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A democracia e o direito de defesa

21 de março de 2016

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Kátia Rubinstein TavareséO Plenário do Supremo Tribunal Federal, na sessão do dia 17 de fevereiro do corrente ano, ao julgar o Habeas Corpus no 126.292, por maioria, introduziu um novo paradigma na Justiça Criminal: a execução imediata da pena, após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau. Este posicionamento interpreta restritivamente a garantia fundamental, relacionada à liberdade e à presunção de inocência ou não culpabilidade (artigo 5o, inciso LVII da Constituição Federal). Por outro lado, após viabilizar o encarceramento do réu em segundo grau, sem a formação de um juízo definitivo de culpa, tal decisão abre espaço para outra discussão: a violação do artigo 8o, número 2, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

A decisão indica evidente retrocesso jurídico, com efeitos sociais neste entendimento da Suprema Corte, já que desde 2009, no julgamento da HC 84078, após consolidação de uma jurisprudência garantista, acertadamente, condicionara a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação (quando inexiste mais possibilidade de interposição de novos recursos à decisão condenatória). Por este motivo, não há como não relacionar este fato como um dos momentos críticos de nossa democracia e especialmente o direito de defesa.

Alguns sérios questionamentos são relevantes com este recrudescimento penal da Suprema Corte que devem ser mencionados. O primeiro, de cunho jurídico, reside no fato de que esta decisão contrariou texto expresso da Constituição Federal (5o inciso LVII). Mais grave ainda é a constatação de que o STF pretendeu alterar numa única e simples via interpretativa o alcance do conteúdo normativo de “trânsito em julgado”, substituindo-o por “decisão de segundo grau”.Assim, este entendimento gera insegurança jurídica,porquanto vários dispositivos e institutos do Código de Processo Civil, e outros do Código de Processo Penal, sujeitam sua incidência ao trânsito em julgado da sentença.

Entretanto, a questão formal e objetiva a ser dirimida é a seguinte: a decisão em referência conflita essencialmente com a positividade jurídica do artigo 283 do Código de Processo Penal que assenta: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva (Redação introduzida com a reforma da Lei 12.403/2011). Também, por outro lado, o artigo 105 da Lei de Execuções Penais condiciona que transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade (…) o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.

Em verdade, o Supremo Tribunal Federal não declarou inconstitucional o artigo 283 do CPP e suas espécies normativas, já que tal decisão não possui eficácia normativa para anular os efeitos de uma legislação infraconstitucional em vigor, que só se admite ser modificada pelo Congresso Nacional. Logo, juridicamente, nada mudou em termos de marco inicial de execução da pena privativa de liberdade, permanecendo o pressuposto do paradigma dogmático constitucional do trânsito em julgado nas decisões condenatórias.

Ressalte-se, que a eficácia desta decisão só permitiria sua aplicação automática, caso o seu conteúdo viesse a ser seguido repetida e continuadamente em hipóteses semelhantes, De qualquer forma, registre-se que no ordenamento jurídico brasileiro a independência do magistrado lhe permite decidir conforme a orientação do Supremo Tribunal Federal. O que não significa necessariamente que os Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Regionais Federais estejam obrigados a acatar ou acompanhar o entendimento de um caso pontual decidido, mesmo em se tratando da mais alta Corte do país.

Em suma, cuida-se a decisão do STF de fato isolado, que tem natureza casuística e, por isso,não possui efeito vinculante. Portanto, a prisão de qualquer pessoa, excetuada a hipótese de flagrante delito ou de prisão temporária ou preventiva, segue legalmente condicionada ao trânsito em julgado da sentença condenatória.

Constata-se, lamentavelmente, que a referida decisão apresenta justificação de cunho político alinhada ao senso comum com a retórica da impunidade, do sensacionalismo e do populismo penal, que defende o limite de recursos para os condenados por crime de colarinho branco, cujo discurso fundamenta-se na supressão de garantias e direitos arduamente conquistados ao longo de nossa história.

Ocorre que, na prática, esta decisão poderá mandar prender os réus em liberdade com grandes chances de reverter o processo nas instâncias superiores (estima-se que 25% das pessoas conseguem), o que só agravará os efeitos deletérios de um sistema prisional falido e abarrotado. O Brasil possui a quarta maior população de encarcerados mundial, cerca de 700 mil presos, sendo que 70% são reincidentes e uma superlotação nas cadeias com déficit superior a 200 mil vagas.

Além disso, a decisão impede efetivamente o enfrentamento sobre as razões pelas quais a prisão preventiva prolonga-se indefinidamente, sem qualquer limite legal, permitindo-se reconhecer que pelo menos 40% dos encarcerados encontram-se em custódia provisória, sem qualquer sentença condenatória, ou seja: quatro em cada dez presos no Brasil estão atrás das grades, aguardando ainda serem levados a julgamento. Este caminho de encarceramento massivo atualmente adotado no país vem sendo duramente criticado pela ONU que, em relatório publicado, recentemente, considerou como negativa e também perigosa a nossa visão disseminada de que prender deve ser a regra e não exceção, contrariando os tratados compromissos assumidos internacionalmente no âmbito dos direitos humanos.

Por fim,com a institucionalização de um sistema de justiça violador de direitos constitucionais caríssimos, como ocorreu na referida decisão, para aplacar a sanha punitivista, o apelo midiático seduzido pelo discurso de lei e ordem e pela espetacularização do combate judicial, é sensato trazer a lembrança de Rui Barbosa que,no início do século XX, dirigindo-se ao Supremo Tribunal Federal, em sustentação oral, legou-nos a imorredoura exortação: “Quisesse eu levantar os escarcéus políticos e não me dirigiria ao remanso deste Tribunal a este recanto de paz”. Isto porque, “aqui não podem entrar as paixões que tumultuam na alma humana; porque este lugar é o refúgio da Justiça”.