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A Justiça do Trabalho e sua vocação conciliatória

31 de maio de 2016

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Lorival Ferreira dos Santos,jpgA Constituição Federal de 1988, no seu artigo 1o, caput, assegura o Estado Democrático de Direito como sendo um dos fundamentos da própria República Federativa do Brasil. Essa concepção, de Estado Democrático de Direito, não se confunde com o mero Estado de Direito ou mesmo com o Estado Social de Direito.

José Afonso da Silva afirma em suas manifestações que o Estado Democrático não se contenta com a formação de instituições representativas capazes de captar a vontade popular, mas há de ser um processo de liberação da própria pessoa humana em relação às formas de opressão; daí não ser suficiente o reconhecimento formal de direitos, afigurando-se imprescindível a vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o exercício desses direitos.[1]

Norberto Bobbio fala da estreita relação entre a proteção de direitos, a democracia e a paz, inferindo mencionado autor tratarem-se de momentos componentes de um mesmo movimento histórico.[2]

Com efeito, como leciona Inocêncio Mártires Coelho, o Estado Democrático de Direito é um “aprimoramento” das diversas concepções de Estado. Inspirou-se no Estado Liberal e também no Estado Social mas os superou, porque os incorporou dialeticamente. Para o mencionado jurista, Estado Democrático de Direito é “aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos”.[3]

Dito de outra forma, de nada valeriam direitos explicitamente proclamados na Carta Magna, se a eles não fosse dada efetividade, se deles não pudessem gozar os cidadãos. Estado Democrático de Direito deve consagrar diretos, mas também haverá de assegurar a sua efetiva fruição.

E esse é o problema sobre o qual se desenvolve este trabalho. Há uma gama de direitos reconhecidos ao cidadão, trazidos especialmente a partir da Constituição de 1988, mas o Estado não dá conta de garanti-los.

O Estado Democrático de Direito produziu o alargamento de direitos, mas também a saturação dos tribunais. O cidadão acorreu ao Poder Judiciário, postulando direitos legítimos, mas não tem obtido do Estado a esperada proteção.

Em razão disso, surgiram inúmeras manifestações populares acerca das dificuldades na obtenção do verdadeiro “acesso à justiça”, que significa não apenas o mero ingresso em juízo, mas, sobretudo, o acesso do indivíduo ao devido processo legal, o direito de ser ouvido por um órgão imparcial, de produzir provas e de obter uma tutela adequada, efetiva, tempestiva e justa. Fala-se, com Cândido Rangel Dinamarco, em “acesso à ordem jurídica justa”.

Por outro lado, são inegáveis os avanços na legislação e os esforços dos tribunais e juízes, mas mesmo assim as barreiras permanecem e a famigerada morosidade da justiça gera no seio da sociedade uma grande insatisfação.

Aliás, mais grave do que insatisfação é o descrédito produzido pelo direito lesado e não reparado ou reparado tardiamente. Boaventura de Sousa Santos fala da gravidade desse estado de coisas, ao dizer que “a frustração sistemática das expectativas democráticas pode levar à desistência da democracia e, com isso, à desistência da crença no papel do direito na construção da democracia”.[4]

Com efeito, todos os operadores do Direito sabem, porque a vivenciam no seu dia-a-dia, que há uma crise do sistema judicial. Não é possível dizer, sem cometer erronias, que o sistema judicial pacifica conflitos. Muitas vezes é o sistema judicial que os fomenta.

É disso que fala o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho José Roberto Freire Pimenta:

Isto se deve a uma constatação realista que é comum a todos os sistemas jurídicos mais avançados do mundo contemporâneo: a consciência de que esse instrumento processual, por melhor que seja, tem limitações óbvias e inevitáveis. Não se pode nunca esquecer que o processo e a própria função jurisdicional do Estado têm limites que decorrem da própria natureza das coisas, inerentes aos instrumentos jurídicos em geral e ao próprio Direito. É portanto ingênuo e ilusório atribuir à função jurisdicional do Estado a tarefa de fornecer sempre uma solução absoluta, pronta e acabada para todo e qualquer conflito intersubjetivo de interesses, tão logo este se verifique – isso é humanamente impossível[5].

