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A covid-19 e as respostas do Direito Financeiro

10 de maio de 2020

Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ

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Introdução

A pandemia da covid-19 tomou proporções mundiais em curto espaço de tempo, ceifando vidas, derrubando a economia global e colocando em estado de emergência os governos ao redor do planeta. No Brasil, temos assistido a um grande esforço da União, Estados e Municípios, cada um dentro de suas limitações e possibilidades, no enfrentamento desta aguda crise.

Cada esfera federativa tem buscado meios para oferecer tratamento médico à população, além de instrumentos para estimular a economia, que vive uma severa desaceleração na produção e no consumo, decorrente das medidas de isolamento social, com o fechamento de estabelecimentos e a limitação da circulação das pessoas.

A atual situação de pandemia causada pelo novo coronavírus enquadra-se no tradicional conceito de estado de calamidade pública, assim considerada a situação reconhecida pelo Poder Público de uma circunstância extraordinária provocada por desastre natural, humano ou misto, que causa sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade e à vida de seus integrantes.

Contudo, o Direito Financeiro não foi pego totalmente de surpresa por esse cenário, pois já possuía instrumentos, inclusive constitucionais, para encarar situações excepcionais como essa. O objetivo deste artigo será justamente apresentar alguns desses mecanismos para o enfrentamento de tais situações.

2. A excepcionalidade e seus instrumentos de combate no Direito Financeiro

O sistema orçamentário constitucional, isto é, as normas relativas ao orçamento público presentes em nossa Constituição, veicula uma válvula de escape para situações extraordinárias. O art. 167, § 3º da CF/1988 prevê que “a abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62”.

Assim, a Constituição admite, inclusive por medida provisória (art. 62, § 1º, I, “d”), a criação de despesas extraordinárias não originalmente previstas na Lei Orçamentária Anual (LOA), justamente para fazer frente a despesas de caráter imprevisível e urgente, tais como os atuais gastos realizados para o combate à covid-19. De fato, em 13/3/2020, foi autorizada a abertura de crédito extraordinário na Lei Orçamentária Anual no valor de cerca de R$ 5 bilhões, conforme Medida Provisória nº 924/2020.

A própria Emenda Constitucional nº 95/2016, que incluiu os artigos 106 a 114 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), instituindo o Regime Fiscal do Teto dos Gastos Públicos, no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social, para todos os Poderes e órgãos autônomos da União, não teve como desconsiderar a realidade de situações excepcionais e imprevisíveis.

Através dessa emenda constitucional, se estabeleceu, por 20 exercícios financeiros, um limite de gastos individualizado para a despesa primária total em cada ano (excluídas as relativas à dívida pública) para cada Poder, corrigida apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Portanto, enquanto viger o modelo do Regime Fiscal do Teto dos Gastos Públicos previsto na Emenda Constitucional nº 95/2016, não poderá haver crescimento real das despesas públicas federais, e o gasto de cada ano se limitará às despesas do ano anterior apenas corrigidas pela inflação, e assim sucessivamente nos anos seguintes.

Não obstante este regime de austeridade fiscal, o art. 107, § 6º, II do ADCT, inserido pela mesma EC nº 95/2016, explicitou que não se incluem nos limites do teto fiscal os “créditos extraordinários a que se refere o § 3º do art. 167 da Constituição Federal”.

Por fim, a Constituição prevê uma regra geral de equilíbrio da dívida pública, denominada de “regra de ouro”, vedando a “realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital”, embora ressalve “as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta” (art. 167, III, CF/1988).

Seu objetivo é evitar pagamento de despesas correntes com recursos oriundos de emissão ou contratação de novo endividamento, impondo-se que os empréstimos públicos apenas serão destinados a gastos com investimentos e não para financiar despesas correntes.

Uma interpretação sistemática do art. 167, III indica que também os créditos extraordinários estão abarcados na exceção final deste inciso: se meros créditos suplementares ou especiais com finalidade específica podem ser autorizados pelo Legislativo, inclusive permitindo-se a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, quanto mais as despesas imprevisíveis e urgentes financiadas pelos créditos extraordinários.

