República deve ser aplicada, por analogia, nos dissídios submetidos à apreciação da justiça comum que tenham como parte servidores públicos. A Justiça Comum também precisa, à semelhança do que já ocorre no âmbito da Justiça especializada do Trabalho, dar uma resposta-solução ao conflito.

6. Conclusões

1) A feliz superação da jurisprudência do STF que, inicialmente, entrevia no direito de greve dos servidores públicos previsto constitucionalmente uma norma jurídica de eficácia limitada, ensejou a aplicação, por analogia, a esses agentes públicos, do regime previsto na Lei no 7.783/1989 e no 7.701/1988, normas criadas para disciplinar o exercício do direito de greve, bem como a competência para o seu julgamento no âmbito das relações privadas.

2) Na percepção do STF, o exercício do direito de greve pelo servidor público não pode ser encarado como fato desabonador de sua conduta e o seu regular exercício independe da aquisição de estabilidade no cargo.

3) Dada a sua natureza de fato social, consoante visão durkheimiana, e a despeito do posicionamento atual do STF, não ressoa oportuno o entendimento destinado a ampliar a proibição do exercício do direito de greve a categorias profissionais outras além dos militares. A greve, que não deve ostentar um caráter violento, é instrumento que vocaliza a resistência, o inconformismo e, na maioria dos casos, o único fenômeno capaz de inaugurar um canal de diálogo necessário à obtenção da resolução do conflito existente entre o trabalhador e o seu contratante.

4) Em relação à competência para o julgamento da juridicidade do exercício do direito de greve, se uma paralisação for deflagrada por servidores públicos federais e o seu âmbito territorial ficar adstrito a uma única região da Justiça Federal, a competência originária para o julgamento será do respectivo Tribunal Regional Federal. Na hipótese de ser realizada por servidores federais e de ter um âmbito que ultrapasse uma região da Justiça Federal ou um caráter nacional, o dissídio será julgado originariamente pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por outro lado, se os servidores forem estaduais ou municipais, a competência originária para o julgamento do referido dissídio será do respectivo Tribunal de Justiça.

5) A greve de servidores públicos acarreta a suspensão do desempenho das funções públicas, o que justifica o não pagamento pelos dias paralisados. Sem embargo de o tema estar submetido à repercussão geral (AI no 853.275/RJ da relatoria do Ministro Dias Toffoli), esta parece ser a melhor solução. Sob outro prisma, não há obstáculos jurídicos, em especial sob a ótica do princípio da moralidade, caso a Administração Pública pretenda aceitar a reivindicação dos servidores de não realizar o desconto da remuneração referente aos dias não trabalhados, desde que ocorra a compensação das horas não trabalhadas, e tudo com o saudável objetivo de encerrar o dissídio.

6) Além de poder decidir a respeito da juridicidade do exercício do direito de greve, o Judiciário também poderá, com lastro no poder geral de cautela, adotar providências necessárias para o restabelecimento da ordem pública, continuidade dos serviços públicos e destinadas a evitar a prática de atos violentos.

7) Na atual quadra histórica, o Poder Judiciário deverá viabilizar a realização de um processo de mediação visando ao estabelecimento de um perene canal de diálogo entre as partes envolvidas no dissídio coletivo. A experiência conduzida pelo Ministro Luiz Fux no STF tem sido exitosa ao viabilizar um ambiente propício à realização de um acordo capaz de extinguir o dissídio e de modo a evitar o perecimento de interesses da coletividade, bem como o comprometimento de serviços públicos inadiáveis.

8) Na hipótese de o dissídio não se encerrar, mesmo após uma intensa mediação, o Poder Judiciário deverá exercer o poder normativo para encerrar a greve deflagrada por servidores públicos. Nesse contexto, terá a competência assegurada, nos termos do que já existe no âmbito da Justiça do Trabalho, para estabelecer uma norma geral dirigida ao Estado e aos servidores em contenda, visando à pacificação social e retorno à normalidade. De nada adianta a competência para decidir se uma greve é legal ou não, se ela não estiver acompanhada do poder coercitivo e normativo de impor obrigações às partes, Poder Público de um lado e servidores públicos de outro, para encerrar o dissídio.

NOTAS ______________________________

1 O PL no 710/2011 do Senado e o PL no4.497/2001 da Câmara dos Deputados destinam-se a regulamentar o exercício do direito de greve dos servidores públicos.

2 E nem se diga que o Brasil tardou a reconhecer o referido direito. No Canadá, por exemplo, a Suprema Corte do Canadá apenas reconheceu a existência de um direito constitucional à realização de greve em 30 de janeiro de 2015. Disponível em: <http://www.pressprogress.ca/en/post/supreme– court-ruling-may-strike-major-blow-anti-union-laws-across-canada>. Acesso em: 14 abr. 2015.