 Porém, a culpa não é propriamente do sistema, mas da sua obsolescência, do seu descompasso em relação à modernidade. Também não se trata de um problema exclusivamente brasileiro, mas de uma questão que assume proporções internacionais.

Há uma “crise numérica”[6] no sistema judicial, como relata Rodolfo de Camargo Mancuso, ou uma “deficiência estrutural”[7], como atesta José Roberto dos Santos Bedaque, cuja solução não está em somente ampliar a sua estrutura física, mas muito mais em alterar o comportamento dos usuários do sistema.

Existe, portanto, uma questão cultural a ser suplantada.

Consoante pontuou o Ministro Lewandowski, em palestra proferida no Seminário de Verão de Coimbra de 2015, o Brasil, com seus 200 milhões de habitantes, possui cerca de 100 milhões de processos em tramitação nos tribunais, distribuídos entre 16.500 magistrados federais, estaduais, trabalhistas, militares e eleitorais, sendo possível considerar que um em cada dois brasileiros tem uma demanda a ser solucionada pela Justiça. Segundo o Ministro:

É uma cifra absolutamente impressionante e que cresce de forma exponencial. Começamos a computar sistematicamente esses dados a partir da Constituição de 1988. Nessa data tramitavam cerca de 350 mil processos nos vários ramos da Justiça Brasileira. Vinte e sete anos depois, em 2015, esse número ampliou-se em 300 vezes. Podemos dizer que, não só no Brasil como em outros países, ocorre um fenômeno que o grande sociólogo português Boaventura Sousa Santos chama de ‘explosão de litigiosidade’. O que ocorre porque o homem comum, o povo, aprendeu que tem direitos e busca esses direitos batendo às portas do Poder Judiciário.[8]

Ora, se é assim é preciso mudar. É preciso fazer algo diferente, criativo, inovador. Diante de números alarmantes e de aparelhos estatais inábeis, é preciso que o legislador institua novos mecanismos de solução dos litígios, capazes de propiciar decisões autenticamente justas e em prazo razoável. Ao Poder Judiciário, como expressão do poder estatal, impende incorporar novas técnicas que empreendam efetividade ao processo.

Como medidas possíveis e eficazes na promoção do acesso à justiça vislumbramos a redução da quantidade de recursos, com a valorização da autoridade do juiz de primeiro grau e suas decisões; o alargamento das situações de eliminação das custas do processo; a maior simplificação dos atos processuais; a especialização dos órgãos encarregados de solução de conflitos.

Mas para além disso, entendemos que a mais importante medida seria buscar outros caminhos que não o da decisão judicial, com a implantação de novos ou o incremento dos já existentes métodos alternativos de solução de conflitos.

A resolução consensual de conflitos é uma tendência mundial, a respeito da qual não é possível dar de ombros. No Direito italiano Michele Taruffo reconhece tratar-se de fenômeno presente em inúmeros sistemas processuais, detectando como razão principal para a sua disseminação a crescente incapacidade dos sistemas institucionais de administração de justiça de fazer frente às demandas judiciais, que provêm dos mais diversos sujeitos e dizem respeito às mais diversas matérias.[9]

Fredie Didier Júnior aponta para a existência, principalmente depois do advento do Novo Código de Processo Civil, de um “princípio do estímulo da solução por autocomposição”, tal a ênfase dada a essa sistemática pela nova lei processual.[10]

De fato, parece mesmo que a mediação e a conciliação são os métodos mais eficazes para a solução justa, rápida e com qualidade dos conflitos de interesses. Certamente, em grande parte dos milhões de ações que anualmente são propostas na Justiça Brasileira, a sentença não será a melhor solução e menos ainda resolverá o conflito instalado. Com efeito, enquanto a mediação e a conciliação conservam o poder de agradar, ainda que parcialmente, as duas partes do conflito, a sentença muitas vezes consegue desagradar a todos.