Em âmbito infraconstitucional, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF/ Lei Complementar nº 101/2000), em seu art. 65, considera a calamidade pública ou os estados de defesa ou de sítio como circunstâncias excepcionais que permitem afastar temporariamente algumas das suas exigências, sobretudo as limitações para os gastos e endividamento. Para tanto, este estado não basta ser decretado pelo Poder Executivo, devendo ser formalmente reconhecido pela respectiva Casa Legislativa.

Assim, desde que o estado de calamidade seja chancelado pelo Congresso Nacional (e, no âmbito local, pelas Assembleias Legislativas tanto para Estados quanto para os Municípios integrantes de um Estado), o art. 65 da LRF autoriza a suspensão temporária (e enquanto se mantiver esta situação):

a) da contagem dos prazos de controle para adequação e recondução das despesas de pessoal (artigos 23 e 70) e dos limites do endividamento (art. 31);

b) do atingimento das metas de resultados fiscais e;

c) da utilização do mecanismo da limitação de empenho (art. 9º).

A necessidade de reconhecimento formal pelo Poder Legislativo do ato ou demanda do Poder Executivo de decretação de estado de calamidade pública decorre do princípio da democracia fiscal, pelo qual os representantes do povo são chamados – em nome da sociedade – a autorizar a adoção de um regime de exceção na aplicação das normas gerais e regulares constantes da Lei de Responsabilidade Fiscal.

3. Algumas medidas concretas na atual pandemia

A fim de evitar a necessidade de realizar bimestralmente contingenciamentos obrigatórios de despesas, e para poder ultrapassar o limite da meta de déficit primário do setor público consolidado, estabelecida no art. 2º da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO/2020), no montante de R$ 124 bilhões, e assim poder enfrentar financeiramente a grave situação e custear as ações na área da saúde no combate ao novo coronavírus, no dia 18/3/2020, a Câmara dos Deputados aprovou, por votação simbólica, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 88/2020, que reconhece o estado de calamidade pública no Brasil.

Em 20/3/2020, o Senado Federal, de maneira inédita, realizou a sua primeira sessão virtual, dentro do esforço conjunto para aprovar a medida votada pela Câmara de Deputados. O Decreto Legislativo nº 06/2020 foi aprovado reconhecendo exclusivamente para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da Lei nº 13.898/2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da Lei Complementar nº 101/2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31/12/2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93/2020.

O contingenciamento previsto no art. 9º da LRF, que era iminente não fosse a decretação do estado de calamidade pública, estava estimado em torno de R$ 40 bilhões. Devia-se, sobretudo, à queda na arrecadação federal decorrente da desaceleração da economia brasileira e global, pela redução do consumo e da produção, além da brusca desvalorização do preço do petróleo, reduzindo as receitas de royalties. Com o decreto legislativo, o Governo Federal também ficou dispensado de se limitar ao déficit fiscal de R$ 124 bilhões estabelecido na LDO/2020. Há cálculos que já apontam para um déficit fiscal superior a R$ 250 bilhões.

Ainda dentro da circunstância do estado de calamidade pública decorrente da pandemia da covid-19, na Medida Cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.357-DF, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, embora entendendo e registrando que “a responsabilidade fiscal é um conceito indispensável”, ressalvou que a pandemia representava condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas, exigindo atuação urgente, duradoura e coordenada de todas as autoridades federais, estaduais e municipais em defesa da vida, da saúde e da própria subsistência econômica.

Isso tornava impossível o cumprimento de determinados requisitos legais compatíveis com momentos de normalidade, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), da garantia do direito à saúde (art. 6º, caput, e art. 196, CF) e dos valores sociais do trabalho e da garantia da ordem econômica (art. 1º, inciso I; art. 6º, caput; art. 170, caput, e art. 193), de modo que o Ministro deferiu medida cautelar, ad referendum do Plenário, para: conceder interpretação conforme à Constituição Federal aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal e 114, caput, in fine e § 14, da Lei de Diretrizes Orçamentárias/2020, para, durante a emergência em Saúde Pública de importância nacional e o estado de calamidade pública, afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/ expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da covid-19.

