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Eficiência processual e recuperabilidade do crédito tributário

3 de janeiro de 2019

Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ

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Nestes 30 anos de vigência da Constituição de 1988, nem o Poder Judiciário, nem o sistema processual brasileiro foram capazes de absorver o avassalador volume de demandas judiciais ajuizadas como consequência da ampliação do acesso ao Judiciário que a Lei Maior concedeu.

Nada mais injusto que ter o seu direito violado e ver o seu processo judicial estagnado em um oceano de litígios, sem esperança de um célere desfecho. A nefasta consequência disso é o desrespeito aos princípios constitucionais da duração razoável do processo, da efetividade da prestação jurisdicional, da igualdade e da eficiência.

O congestionamento e a morosidade excessiva têm sido considerados hoje como as grandes deficiências do aparelho judicial brasileiro.

Neste cenário de litigiosidade de massa, o Direito Tributário se destaca como um dos principais responsáveis pelo grande volume de processos, decorrência da sempre presente tensão entre o poder estatal de tributar e o exercício dos direitos do contribuinte.

A forte presença do Direito Tributário nos processos judiciais que tramitam em nossos tribunais se revela claramente, uma vez que o assunto corresponde a 25% das súmulas vinculantes, a quase 30% dos recursos repetitivos e a 20% das repercussões gerais.

Dentre algumas razões para este fenômeno, destacamos: a natureza do poder de tributar, que cria relações jurídicas de caráter compulsório, para todos os nacionais que a elas se submetem; o tributo como sendo a principal receita pública no Estado contemporâneo; e a complexidade do sistema tributário brasileiro, caracterizado por um cipoal de normas jurídicas de difícil compreensão e cumprimento.

Em decorrência disso, surge um grave problema na seara processual, verdadeiro nervo exposto e gargalo do Poder Judiciário nacional: o excessivo número de execuções fiscais que tramitam hoje, e que se caracterizam pela baixa probabilidade de pagamento do crédito tributário pelo executado.

O relatório “Justiça em Números 2018” (ano base 2017), publicado anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indica que os processos de execução fiscal são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Poder Judiciário. O relatório afirma:

Os processos de execução fiscal representam, aproximadamente, 39% do total de casos pendentes e 74% das execuções pendentes no Poder Judiciário, com taxa de congestionamento de 91,7%. Ou seja, de cada cem processos de execução fiscal que tramitaram no ano de 2017, apenas 8 foram baixados.

Este elevado percentual de execuções fiscais, chegando a quase 40% do total das ações que tramitam, sem incluir outras ações de natureza tributária, nos mostra claramente que o maior cliente do Poder Judiciário, individualmente considerado, é o próprio Estado brasileiro, que busca cobrar sua dívida ativa por meio da execução fiscal, sobretudo aquela de natureza tributária.

E, sobre a baixa recuperabilidade do crédito tributário nestas execuções fiscais, o relatório aponta:

Historicamente as execuções fiscais têm sido apontadas como o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. O executivo fiscal chega a juízo depois que as tentativas de recuperação do crédito tributário se frustraram na via administrativa, provocando sua inscrição na dívida ativa. Dessa forma, o processo judicial acaba por repetir etapas e providências de localização do devedor ou patrimônio capaz de satisfazer o crédito tributário já adotadas, sem sucesso, pela administração fazendária ou pelo conselho de fiscalização profissional. Acabam chegando ao Judiciário títulos de dívidas antigas e, por consequência, com menor probabilidade de recuperação.

Tal deficiência na cobrança judicial de créditos fiscais já havia sido percebida por Nota Técnica publicada alguns anos atrás pelo IPEA, a qual analisou o custo e tempo do processo de execução fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), identificando o tempo médio total de tramitação de nove anos, nove meses e 16 dias, e que apenas cerca de 1/3 das execuções fiscais federais são bem sucedidas, deixando a maior parte – 2/3 delas – sem qualquer tipo de pagamento. O documento indica:

Em que pesem todos os obstáculos, o grau de sucesso das ações de execução fiscal promovidas pela PGFN é razoável, uma vez que em 25,8% dos casos a baixa ocorre em virtude do pagamento integral da dívida, índice que sobe para 34,3% nos casos em que houve citação pessoal.