3 Quanto aos militares das Forças Armadas e dos estados (Polícia Militar e Corpo de Bombeiros), a Constituição da República proíbe, expressamente, que realizem greve, nos termos do seu art. 142, § 3o, IV e 42, § 1o. Com relação aos policiais civis, o tema alusivo ao exercício do direito de greve dessa categoria está submetido à sistemática da repercussão geral no STF no ARE 654.332 sob a relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski. A ementa do provimento judicial que reconheceu a existência de repercussão geral da matéria constitucional possui o seguinte teor:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAL CIVIL. DIREITO DE GREVE. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (ARE 654432 RG, Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 19/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 10-05-2012 PUBLIC 11-05-2012)

Sem prejuízo de a matéria estar submetida à repercussão geral, há precedentes na Corte impedindo a categoria dos policiais civis de realizar greve, por desempenharem funções análogas às dos militares. Nesse sentido, confira-se o seguinte trecho da ementa da do AgRg na Reclamação no 11.246 da relatoria do Ministro Dias Toffoli:

[…] Direito de greve. Policial civil. Atividade análoga a de policial militar. Agravo regimental a que se nega provimento. […] 3. As atividades desenvolvidas pelas polícias civis são análogas, para efeito do exercício do direito de greve, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve (art. 142, § 3o, IV). Precedente: Rcl no 6.568/SP, Relator o Ministro Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe de 25/9/09. 4. Agravo regimental não provido. (Rcl 11246 AgR, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 27/02/2014, Processo Eletrônico DJe-065 Divulg 01-04-2014 Public 02-04-2014).

No mesmo sentido da negativa do direito de greve aos policiais civis, confira-se a Rcl no 6.558/SP, rel. Min. Eros Grau. Pleno. Data do julgamento: 21/05/2009, DJ 24/09/09 e o AgRg no MI no 774, rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno. Data do julgamento: 28/05/2014, DJ 01/07/2014.

Na Reclamação no 17.358, o Min. Gilmar Mendes assentou, em decisão monocrática proferida em 17/03/2014, que os policiais federais não podem realizar greve. Em sua fundamentação, o Ministro Gilmar Mendes destacou que: “policiais em geral, em razão de constituírem expressão da soberania nacional, revelando-se braços armados da nação, garantidores da segurança dos cidadãos, da paz e da tranquilidade públicas, devem ser equiparados aos militares (art. 142, § 3o, inciso IV, CF/88) e, portanto, devem ser proibidos de fazer greve.”

Após a juntada de parecer do MPF nos autos pela improcedência da Reclamação, por se considerar que a Polícia Federal desempenha função análoga à dos militares, o Reclamante, Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), pediu desistência do feito e a ação foi extinta sem resolução do mérito por decisão monocrática de 09 de junho de 2014.

No que tange às carreiras de Estado, ficou evidenciado, em sede de obter dictum na Rcl no 6.558 acima mencionada, que o STF não entrevê com bons olhos que esses agentes públicos deflagrem greves. Confira-se o seguinte trecho da ementa da Rcl no 6.558:

[…] RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE GREVE EM RAZÃO DA ÍNDOLE DE DETERMINADAS ATIVIDADES PÚBLICAS. […]

2. Servidores públicos que exercem atividades relacionadas à manutenção da ordem pública e à segurança pública, à administração da Justiça –– aí os integrados nas chamadas carreiras de Estado, que exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária –– e à saúde pública. A conservação do bem comum exige que certas categorias de servidores públicos sejam privadas do exercício do direito de greve. […] Não há dúvida quanto a serem, os servidores públicos, titulares do direito de greve. Porém, tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum. Não há mesmo dúvida quanto a serem eles titulares do direito de greve. A Constituição é, contudo, uma totalidade. Não um conjunto de enunciados que se possa ler palavra por palavra, em experiência de leitura bem comportada ou esteticamente ordenada. Dela são extraídos, pelo intérprete, sentidos normativos, outras coisas que não somente textos. A força normativa da Constituição é desprendida da totalidade, totalidade normativa, que a Constituição é. Os servidores públicos são, seguramente, titulares do direito de greve. Essa é a regra. Ocorre, contudo, que entre os serviços públicos há alguns que a coesão social impõe sejam prestados plenamente, em sua totalidade. Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça –– onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária –– e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito. Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados: as atividades desenvolvidas pela polícia civil são análogas, para esse efeito, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve [art. 142, § 3o, IV]. […] Pedido julgado procedente. (Rcl no 6568, Relator(a): Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2009, DJe-181 Divulg 24-09-2009 Public 25-09-2009 Ement Vol-02375-02 PP-00736)

4 O STF não permite qualquer distinção entre servidores estáveis e não estáveis no que diz respeito ao exercício do direito de greve, tendo reconhecido a inconstitucionalidade da exoneração do não estável por ter participado de movimento grevista. Nesse sentido, confira-se a ADI 3235, Relator(a): Min. Carlos Velloso, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 04/02/2010, DJe-045 Divulg 11-03-2010 Public 12-03-2010).

5 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 12.

6 Ibidem, p. 4-5.

7 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 47.

8 RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 70.

9 BRITTO, Carlos Ayres. O regime constitucional dos Tribunais de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, p. 20, 2o semestre/2014.