Por sua vez, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 10/2020, conhecida por “PEC do Orçamento de Guerra”, na iminência de ser aprovada (que provavelmente originará a Emenda Constitucional nº 106), busca instituir o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para o enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente da pandemia da covid-19, incluindo um novo art. 115 no ADCT da Constituição.

O referido dispositivo afastará expressamente a aplicabilidade da conhecida “regra de ouro” prevista no inciso III do art. 167 da Constituição – que veda o endividamento para o pagamento de despesas correntes – durante o exercício financeiro em que vigore a calamidade pública; permitirá que operações de crédito realizadas para o refinanciamento da dívida mobiliária possam ser utilizadas também para o pagamento de seus juros e encargos; e dispensará o cumprimento das restrições constitucionais e legais quanto à criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa e a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita, desde que não se trate de despesa permanente, e que tenha o propósito exclusivo de enfrentamento do contexto da calamidade pública decretada e seus efeitos sociais e econômicos, com vigência e efeitos restritos ao seu período de duração da situação excepcional.

Outrossim, cria o Comitê de Gestão da Crise, com a competência de fixar a orientação geral e aprovar as ações que integrarão o escopo do regime emergencial. Estabelece, ainda, que os conflitos federativos decorrentes de atos normativos do Poder Executivo, relacionados à calamidade pública, serão resolvidos exclusivamente pelo STF, e que as ações judiciais contra decisões do Comitê de Gestão da Crise serão da competência do Superior Tribunal de Justiça, ressalvadas as competências originárias do STF, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal Superior Eleitoral e do Superior Tribunal Militar.

Por fim, autoriza o Banco Central do Brasil a comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional, e direito creditório e títulos privados de crédito em mercados secundários, no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, sempre limitado ao enfrentamento da referida calamidade.

4. Conclusão

Certamente, este rombo nas contas públicas cobrará o seu preço futuramente, caso ações compensatórias não sejam adotadas em algum momento. Este é, aliás, o espírito da LRF, ao dispor no seu artigo 1º, § 1º que:

A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar

Após passada a tormenta da pandemia do novo coronavírus, medidas duras deverão ser tomadas na busca do reequilíbrio das contas públicas. Em um Estado Democrático de Direito como o nosso, em momento tão grave, a comunhão de interesses e esforços republicanos entre os Poderes deve relevar a polarização e garantir os meios necessários para vencer esta crise pandêmica que a humanidade enfrenta, oferecendo tratamento médico e saúde a todos os cidadãos brasileiros. Afinal, vidas são mais importantes do que metas fiscais, e disso ninguém tem dúvidas.

NOTAS_______________________________

1 ABRAHAM, Marcus. Lei de responsabilidade fiscal comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 288.

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15/4/2020.

3 Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:

I – relativa a:

d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º.

4 ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 255.

5 “Esse regime de legalidade rígida tem por objetivo principal o equilíbrio orçamentário, que é princípio constitucional importante e que depende da contenção dos empréstimos públicos. A vedação de operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovadas pelo Poder Legislativo por maioria absoluta (art. 167, III, CF), tem por objetivo igualmente evitar o desequilíbrio orçamentário”. (TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 219).

6 ABRAHAM, Marcus. Curso de direito financeiro brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 425.

7 BRASIL. Lei Complementar nº 101/2000, de 4 de maio de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm>. Acesso em: 15/4/2020.

8 BRASIL. Decreto legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm>. Acesso em: 15/4/2020.

9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 6.357-MC, Relator Ministro Alexandre de Moraes, decisão monocrática, 29/3/2020, DJe 31/3/2020.