Tem-se aqui um dilema: se, por um lado, a cobrança da dívida ativa é indispensável, por outro, em boa parte dos casos não se consegue sequer encontrar o devedor – por exemplo, na dissolução irregular da empresa – ou bens que possam ser penhorados.

Portanto, trata-se de um processo caro, demorado e com taxa de recuperação relativamente baixa.

Porém, há outra questão que se desdobra desta situação, qual seja, o elevado valor dispendido com estas cobranças judiciais infrutíferas.

O mesmo relatório do CNJ identificou como valor gasto apenas com a Justiça Federal, no ano de 2017, a monta de R$ 11.261.426.849,00. Ora, se cerca de 40% deste valor se refere às execuções fiscais (R$ 4,5 bilhões), e deste percentual apenas 1/3 das ações são frutíferas (R$ 1,5 bilhões) na recuperação do crédito tributário federal, pode-se dizer que foram desperdiçados cerca de R$ 3 bilhões com o processamento de execuções fiscais inúteis.

Se adotássemos estes mesmos percentuais – 40% dos processos são execuções fiscais, sendo 2/3 delas infrutíferas – como valores estatísticos representativos da realidade processual em todo o Brasil (Justiça federal e estadual) – e tomando-se a importância de R$ 90.846.325.160,00 como a despesa total com o Poder Judiciário em 2017, chega-se ao montante de R$ 24,2 bilhões gastos com a movimentação de ações de execuções fiscais desnecessárias naquele ano. Ou seja, nos últimos dez anos, gastou-se em todo o Poder Judiciário nacional cerca de mais de R$ 240 bilhões com processos ineficazes ao seu propósito.

Para finalizar a análise financeira do custo das execuções fiscais, o relatório “PGFN em Números”, referente ao ano de 2017, aponta como valor recuperado pela União, por meio de execuções fiscais, a importância de R$ 5.280.422.724,42. Portanto, a título exemplificativo, quanto à cobrança de execuções fiscais pela PGFN, gastou-se inutilmente em 2017 o valor de R$ 3 bilhões para recuperar a monta de R$ 5,2 bilhões. Será que este custo-benefício é válido?

A conclusão a que chegamos é a de que se deve adotar um novo modelo de cobrança da dívida tributária, uma vez que o sistema atual é custoso demais, sendo ineficiente não apenas em termos financeiros, mas por prejudicar o Poder Judiciário, dado o volume avassalador de demandas que o movimentam e o congestionam, sem um retorno adequado.

Devemos registrar que os esforços em nível federal para tornar mais eficiente e eficaz a cobrança da dívida ativa da União são louváveis. A Lei no 10.522/2002 vem sendo atualizada para que, quando certa matéria já foi definida desfavoravelmente à Fazenda em precedentes judiciais vinculantes fixados pelos tribunais superiores, esteja a Secretaria da Receita Federal autorizada a não constituir créditos tributários ou a rever de ofício lançamentos para extingui-los total ou parcialmente. O mesmo vale, nessas circunstâncias, para a PGFN, que passa a estar autorizada a deixar de contestar ou recorrer nas ações já decididas pelos tribunais superiores de modo vinculante (a par da possibilidade de não ajuizar execuções fiscais de baixo valor). Também a Portaria PGFN no 502/2016 prevê a dispensa da apresentação de contestação, oferecimento de contrarrazões e interposição de recursos nos processos que versarem sobre teses já consolidadas pela sistemática da repercussão geral (STF) e do recurso repetitivo (STJ).

Pode-se sugerir, já de plano, que se faça um levantamento de todas as cobranças que hoje tramitam no Poder Judiciário e que podem ser imediatamente extintas por força de valores irrisórios ou em razão de teses já devidamente fixadas pelos tribunais superiores. O mesmo deveria ser feito nos demais processos que ainda tramitam – ações ordinárias, anulatórias, mandados de segurança, etc. – ajuizados por contribuintes que buscavam assegurar um direito de natureza tributária que acabou sendo reconhecido pelos tribunais de maneira pacífica e vinculante.

Medidas similares a estas deveriam ser estendidas e implementadas pelos estados e municípios, lembrando que contamos com mais de 5.500 municípios, em que os recursos materiais e humanos disponíveis para a cobrança da dívida ativa costumam ser diminutos fora das capitais. Ademais, como aponta o relatório do CNJ, as cobranças estaduais e municipais representam 85% das execuções fiscais em tramitação.