A propósito, assim reflete o Ministro Lewandowski: “toda vez que a deusa Têmis brande a espada e resolve a controvérsia, nós não estabelecemos a paz entre os litigantes. Na verdade, nós separamos aqueles que fazem parte de um conflito. Então, há que se buscar formas alternativas de solução de litígios e controvérsias”[11].

O acordo é mais rápido e mais vantajoso do que a sentença para as partes, e seu resultado fica sempre mais próximo da vontade dos litigantes. Diferentemente de quando ocorre o julgamento da causa, na conciliação não há vencedores ou perdedores e isso representa um enorme benefício às partes que acabam, elas próprias, construindo (ou ao menos colaborando para) a solução de seus próprios conflitos. A autocomposição se mostra, assim, um instrumento valioso que, quando bem utilizado por todos os envolvidos (partes, advogados, ministério público, juiz), garante maior eficiência ao sistema Judiciário, aprimorando o acesso à justiça.

O próprio Conselho Nacional de Justiça já reconheceu o valor da conciliação como método efetivo de solução de conflitos, tanto que editou a Resolução 125, de 29 de novembro de 2010, cujo foco é exatamente a solução consensual das demandas.

A Justiça do Trabalho é pioneira na busca da solução negociada para seus conflitos judiciais. Aliás, por conta disso já sofreu duras críticas e até um certo preconceito, mas hoje tem seu mérito reconhecido, inspirando o novo Código de Processo Civil na busca da autocomposição.

Todo o regramento trabalhista sempre prestigiou o instituto da conciliação entre as partes, tanto assim que a ausência de tentativa conciliatória é considerada nulidade absoluta, capaz de produzir até mesmo a invalidade da sentença trabalhista na precedida da tentativa de composição (CLT, 846 e 850).

E com o movimento protagonizado pelo Conselho Nacional de Justiça em prol da conciliação, até mesmo esta Justiça Especializada passou a dar nova ênfase a esse importante instituto, lançando um novo olhar sobre a conciliação, assim como o fizeram os demais órgãos do Poder Judiciário, também contagiados pela proposta.

Em atenção à Resolução 125/2010 do CNJ, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, do qual faço parte, através da Portaria GP no 20/2011, criou seu Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, contando com a presença do Vice-Presidente Judicial, do Corregedor Regional, do Diretor da Escola Judicial, de um Juiz Titular de Vara, de um Juiz Substituto e de um servidor, com competência para criar políticas públicas de fomento à conciliação, transformando, assim, cada magistrado em agente multiplicador.

E orgulha-nos muito saber que nosso Tribunal tem tido um excelente desempenho em termos de conciliação. Segundo dados fornecidos pelo seu Setor de Estatística, através de suas 153 Varas do Trabalho, 10 Postos Avançados e 2 Varas do Trabalho Itinerantes, recebeu, no ano de 2015, 317.309 processos, tendo solucionado 280.852, sendo 114.879 através de acordo, o que representa 41%. E no ano de 2016, até o mês de março, foram recebidos 83.664 processos, solucionados 66.384, sendo 25.143 através de acordos, o que equivale a 38% do total solucionado.

Os Centros Integrados de Conciliação de primeiro e segundo graus, que foram criados no âmbito da Corte por meio da Resolução Administrativa no 12/2014, pretendem difundir a cultura conciliatória com ênfase ainda maior, não se limitando à conciliação propriamente, mas também incentivando a mediação, que é outra forma capaz de contribuir para o desafogamento do Judiciário, fazendo com que as partes, aproximadas por um mediador, alcancem elas próprias a resolução consensual do conflito.

O CIC de segunda instância, em funcionamento na sede do Tribunal, foi instalado em 09/02/15, por meio da Portaria GP no 08/2015, e os de primeiro grau já foram instalados nas circunscrições de Campinas (16/03/95), Presidente Prudente (24/07/15), Bauru (31/07/15), São José do Rio Preto (03/08/15), São José dos Campos (21/08/15), Ribeirão Preto (28/08/15) e Araçatuba (11/09/15).

