A importância da inserção da defensoria pública no PL 4438/2021

2 de fevereiro de 2024

Coordenadora da Comissão dos direitos da pessoa idosa da Anadep e Defensora Pública do Ceará

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De acordo com o Censo 2022, o número de pessoas com 60 anos ou mais cresceu 56% em relação a 2010, totalizando cerca de 32.113.490 pessoas. No total, 15,6% da população brasileira é composta por pessoas idosas (60 anos ou mais). Pela análise dos dados do Censo é possível constatar o crescente envelhecimento em detrimento de uma redução dos jovens, alterando-se o formato da pirâmide etária. A revolução demográfica no que tange a esse aumento e inversão de pirâmide é tendência mundial, a qual no Brasil, chama atenção pela sua rapidez.

Em paralelo crescem as denúncias relacionadas à violência contra pessoas idosas. De acordo com os relatórios semestrais do Disk 100, houve aumento de 87% no número nos cinco primeiros meses de 2023, em relação ao mesmo período em 2022. Da mesma forma em relação à violência contra a pessoa com deficiência, razão pela qual tramita no legislativo o PL 4438 de 2021, no sentido de que o instituto das medidas protetivas de urgência da Lei nº 11.340, de 2006, e da Lei nº 13.431, de 2017 (sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência) seja ampliado para esse público, no intuito de que seja aprimorada a defesa dos direitos humanos a partir desse instrumento.

O PL 4438/2021 tramita no Senado, já tendo sido aprovado pela Câmara dos Deputados, com a inserção, no Estatuto do Idoso e no Estatuto da Pessoa com Deficiência, de disposições sobre a Defensoria Pública. Referida modificação significa a realização prática do mandamento constitucional, segundo o qual, cabe à Defensoria Pública muito mais do que o estrito patrocínio jurídico dos economicamente hipossuficientes. Antes, trata-se de instituição incumbida da promoção dos direitos humanos (CRFB, art. 134). 

A Defensoria Pública é a mais nova instituição do sistema de justiça, tendo sido disposta na Constituição original de 1988, já com a missão de prestar assistência jurídica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma da lei. Já existiam nos Estados, secretarias de justiça e servidores atuando nessa defesa, porém, o reconhecimento Constitucional significava que o Brasil estaria de fato buscando uma igualdade material no sentido de exercício de direitos, garantindo que os objetivos fundamentais da dignidade da pessoa humana e cidadania fossem acessados por todos os brasileiros e brasileiras.

Ao longo de 35 anos, o papel da Defensoria Pública foi sendo reconhecido e delineado, não apenas como fruto de Emendas Constitucionais e Leis, dentre as quais as Emendas 45 de 2004, 80 de 2014, e Leis 80 de 1994, Lei 11.448/2007 e 132 de 2009, dentre outras, como no plano das decisões judiciais sobre a aplicação dos dispositivos, nos meios de comunicação, perante a academia, e perante a sociedade em geral. Esse desenho institucional não se deu sem que estivessem presentes disputas e questionamentos, os quais contribuíram para que fosse moldado o papel que possui hoje. 

O Supremo Tribunal Federal decidiu na ADI 3943 de 2007, proposta pela Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), a qual questionava a inclusão da Defensoria Pública como legitimada a propor Ação Civil Pública, pela Constitucionalidade do dispositivo. Um dos termos utilizados pelo Ministro Celso de Mello foi de que a alteração legislativa representava avanço institucional do ordenamento jurídico, “além de representar, notadamente em face das pessoas socialmente desassistidas e financeiramente despossuídas, um marco significativo no processo de afirmação dos direitos metaindividuais…”. 

O Ministro Celso de Mello, em 2015, acompanhando a então relatora Ministra Cármen Lúcia, destacou que: “a legitimação do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública, que não é exclusiva do ‘parquet’, não impede que a lei a estenda a terceiros, como a Defensoria Pública, nas mesmas hipóteses previstas na legislação processual”. Destacou ainda que a alteração atende o interesse social, considerando a relevância que assume, no plano de nosso ordenamento positivo, a instituição da Defensoria Pública.

Em 2022, o Supremo Tribunal Federal decidiu a ADI 6875 de 2021, cujo autor foi o Procurador-Geral da República, sobre a prerrogativa atribuída à Defensoria Pública de requisitar documentos, informações, esclarecimentos, materiais e demais providências necessárias ao desempenho de sua função institucional, entendendo pela constitucionalidade do dispositivo. A ementa do julgamento destaca que o perfil institucional da Defensoria Pública foi redesenhado com as sucessivas reformas no sentido de densificação do direito fundamental do acesso à justiça em todas as duas dimensões, dissociando-a da advocacia privada, destacando o papel de promoção do acesso à justiça, de redução das desigualdades e do fomento à cidadania, afastando-se no caráter exclusivo de interesses individuais e até que sua arquitetura: “da perspectiva institucional, aproxima-a mais do Ministério Público”.  

Isso significa que o papel da Defensoria Pública no Sistema Constitucional Brasileiro na promoção dos direitos humanos, também na defesa dos direitos das pessoas com Deficiência e Idosas, não cabe apenas na moldura de defesa apenas individual, e que não existe risco de superposição de função com o Ministério Público, quando se trata de otimizar a proteção dessas pessoas, até porque a atuação em cooperação, já foi objeto inclusive do Recurso Extraordinário 135.328/SP. Nessa decisão, o Supremo Tribunal Federal decidiu que caberá ao Ministério Público a propositura das pessoas em situação de vulnerabilidade abarcadas pelo dispositivo somente enquanto ainda não houver Defensoria Pública estruturada para tal. 

