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A teoria do adimplemento substancial no Direito Administrativo

6 de outubro de 2014

Desembargador Federal do TRF-2a Região, Professor Titular de Direito Financeiro da UERJ

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Marcus-AbrahamRecentemente, participei de votação no julgamento de um processo na 5a Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2a Região, em que se discutia a possibilidade de extinção unilateral pela agência regulatória de contrato de exploração de um bloco de petróleo e gás natural, no momento em que a empresa petrolífera já havia investido cerca de cem milhões de dólares norte-americanos, com a justificativa de que teria sido ultrapassado – em nove dias – o fim do prazo fixado em contrato (término da fase de exploração) para o cumprimento de uma das obrigações nele previstas.

Após o investimento de vultosas quantias para aquilatar, por meio de uma série de atividades exploratórias, acerca de seu interesse econômico em jazida petrolífera, a empresa enviou, com atraso de apenas nove dias em relação ao prazo final do período exploratório contratualmente previsto, a notificação de descoberta de hidrocarbonetos quanto a um poço de petróleo perfurado. Da perspectiva formal, essa notificação deveria ter ocorrido antes do término da fase exploratória.

Registre-se que, entre o momento da assinatura do contrato (que possibilita o início das atividades de exploração no bloco) e o fim da fase de exploração, o prazo pactuado era de 5 anos, ou seja, a empresa petrolífera tinha, pelo contrato, 1.825 dias de prazo a ser cumprido para notificar a descoberta, mas, ao realizar a comunicação de descoberta de óleo no poço, ela havia ultrapassado o seu prazo fatal em nove dias.

Entendi, na ocasião do julgamento, que não deveria prevalecer um rigorismo excessivo na interpretação dada pela agência regulatória aos efeitos de um mínimo inadimplemento contratual relativo a prazo, qual seja, de ultrapassar em nove dias o prazo de um contrato cuja fase inicial era de cinco anos (sem levar em consideração o prazo de até 27 anos previsto para a fase de produção, o que eleva o prazo total possível do contrato a 32 anos).

Não obstante isso, minha posição restou vencida naquele julgamento. Tal fato me chamou a atenção para a resistência na aceitação da Teoria do Adimplemento Substancial no Direito Administrativo brasileiro (embora tal teoria seja amplamente aceita no âmbito do direito privado). E o presente caso se amolda como paradigma para a análise da tese.

A questão aproxima-se daquilo que a tradição jurídica do common law denomina de “substantial performance”, “substantial compliance” ou “substantial completion” e que foi trazida para o direito brasileiro sob o nome de “adimplemento substancial”. Em teoria geral dos contratos, refere-se ao fato de que violaria a boa-fé, em seu sentido objetivo, que o contratante que adimplisse substancialmente sua parte no contrato fosse apenado com a perda do direito de receber a contraprestação, pelo simples fato de que, formalmente, não cumpriu parte mínima da avença.

A respeito, o próprio Conselho da Justiça Federal, em seu Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil: “Enunciado 361 – Arts. 421, 422 e 475: O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.”

Também a doutrina segue no mesmo sentido, como leciona Carlos Roberto Gonçalves:

O adimplemento substancial do contrato, todavia, tem sido reconhecido, pela doutrina, como impedimento à resolução unilateral do contrato. Sustenta-se que a hipótese de resolução contratual por inadimplemento haverá de ceder diante do pressuposto do atendimento quase integral das obrigações pactuadas, ou seja, do incumprimento insignificante da avença, não se afigurando razoável a sua extinção como resposta jurídica à preservação e à função social do contrato (CC, art. 421).
Ressalta Jones Figueirêdo Alves que “a introdução da boa-fé objetiva nos contratos, como requisito de validade, de conclusão e de execução, em regra expressa e norma positivada pelo art. 422 do Novo Código Civil, trouxe consigo o delineamento da teoria da substancial performance como exigência e fundamento do princípio consagrado em cláusula geral aberta na relação contratual. É pela observância de tal princípio, notadamente aplicável aos contratos massificados, que a teoria se situa preponderante, como elemento impediente ao direito de resolução do contrato, sob a inspiração da doutrina de Couto e Silva”.1

A teoria, longe de estar apenas em obras acadêmicas, já foi aplicada em nossa jurisprudência, não apenas para contratos privados, mas também a contratos administrativos, tal como manifestou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) José Delgado, no julgamento do RESP 914.087/RJ (julgado em 4/10/2007, DJ 29/10/2007, p. 190):

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 87 DA LEI N. 8.666/1993.
1. Acolhimento, em sede de recurso especial, do acórdão de segundo grau assim ementado (fl. 186):
DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/1993. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE.
1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os produtos contratados.
2. O art. 87, da Lei no 8.666/1993, não estabelece critérios claros e objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal.
3. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual.
4. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei no 8.666/1993, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.
5. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.
2. Aplicação do princípio da razoabilidade. Inexistência de demonstração de prejuízo para a Administração pelo atraso na entrega do objeto contratado.
3. Aceitação implícita da Administração Pública ao receber parte da mercadoria com atraso, sem lançar nenhum protesto.
4. Contrato para o fornecimento de 48.000 fogareiros, no valor de R$ 46.080,00 com entrega prevista em 30 dias. Cumprimento integral do contrato de forma parcelada em 60 e 150 dias, com informação prévia à Administração Pública das dificuldades enfrentadas em face de problemas de mercado.
5. Nenhuma demonstração de insatisfação e de prejuízo por parte da Administração.
6. Recurso especial não-provido, confirmando-se o acórdão que afastou a pena de suspensão temporária de participação em licitação e impedimentos de contratar com o Ministério da Marinha, pelo prazo de 6 (seis) meses.