Os números falam por si. O CIC da circunscrição de Campinas, desde o seu início, já distribuiu R$ 85.942.240,93 através de acordos trabalhistas ali entabulados; o CIC de 2o grau já obteve R$ 207.329.253,98 em transações trabalhistas. Em Ribeirão Preto, por exemplo, foram realizadas 120 audiências conciliatórias logo nos dois primeiros dias de funcionamento, inclusive num sábado, quando mais de R$ 2.000.000,00 foram transacionados, tal era o entusiasmo das pessoas que ali estão atuando.

Como se vê, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região está fazendo sua parte, criando uma atmosfera de conciliação, seja por meio dos CICs, seja convidando grandes devedores trabalhistas a se envolverem nessa onda conciliatória, seja através do aplicativo “conciliar é legal”, criado em seu sítio eletrônico para possibilitar às pessoas solicitarem uma audiência de conciliação.

E para que tudo isso se materialize temos contado com o empenho de pessoas competentes e carismáticas. A cultura conciliatória tem cativado a todos, desde os servidores recém-empossados até o mais antigo dos Desembargadores.

Pretendemos contar, ainda, com a nobre classe da advocacia. Piero Calamandrei já dizia que o primeiro juiz da causa é o advogado, que a conhece ainda no seu escritório e ali já tem condições de aconselhar o seu cliente à conciliação. O que se espera dos advogados é o engajamento na questão conciliatória, e que eles, assim como nós, tenham a exata compreensão da importância da autocomposição e a ponham em prática.

Quando iniciamos estas breves conjecturas, dissemos da necessidade de o Estado propiciar a cada cidadão não apenas o reconhecimento de seus direitos, mas principalmente a fruição desses direitos reconhecidos. Dissemos também da própria obsolescência do sistema judicial, que não consegue garantir ao cidadão o direito reconhecido na lei. E também dissemos do perigo à própria democracia que pode representar essa inaptidão do sistema para solucionar as demandas surgidas na sociedade.

A boa notícia talvez seja a de que existe solução para o problema. A autocomposição, sempre praticada na Justiça do Trabalho e agora incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo próprio Código de Processo Civil, representa novos caminhos, novos rumos, novos olhares.

A sabedoria popular sempre disse mais valer um mau acordo do que uma boa demanda. Podemos aprimorar esse ditado para atestar que um acordo bem elaborado, formulado por partes bem assistidas e orientadas, nunca será ruim, por mais tentadora que possa parecer a demanda.

 

Referências bibliográficas________________________

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. Malheiros. 2010.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile. Il processo ordinario di cognizione. 4. ed. Bologna: 2011.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18. ed., v1. Salvador: Editora Jus Podivm, 2016.

LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Justiça & Cidadania. Ed. 180, agosto de 2015.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. Revista dos Tribunais, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed.. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

PIMENTA, José Roberto Freire. A conciliação judicial na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 24/99: Aspectos de Direito Comparado e o novo papel do Juiz do Trabalho. Revista LTr, vol. 65, no 02, 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo; Malheiros Editores, 2001.

WATANABE, Kazuo. Da Cognição no Processo Civil. 2ª ed., Ed. BookSeller, 2000.

 

Notas________________________

1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19 ed. São Paulo; Malheiros Editores, 2001, p. 121

2 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 01

3 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed.. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 171

4 SANDOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da Justiça. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 31

5 PIMENTA, José Roberto Freire. A conciliação judicial na Justiça do Trabalho após a Emenda Constitucional n. 24/99: Aspectos de Direito Comparado e o novo papel do Juiz do Trabalho. Revista LTr, vol. 65, no 02, 2001, p. 152.

6 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. Revista dos Tribunais, 2011. p. 28.

7 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. Malheiros. 2010, p. 47.

8 LEWANDOWSKI, Ricardo. Revista Justiça & Cidadania. Ed. 180, agosto de 2015, p. 17.

9 COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezioni sul processo civile. Il processo ordinario di cognizione. 4. ed. Bologna: 2011, p. 103

10 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18. ed., v1. Salvador: Editora Jus Podivm, 2016, p. 272

11 Ibid., op. cit., p. 16.

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