Edição

A experiência federal e o novo marco regulatório para o transporte rodoviário interestadual de passageiros

27 de novembro de 2015

Compartilhe:

Fernando Villela de Andrade ViannaO setor rodoviário interestadual de passageiros passou por profundas reformulações – estruturais e jurídicas – ao longo do século XX. Basta rememorar que, no início do século passado, o Brasil tinha uma infraestrutura mínima de transportes, indispensável para o deslocamento de bens e pessoas. Naquela época, o sistema ferroviário recebia do Poder Público, no Brasil e em outros países, grande parte de sua energia e dedicação na formulação de políticas públicas e investimentos. Não é à toa que a primeira Agência Reguladora Independente do mundo, criada em 1887 nos Estados Unidos da América (Interstate Commerce Commission – Comissão de Comércio entre Estados), tinha como objetivo justamente a regulação de ferrovias.

Nesse contexto, em termos de mobilidade, pode-se afirmar que o Brasil era engessado, um território prisioneiro de sua geografia de dimensões continentais e com ineficiente infraestrutura de transporte. Esse quadro começou a sofrer mudança gradativa a partir da década de 1920, com o advento das conhecidas “jardineiras” e que apareciam no cenário como elemento capaz de integrar o território nacional. Logo em seguida, em 1928, um Regulamento Federal qualificou esses veículos como “auto-ônibus” e passou a exigir “permissão especial do poder competente” para a regular prestação desse importante serviço público.

Era, portanto, o início da regulação estatal de uma atividade essencial para a vida contemporânea. A opção do Estado brasileiro pelo caminho regulatório do serviço público de transporte interestadual de passageiros, sem nunca ter se constituído uma empresa estatal para essa finalidade, ocorreu no nascedouro do setor e pode ter contribuído sobremaneira para a rápida expansão desse modal no Brasil.

Ao longo das últimas sete décadas, o transporte interestadual de passageiros por rodovia passou também por profundas alterações legislativas e arcabouços jurídico-regulatórios formataram a relação público-privada. Apenas a título meramente ilustrativo, convém recordar que, em 1937, a Lei no 467 transformou a Comissão de Estradas de Rodagem no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), conferindo a esse órgão a competência para controlar todas as estradas e os serviços de transporte coletivo. A partir da década de 1970, em decorrência do milagre econômico brasileiro, o Governo começou a se articular de forma mais intensa para buscar um marco regulatório capaz de conferir segurança jurídica ao setor, tudo isso para que se criassem os incentivos econômicos necessários para a formação de uma capilaridade mais abrangente de linhas e ligações.

Foi nesse ambiente que foram editados, entre 1978 e 1986, os Decretos Federais nos 81.219, 84.612 e 92.353. Ao mesmo tempo em que um aumentava a competência e o poder fiscalizatório do então DNER – que passou a editar normas complementares e instruções de serviços, como forma de regular de forma mais intensa esse serviço público –, os outros tratavam da remuneração dos motoristas e do primeiro grande regulamento sobre a forma e o regime de exploração dos serviços rodoviários interestaduais e internacionais de transporte coletivo de passageiros.

Após a Constituição Federal de 1988, o setor experimentou novas e significativas alterações jurídico-regulatórias em seu arcabouço legal. A mais recente e objeto deste artigo refere-se à adoção do regime de autorização para a exploração do serviço regular de transporte interestadual de passageiros. Com base no permissivo constante do art. 21, XII, “e”, do texto constitucional, o legislador ordinário empreendeu mudanças na Lei Federal no 10.233/2001, que reestruturou os transportes terrestre e aquaviário e criou a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

Em apertada síntese, em 2014, com a edição da Lei Federal no 12.996, certamente influenciado pela imperiosa necessidade de se conferir maior dinamismo ao transporte terrestre coletivo interestadual e, ao mesmo tempo, assegurar a desejável estabilidade regulatória, o Congresso Nacional optou pela autorização como forma de outorga desse serviço público, nos termos da nova redação do art. 13, V, “e”, da citada Lei Federal no 10.233/2001, limitando-se a estabelecer algumas orientações legislativas para a ANTT.

Em decorrência disso, e como forma de estimular a participação democrática dos agentes regulados e da sociedade civil como um todo, a agência reguladora, de forma acertada, deu início a um longo processo de consulta pública, com o objetivo primário de colher subsídios e sugestões para a formulação de um novo marco regulatório para o setor de transporte coletivo de transporte interestadual.

De acordo com informações divulgadas pela própria ANTT, a proposta de regulação recebeu ao todo 264 contribuições, de cerca de 223 participantes e abordando aproximadamente 652 aspectos distintos. Apenas para se colocar em perspectiva o grau de interesse sobre o tema, em geral, contribuições no âmbito de consulta pública em outras entidades regulatórias brasileiras tendem a ser bem inferiores, alcançando entre 40 e 70, quando bem-sucedidas. Trata-se, sem dúvida, de expressivo número, que descortina a relevância da matéria e vem a corroborar a inegável importância desse setor para o cotidiano da sociedade.