Outra importante decisão foi proferida no STF em Embargos de Declaração na ADPF 709, a qual confirmou a legitimidade da Defensoria Pública como custus vulnerabilis. Nesse processo, o  relator Ministro Luís Roberto Barroso, em outubro de 2023, decidiu pela permissão para que: “A Defensoria Pública intervenha nos feitos, em nome próprio, mas no interesse dos necessitados, de modo a fortalecer a defesa de interesses coletivos e difusos de grupos, que, em outras condições, não teriam voz”. Assim, registre-se, não atua apenas individualmente, e, mais do que isso, pode atuar quando se trata de parte assistida por advogado particular, pois sua intervenção advém do sistema vigente, no qual são formados precedentes, e no qual é preciso que se analise a formação dos mesmos, sob a ótica dos direitos humanos dos vulneráveis.

Dito isso, cabe a análise dos dispositivos específicos do PL 4438/2021 em face à moldura do papel da Defensoria Pública na luta pelos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência e da Pessoa Idosa, esclarecendo-se desde logo que conforme acima exposto, não existe razão para riscos de sobreposição com o Ministério Público, quando se trata de realizar o que a própria Constituição Federal determina em relação à instituição Defensoria Pública. Portanto, o PL 4438 é plenamente compatível com a função institucional da Defensoria Pública.

Caracterizada essa moldura atual de que a defesa pela Defensoria não se limita a direitos individuais, outro ponto que é trazido como risco de sobreposição é a questão da função fiscalizadora. Sobre essa função fiscalizadora, é preciso que se diga que esta função em prol dos vulneráveis da Defensoria Pública, é missão distinta da missão fiscalizadora do Ministério Público em prol da ordem jurídica. 

A atuação da Defensoria Pública comprometida subjetivamente com os mais vulneráveis é instrumento para garantir, inclusive, maior isenção e impessoalidade ao Ministério Público na defesa da ordem jurídico-democrática, conforme aponta a teoria: 

(…) a positivação constitucional da Defensoria Pública, enquanto vetor institucionalizado da tutela dos vulnerável, permite ao Ministério Público a atuação mais isenta e impessoal em favor da ordem jurídica mesmo quando esta colidir, aparentemente, com o interesse dos vulneráveis, dentre incapazes e grupos constitucionalmente protegidos”. (O ciclo jurídico da vulnerabilidade e a legitimidade institucional da Defensoria Pública: limitador ou amplificador constitucional da assistência jurídica integral? Fortaleza-CE: UNIFOR, 2020, p. 181-187. Tese de doutorado. Orientação: Rafael Xerez, g.n.). 

Portanto, a relação entre as funções fiscalizatórias do Ministério Público e da Defensoria Pública não são de sobreposição, mas sim de cooperação, complementação e dialógico democrático. As atuações, portanto, devem coexistir e não se excluírem. José Augusto Garcia de Souza trás interessante pensamento que pode ser adaptado a essa questão da análise das funções fiscalizatórias:

 (…) Resumindo o que foi dito acerca da relevantíssima questão da eficácia do solidarismo jurídico, lembre-se que este, em prol da dignidade humana, encarece a participação de todos na construção do bem comum, acarretando reflexos decisivos na órbita processual. Estimula-se a participação solidária pela via do processo, assomando na jurisdição os interesses transindividuais. Dessa forma, o processo ganha natureza objetiva, mormente quando estão em jogo direitos difusos. Em um quadro assim, é natural que a identidade subjetiva do autor da demanda perca a importância de outrora. Essencial realmente passa a ser o objeto do processo, a relevância social da matéria levada a juízo, independentemente da figura do “portador” dos interesses. Se nos é consentido um paralelo mais lúdico, o mesmo ocorre nos esportes coletivos. Para um time de futebol, por exemplo, o fundamental não é fazer o artilheiro, mas sim ganhar o campeonato. (SOUSA, José Augusto Garcia de. Solidarismo jurídico, acesso à justiça e funções atípicas da Defensoria Pública: a aplicação do método instrumentalista na busca de um perfil institucional adequado? Revista de Direito da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro, nº 1, jul./set. 2002, p. 163-164).

A voz da sociedade e o clamor público também estão favoráveis a essa ampliação Constitucional e legislativa da atuação da Defensoria que vêm ocorrendo ao longo desses 35 anos de sua criação. Um estudo realizado pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), em 2019, por meio de pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), indicou que 78% da sociedade aprova a atuação da Defensoria Pública. Os 78% de aprovação são o maior índice obtido na avaliação feita pela sociedade, o que coaduna com a conclusão de que o reconhecimento judicial do papel da Defensoria é paralelo também ao reconhecimento pela sociedade. O Estudo ainda destaca a Defensoria Pública como a instituição do sistema de Justiça com maior índice de confiança entre os cidadãos e cidadãs: 59%. 

Em conclusão, é possível verificar que a Defensoria é uma instituição nova, e são recentes as reformas Constitucionais, Leis, e decisões judiciais, razão pela qual é natural o debate, e são necessários os esclarecimentos. No entanto, para realização dos objetivos Constitucionais, é preciso que prevaleça uma compreensão constitucional e solidarista das funções fiscalizatórias do Ministério Público e da Defensoria Pública. 

As Leis podem e devem avançar na proteção das pessoas com deficiência e pessoas idosas e o PL 4438 de 2021, contendo a inclusão do Capítulo sobre Defensoria, é fruto da evolução do perfil da Defensoria na ordem jurídica, não existindo risco de sobreposição de função, mas talvez resistência e má compreensão em relação a esse perfil, que já vem sendo exercido e reconhecido, na luta pelos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência e das Pessoas Idosas.

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