A justiça é cega, mas não é muda

5 de novembro de 2003

Compartilhe:

É uma constatação exemplar – no bom sentido. Em palestra no 18º. Congresso Brasileiro de Magistrados, disse o publicitário Duda Mendonça:

“A imagem da venda nos olhos da Justiça é muito bonita. O fato de a Justiça ser cega não significa que ela precisa ser muda”. O alerta de Duda Mendonça é exemplar pelo que contém de oportuno e significativo para o aprimoramento do Poder Judiciário.  Não, não estou me referindo à imagem, mas a um desafio mais amplo. É um paradoxo que a Reforma do Judiciário não esteja em pauta e, também, que existam tantas e tão ásperas críticas a um poder que é o pilar central da sociedade moderna. Primeiro, porque a democracia brasileira só irá se consolidar se a justiça for o referencial maior das ações do poder público e da cidadania. Tem sido assim em todos os países civilizados. Aqui, não será diferente. Em segundo lugar, é imperativo que a Justiça seja ágil e esteja ao alcance de todos os cidadãos. E há ainda um terceiro aspecto: a Justiça para ser independente e estar em sintonia com as exigências do mundo moderno precisar estar preparada para defender seus interesses. Não de forma corporativa, mas de forma legítima e transparente.

Na verdade, o Poder Judiciário se atrasou em relação aos demais poderes no que se relaciona à Comunicação. Tornou-se excessivamente hermético. Sente-se ameaçado quando criticado. Tem dificuldade de aceitar que a história se move e que a democracia é feita de equilíbrios dinâmicos. O mundo em que vivemos é como um veículo de duas rodas que garante sua estabilidade pela capacidade de estar em movimento.

Ao contrário do passado, o Brasil dos dias atuais é feito da armassa da crítica e do diálogo. Tudo que é publico ou privado está aos olhos da multidão. Desde o império, os poderes constituídos estão habituados a se imaginarem acima do bem e do mal. Não é mais assim. Hoje, todos criticam todos. Todos querem utilizar a liberdade política para reivindicar e fazer prevalecer suas teses. Se justas ou não, o debate público é que irá determinar.

Convenciou-se, nesse contexto, dizer que a imprensa é o quarto poder. Na prática, a imprensa não tem poder algum. A sua liberdade é a liberdade da sociedade. Daí, nos paises autoritários a imprensa ser sempre a primeira vítima. Daí, nos países civilizados estar sob permanente fogo cerrado da crítica e a fiscalização superior do Direito.

A Justiça brasileira tem uma longa tradição democrática. A história dos direitos da cidadania poderia perfeitamente ser reconstituída a partir da sua trajetória construtiva. Sempre se opôs aos privilégios aristocráticos, à confusão reinante entre o público e o privado e ao cerceamento das liberdades. No ciclo autoritário foi um escudo protetor contra as arbitrariedades.

Na Grécia antiga, némesis era a justiça divina e aidós a justiça da sociedade. Mas, némeses e aidós freqüentemente constituem um par inseparável a significar a justiça completa e complementar, concentrando metaforicamente todo o núcleo da Justiça que se constrói e evoluiu na prática dos princípios éticos e da fixação dos justos limites. Isto significa que o Poder Judiciário não pode ser visto, nem ambiconar, se colocar à acima ou à parte da sociedade. E, o que seria igualmente lamentável, desdenhar da sua opinião.

Seria um exagero afirmar que o Judiciário brasileiro se encontra num ponto de tamanha dissonância. O dilema é muito menos dramático e muito fácil de resolver. O Judiciário está com um problema de Comunicação acondicionado num problema político. O problema político está no desafio de adaptar-se de forma saudável a uma sociedade em transição para a democracia, vincada pelos profundos impasses da desigualdade social e do empobrecimento que não poupa ninguém, nem qualquer dos poderes constitucionais. O problema de Comunicação se resume à atitude prática de falar de si mesmo, seja para divulgar o que é positivo, seja para admitir seus desacertos.

Claro, é uma decisão política. Mas uma decisão acima de tudo saudável. Quando começar a agir assim, ficará mais difícil criticar o Judiciário porque existirão argumentos para expor princípios e atitudes. E quando as críticas ocorrerem – o que é da essência do regime democrático – os argumentos serviram de alicerce para a defesa.

A palavra chave desse processo de Comunicar é profissionalização. A Comunicação é fraca quando ela é feita empiricamente, quando é inspirada pelo calor das emoções e não pelos fatos, quando, sobretudo, é fruto de um cordão de isolamento que separa empresas e o poder público do cidadão e da sociedade. Essa relação de distanciamento perdeu o sentido de existir com a redemocratização do País, mas infelizmente ainda projeta a sua sombra por toda parte, não apenas na Justiça.

Os aplausos que as palavras de Duda Mendonça provocaram ao dizer que a justiça é cega, mas não é muda demonstra claramente que os integrantes do Poder Judiciário, em sua vasta maioria, estão conscientes da necessidade de cultivar e consolidar a cada dia a reputação de responsabilidade e coerência duramente conquistada. Falta apenas fazer a opção pelo diálogo com a sociedade e os demais poderes. Diálogo continuado e construtivo. Diálogo que não embaça a independência do julgamento, mas fortalece os vínculos com a tradição democrática.