Como resultado do processo de consulta pública, em 25 de junho de 2015, a ANTT editou a Resolução no 4.770, dispondo sobre a regulamentação da prestação do serviço regular de transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros, sob o regime de autorização.

Leitura atenta do novo marco regulatório do setor de transporte coletivo interestadual revela uma miríade de medidas adotadas pela ANTT para garantir e assegurar, a um só tempo, o dinamismo engendrado pelo legislador ordinário ao estabelecer a autorização como forma de outorga, sem se olvidar dos princípios aplicáveis ao serviço público de transporte coletivo interestadual de passageiros.

Nessa ordem de considerações, parece-nos louvável e muito feliz a decisão da agência reguladora em estabelecer um sistema que permita a realização de estudos de avaliação de mercado, como instrumento de identificação, inter alia, da relação oferta/demanda de uma determinada linha, com a subsequente decisão regulatória em se permitir a entrada de um ou mais operadores. A retirada de um dos pressupostos dos clássicos contratos de concessão (exclusividade de direito) como premissa jurídica no bojo do novo marco regulatório tende a se revelar como valioso aliado da ANTT, já que permitirá maior flexibilidade na regulação da atividade, na medida em que a Agência poderá reavaliar de forma constante, em períodos bem inferiores aos antigos contratos de concessão, a evolução de uma determinada linha, promovendo-se os ajustes necessários e adequados para uma prestação mais eficiente. A exclusividade passa a ser dirigida unicamente sob o prisma operacional/econômico, na medida em que o legislador ordinário estabeleceu a regra da “inviabilidade operacional” como critério capaz de impedir a outorga de novas autorizações para determinado mercado, interpretado pela ANTT no campo de sua discricionariedade técnica como concorrência ruinosa ou restrições de infraestrutura.

Outra medida que merece elogio se refere à possibilidade de as empresas transportadores solicitarem, anualmente, a reavaliação do seu perfil, desde que apresentem volume passageiro-quilômetro transportado/ano compatível com a nova classe desejada. Isso tende a imprimir maior dinamismo na relação e concorrência entre as empresas transportadoras, já que a nova norma regulatória autoriza a uma empresa passar a prestar serviços em outras classes e tipos de linhas em períodos muito inferiores ao regime anterior de concessão e/ou permissão do serviço público.

Com a separação entre Termo de Autorização e Licença Operacional, sendo esta última o ato administrativo capaz de conferir o direito a uma empresa transportadora para prestar o serviço público, pretendeu a ANTT elevar a eficiência do mercado, uma vez que as empresas deverão passar primeiro por uma qualificação jurídica, econômico-financeira, técnico-profissional e técnico-operacional antes de serem elegíveis para a obtenção dessa Licença.

Dessa maneira, as transportadoras que obtiverem o Termo de Autorização estarão aptas a buscar a Licença Operacional para determinada linha, sempre que houver disponibilidade regulatória. Além do evidente ganho de tempo com esse procedimento em duas etapas, preserva-se a integridade de todo o sistema e, sobretudo, dos usuários, pois o controle e a fiscalização acerca do atendimento às exigências regulatórias serão constantes e imediatos, algo que não ocorria nos regimes anteriores. Muito pelo contrário, não raro uma empresa se preparava para atender aos requisitos legais apenas para obter o respectivo contrato de concessão ou permissão, cuja duração ultrapassava décadas, deixando de manter suas qualificações ao longo desse período.

Em linhas gerais, quer-nos parecer que o modelo adotado no âmbito federal para a outorga do serviço público de transporte coletivo interestadual de passageiro confere maior dinamismo e mune o órgão regulador de ferramentas adequadas para promover ajustes e adequações mais céleres. Do ponto de vista das empresas, o regime de autorização engendrado pelo legislador ordinário e detalhado no campo regulatório pela ANTT traz elementos suficientes para garantir e assegurar a indispensável segurança jurídica. Isso sem falar no fato de que o acompanhamento periódico e constante, por parte da ANTT, do cumprimento das exigências legais pelos agentes regulados, reduz as distorções outrora existentes, quando apenas algumas transportadoras incorriam em elevados custos regulatórios para a sua integral observância, gerando odiosa assimetria e desnivelando o equilíbrio entre as empresas prestadoras desse serviço público.

Esse novo modelo, introduzido de forma pioneira em âmbito federal, merece a atenção dos estados e municípios, que se podem beneficiar do amplo processo já conduzido pela ANTT e importar, com as devidas alterações para compatibilizar com as circunstâncias e realidades regionais e locais, para o respectivo ente federativo. É inegável que esse regime confere mais eficiência regulatória na fiscalização da prestação do serviço público, além de corrigir algumas distorções existentes sob os modelos anteriores.