Outra medida adotada pela PGFN que devemos elogiar e sugerir a sua extensão a estados e municípios é o ajuizamento seletivo de execuções fiscais, que somente serão propostas se diligências prévias administrativas indicarem a existência de bens capazes de responder pela dívida.

É o que estabelece o novo art. 20-C da Lei
n
o 10.522/2002 (inserido pela Lei no 13.606/2018), ao prever que “A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados”. Arremata em seu parágrafo único: “Compete ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional definir os limites, critérios e parâmetros para o ajuizamento da ação de que trata o caput deste artigo, observados os critérios de racionalidade, economicidade e eficiência”.

Já caminhando nesta trilha, o relatório “PGFN em números 2018” também traz a novidade de um sistema interno de rating do devedor, dividida a classificação em A, B, C e D, sendo os débitos da classificação “A” como de alta probabilidade de recuperação, e os do padrão “D” como irrecuperáveis.

Em recente entrevista ao portal jurídico “Jota”, o procurador-geral da Fazenda Nacional, Dr. Fabrício da Soller, indica que, “a partir de cada perfil, a PGFN poderá traçar a estratégia mais aderente àquele devedor. Cada perfil terá um conjunto de estratégias chamado de ‘régua de cobrança’. O objetivo é aumentar a eficiência, recuperando mais com menor esforço”.

Também pensamos assim: não se propõe que o Estado abra mão de seus créditos tributários pura e simplesmente, mas que encontre alternativas e formas mais racionais, eficientes e econômicas de cobrar, as quais nem sempre precisarão passar pela via da execução fiscal perante o Judiciário.

O critério da recuperabilidade do crédito tributário, a partir da aplicação dos princípios de racionalidade, economicidade e eficiência, deve ser invocado para que se desistam de milhares de execuções fiscais que, sem localização do devedor ou de seus bens, certamente serão ao final estéreis.

Como último exemplo de ato de vanguarda adotado pela PGFN, a previsão na Portaria PGFN no 360/2018 da possibilidade de celebração de certas modalidades de negócio jurídico processual, inclusive mediante a fixação de calendário para a prática de certos atos processuais, tais como: I – cumprimento de decisões judiciais; II – confecção ou conferência de cálculos; III – recursos, inclusive a sua desistência; e IV – forma de inclusão do crédito fiscal e FGTS em quadro geral de credores, quando for o caso.

Portanto, o Estado brasileiro terá que repensar sua forma de cobrar seus créditos. Isso não apenas contribuirá com a redução do abarrotamento do Judiciário, auxiliando-o a cumprir o mandamento constitucional de prestar jurisdição de maneira célere, mas também propiciará maior racionalidade, economicidade e eficiência na arrecadação.

Afinal, o Poder Judiciário não pode se confundir com um mero cartório de luxo de cobranças fiscais.

Notas___________________________

1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2018: ano-base 2017. Brasília: CNJ, 2018. p. 125.

2 Loc. cit.

3 Nota técnica intitulada “Custo e Tempo do Processo de Execução Fiscal promovido pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional”, sob a responsabilidade dos pesquisadores Alexandre dos Santos Cunha (coordenador), Isabela do Valle Klin e Olívia Alves Gomes Pessoa. Brasília, novembro de 2011.

4 CNJ. op. cit. p. 42.

5 Apesar de as execuções fiscais na Justiça Estadual representarem 85% do total destes processos. É possível que a taxa real de recuperabilidade via execução fiscal de estados e municípios seja ainda menor. Segundo o relatório: “O maior impacto das execuções fiscais está na Justiça Estadual, que concentra 85% dos processos. A Justiça Federal responde por 14%; a Justiça do Trabalho, 0,31%, e a Justiça Eleitoral apenas 0,01%”. (Ibidem. p. 125).

6 Ibidem. p. 31.

7 PGFN em Números. Dados de 2017 – Edição 2018. p. 13.

8 Justiça em Números 2018: ano-base 2017/ Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2017. p. 125.

9 https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/61-das-dividas-de-pessoas-fisicas-sao-irrecuperaveis-aponta-pgfn-18012018