Percebe-se que, em contratos complexos, repletos de variáveis e de longa duração, tais como os de exploração e produção de petróleo – os quais ostentam elevado grau de aleatoriedade e risco quanto à descoberta ou não de óleo e gás, bem como sujeitos a variação de condições naturais de um ambiente para outro, o que, por vezes, impossibilita ou dificulta o cumprimento do cronograma originalmente previsto –, a aplicação da teoria tradicional dos contratos merece temperamentos.

Ademais, é de se ponderar se seria devido que o Estado se beneficiasse dos elevados investimentos feitos por empresa privada e, depois, quando já se sabe que a área apresenta relevante interesse econômico, reverta a área para si, para deferi-la a outrem por preço mais interessante em futura licitação, pelo mero descumprimento formal em 9 dias de um prazo.

Possível explicação da resistência que tal doutrina encontra poderia ser a de que, em geral, pensa-se que, com base nessa posição, estariam as partes autorizadas a não cumprir exatamente aquilo a que se obrigaram. Mas esta jamais pode ser a interpretação devida da teoria do adimplemento substancial: a teoria busca conservar o negócio jurídico, porém não deixa de punir quem não cumpriu exatamente a obrigação. Ao revés, somente não o pune fulminando o próprio negócio jurídico, mas é possível demandá-lo por perdas e danos, sobretudo nos contratos civis; ou, nos contratos administrativos, embora mantenham-se de pé os contratos, é possível aplicar sanções administrativas contra aquele que, embora cumprindo substancialmente o contrato, não o fez de modo perfeito.

No caso em exame, a solução consentânea com a boa-fé não é o fim da concessão, mas sim a possibilidade de apenar tal exígua impontualidade de nove dias por forma menos grave e mais proporcional, como, por exemplo, pela aplicação de multa administrativa por descumprimento de prazo.

A doutrina estrangeira, além de tratar do adimplemento substancial, também indica que, nas relações contratuais de longo prazo, como ocorre na espécie, a forma de interpretar o contrato não pode ser rigorosamente a mesma de um contrato cumprido a curto prazo ou pela simples entrega de mercadorias:

Uma dificuldade particular associada com as regras contratuais tradicionais é a de que elas provavelmente estão mais bem equipadas para lidar com transações a curto prazo ou pontuais que com relações de longo prazo. Uma transação pontual é aquela de que se pode dizer ter objetivos de mensuração relativamente simples, como um típico contrato de venda de bens específicos. Neste tipo de transação, o vendedor cumpre sua obrigação contratual fazendo que os bens estejam disponíveis para entrega em um momento em que o comprador esteja pronto para receber a encomenda e apto a fazer o pagamento. Uma vez que o cumprimento principal das obrigações de ambas as partes tenha ocorrido, o comprador e o vendedor podem não ter mais coisa alguma um com o outro, como navios que se cruzam durante a noite.
Ao revés, contratos relacionais, frequentemente envolvendo um período de cumprimento protraído no tempo, demandarão elevado nível de cooperação e podem envolver ajustes a serem realizados no meio do caminho, de modo a levar em consideração alterações nas circunstâncias que atuam como pano de fundo e que afetam o cumprimento do contrato de modo a se alcançarem os objetivos das partes.
[…]
Uma característica da contratação relacional é a de que o cumprimento do contrato pode protrair-se por um considerável período de tempo. Em virtude disso, pode ser necessário ajustar ou alterar o acordo original à luz de desenvolvimentos subsequentes. O contrato original pode ter previsão de alteração, mas é mais comum que não o tenha.2 (tradução livre)

Todas essas reflexões servem para deixar claro que, para contratos desse vulto e dessa duração, nem sempre é possível aplicar a teoria dos contratos com a mesma mentalidade de quem compra um bilhete de metrô ou uma revista no jornaleiro, mas que avenças dessa magnitude compreendem uma série de vicissitudes e um feixe de direitos e deveres que não se compactuam com formas tradicionais de entender os contratos.

A sociedade moderna e os avanços tecnológicos trazem-nos problemas complexos e nos chamam a pensar em novos paradigmas para solucioná-los.

Notas ______________________________________________________________________

1 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 158-159, vol. III.
2 DAVIS, Martin; OUGHTON, David. Sourcebook on contract law. 2.nd ed. London: Cavendish, 2000. p. 497-498. “A particular difficulty associated with the classical contract rule book is that it is probably better equipped to deal with short term or discrete transactions rather than long term relationships. A discrete transaction is one which can be said to have relatively easily measurable objectives, such as a typical contract for the sale of specific goods. In this type of transaction, the seller performs his contractual obligations by making the goods available for delivery at a time when the buyer is ready and able to take delivery and make payment. Once the primary performance obligations of the two parties have been fulfilled, the buyer and seller may not have anything more to do with each other, as if they were ships which pass in the night. In contrast, relational contracts, often involving a protracted period of performance, will require a high degree of co-operation, and may involve adjustments being made in mid-course in order to take account of changes in background circumstances affecting performance of the contract in order to achieve the parties’ objectives. […] A feature of relational contracting is that performance of the contract may occupy a considerable period of time. Because of this it may be necessary to adjust or alter the original arrangements in the light of subsequent developments. The original contract may have made provision for alteration, but it is more likely that there is no such provision.”